Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 29 de outubro de 2011

vinho

Colocaram sob a porta um anúncio anotado a mão em pedaço de folha de caderno: "Vendo presépios"  (seguido de um número de telefone). Os problemas se avolumam, o dinheiro entre eles, e eis que a fantasia do Natal, antes mesmo de entrar novembro, já está à venda. Se em vez de “Vendo presépios” viesse “Vendo Natal” talvez eu ficasse inclinada a ponderar ― afinal há Natal sem presépio, sem árvore, há Natal sem ceia. Pelo menos soaria menos vulgar, se é que há como escapar à vulgaridade quando há dinheiro envolvido, assumido no verbo vender. Os meus melhores Natais aconteceram quando eu pude me esquecer de que era Natal e me abster de seus apetrechos. Mas isso parece impossível e impensável quando, faltando ainda dois meses para a data, vêm anonimamente insinuar-se sob a porta, silenciosamente, num anúncio prévio da enxurrada bate-estaca que não deixará em paz até que amanheça 26 de dezembro e se possa dizer: Pronto, ufa! Acabou! Enquanto isso, já amassado o anúncio e remetido ao lixo, penso nas vantagens do vinho como emoliente da alma. As coisas realmente boas não precisam de propaganda.

The Wall (curta)

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

o processo

Nunca me arrisco muito a falar de Kafka, embora seja um dos escritores que mais impacto teve sobre mim. A dificuldade vem do quanto sua obra comporta de enigma, e já ao afirmar isso estou correndo riscos indesejáveis. Ocorre que A metamorfose, lido ainda na juventude, me causou profundo incômodo, a ponto de eu não querer mais voltar a pôr as mãos no livro. Lendo a coletânea de artigos de Modesto Carone dedicada à obra do escritor tcheco, Lição de Kafka, uma nova possibilidade se deu. Além de abrir uma brecha na opacidade da estranha metamorfose irreversível do homem em inseto monstruoso, um trecho prendeu-me a atenção: “... expressões literais como ‘o estado atual de Gregor’ sugerem que a metamorfose do herói pode ser entendida como o resultado de um processo, ou seja: como um momento definido que teria sido precedido por outros que ficaram aquém da narrativa e que por isso não foram tematizados por ela.” (p.22). A palavra processo remeteu-me de imediato à obra-prima do escritor, O processo. Buscando outros sentidos além do jurídico, do âmbito da lei, o substantivo processo pode significar ‘ação continuada’, ‘seguimento’, ‘decurso’, ‘andamento’, ‘desenvolvimento’, ‘marcha’, ‘sequência continuada de fatos ou ações que se reproduzem com certa regularidade’. Então a metamorfose não é algo que se dá da noite para o dia: está inserta em um processo que a personagem cheia de culpa tenta desesperadamente entender. Não há o episódio isolado em si: há uma totalidade que escapa, de uma opacidade impenetrável. O processo, assim, tanto quanto a encenação de um processo jurídico absurdo e impenetrável às tentativas de entendimento (por parte da personagem e do leitor), é também um processo no qual a personagem, movida pela culpa, tenta entender sua participação no desenrolar dos acontecimentos para deles se desvencilhar. A culpa é inseparável do processo, no sentido de a personagem aceitar, de certa forma, sua participação nos fatos estranhos que a envolvem. Para simplificar: O processo ajuda a ler A metamorfose, valendo a recíproca.

CARONE, Modesto. Lição de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 

uma imagem para Emily Dickinson

Sam Kaye, de 12 anos, recebeu distinção da Royal Photographic 
Society por imagens de férias feitas na África do Sul (aqui)

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

livro livre

A língua portuguesa traz a liberdade nos livros, pelo menos etimologicamente.

de pai para filho

O pai tentava, em vão, esconder da família a garrafa de aguardente. O filho parou de tentar esconder de si mesmo a caixa de anti.depri.mente. Não guarda mágoa da água ardente da infância ― tudo mente em sua mente. 

Álvaro de Campos

Já sei: alguém disse a verdade...
Até os cordéis parecem aflitos,
Entra neste lar o objectivo.
E cada um ficou de fora, como um pano de corda
Que a chuva apanha esquecido na noite de janelas fechadas.

PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. Ed. Teresa Rita Lopes. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007, p.340.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Emily Dickinson

O Auto da Fé e o Dia do Juízo
Nada são para a Abelha -
É a separação da sua Rosa
Que na Miséria a deixa -

Auto da Fe - and Judgment -
Are nothing to the Bee -
His separation from His Rose -
To Him - sums Misery -

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.262-263.

encontro

Escrever as marés da alma enquanto o corpo pede calma, nunca entendeu como agora o significado da palavra paz ― quando a tinha, não dava por ela; agora quer um caminho no labirinto que leve de volta ao aconchego da paz. Talvez ela esteja bem próxima, contígua, mas, como não é percebida, cansa pensar em descobrir os caminhos a tomar, porque isso também é falta de paz. Então quedar quieto, nesse quietismo das palavras, quem sabe a paz dependa disso, desse encontro com as palavras. 

domingo, 23 de outubro de 2011

broken mirror

Picasso, Girl Before a Mirror, 1932 (aqui)

Diante do espelho quebrado, a ilusão da ilesa face original. Espelho quebrado ― contingência com que mais cedo ou mais tarde a face vai se defrontar. Não há como restaurar o espelho. Não há como prescindir de uma face. Que nela não se espelhe, qual mosaico tênue, o espelho quebrado (vísceras íntimas) do sujeito. Mas, fugindo à rigidez da armadura quixotesca, possa a face não mentir ao desencontro com o espelho. 

the end of the affair (animação)

geografia

Ainda no território dos sonhos, num deles eu me via, nitidamente, passando de ônibus em frente ao local onde houve a explosão do restaurante, na Praça Tiradentes. É quase certo que, no intrincado de ruas que é o centro do Rio de Janeiro, eu já tenha passado por lá, certamente a pé, procurando alguma loja ou quem sabe mesmo apenas passando. Eu passava, no sonho, de ônibus ― pois que no dia do acidente eu me dirigia de ônibus para o Centro e ouvia as conversas a respeito, um dos relatos particularmente inusitado ― e olhava o local, subitamente reconhecido a partir das imagens da mídia e de um imaginário difuso, com uma familiaridade incômoda, um reconhecimento súbito do desastre já acontecido, e que portanto não mais me ameaçava, aquele desastre, é bom frisar, que no entanto custou a vida de quatro pessoas que não sabiam que, naquele dia, não era para passar ou estar ali ―, mas ao mesmo tempo passando em frente ao local do crime, protegida pelo ônibus. E essa proteção remete ao estranho relato que escutei aquele dia no ônibus, e às coisas que me aconteciam naquele dia enquanto me dirigia à zona sul para mais uma sessão de análise. Há nisso tudo intrincadas questões de geografia, não a aprendida na escola.  

se eu seria personagem (título de um conto de Guimarães Rosa)

Eu sinto este espaço, a escrita, quando me apanho a considerá-lo, como uma espécie de personagem. A pessoa que está escrevendo aqui apresenta pontos de intercessão comigo, mas é um eu diferente de tudo que já conheci em mim. Esse distanciamento foi efeito de tempo e da própria escrita, de vivenciá-la de uma forma nova. Há um texto de Luiz Costa Lima, “Persona e sujeito ficcional”, em que ele afirma o caráter por assim dizer personificado de qualquer indivíduo da espécie humana:

“Mas o que é ser uma pessoa? Como toda pergunta trivial ao ser levada a sério, esta é uma pergunta incômoda. Se queremos desbanalizá-la, não resta outro meio senão enfrentá-la. Recorde-se, de início, a singularidade da sociedade humana, entre as outras sociedades animais. Ao nascer, o animal está biologicamente preparado para a vida em espécie. O homem, ao contrário, como já se escreveu, biologicamente é um imaturo; necessita por isso compensar sua deficiência com armas de que não veio geneticamente provido. Costuma-se pensar nessa superação pela capacidade humana de se investir de ferramentas de que não estivera revestido; de por elas prolongar o alcance de seus braços e o limite de seus sentidos. É necessário entretanto não esquecer que tal ultrapasse tem uma contrapartida psíquica: ao mesmo tempo que o homem tem de se instrumentalizar para fora, precisa criar, dentro de si, uma carapaça simbólica; constituir sobre o indivíduo que é, biologicamente, a persona, a partir da qual estabelecerá as relações sociais. A persona não nasce do útero senão que da sociedade. Ao tornar-me persona, assumo a máscara que me protegerá de minha fragilidade biológica. Se nossa imaturidade biológica não nos entrega prontos para a vida em espécie, então a convivência social será direta e imediatamente marcada pela constituição variável da persona. Sem esta, aquela se torna impensável. Não custa entender-se que a persona só se concretiza e atua pela assunção de papéis. É pelos papéis que a persona se socializa e se vê a si mesma e aos outros como dotados de certo perfil; com direito pois a um tratamento diferenciado. (...) O importante a considerar é que a armadura da persona é sempre uma plástica argila, passível de desenhos até mesmo contraditórios. Manter-se sempre igual a si mesmo equivaleria a destruir a própria armadura. (...) Exercer um papel não é necessariamente uma forma de desonestidade. O elogio da autenticidade na verdade apenas confessa que continuamos guiados pela antiga dicotomia entre aparência e essência. Segundo ela, o desempenho de papéis seria uma forma de nos comprometermos com o teatro do mundo, em que aceitaríamos ser atores. Em troca, para as almas honestas sempre haveria a chance de desprenderem-se de suas máscaras e entrarem em contato com a essência individual. Mas que essência tem o homem se não se faz homem senão pelo que não é naturalmente, i.e., pela posse da linguagem? Ora, fazer-nos homens pela linguagem significa fazer-se pelo outro, pela imagem que em nós se deposita a partir de sua palavra. É a palavra do outro (...) que modela nossa persona, a ‘fera’ que nos inventamos.”

Mesmo que o pressuposto de que parte o autor seja problemático, e que não se admita como válida a descontinuidade entre o psíquico e o biológico, não deixa de ser curioso pensar que por estranhos intercâmbios entre os mecanismos físicos e psíquicos desenvolva-se no homem uma constituição íntima que ele supõe autêntica, natural, espontânea, quando na verdade foi um processo à revelia de suas vontades ou escolhas: ou seja, estas, a vontade e as escolhas, atribuídas a alguma porção autônoma de nós mesmos, já estavam inscritas no processo curiosíssimo, de difícil acesso, do estabelecimento, como uma segunda pele, da persona. Acreditamos na ilha da autenticidade (ou na autenticidade da ilha), mas essa crença mesma já faz parte da persona. Um trecho de Guimarães Rosa paradigmático: “Note-se e medite-se. Para mim mesmo, sou anônimo; o mais fundo de meus pensamentos não entende minhas palavras: só sabemos de nós mesmos com muita confusão.” 

COSTA LIMA, Luiz. Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p.42-47.

ROSA, João Guimarães. Tutaméia. 8. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.199.