Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 11 de maio de 2010

Nietzsche e a linguagem - um trecho de "Humano, demasiado humano"

“A importância da linguagem para o desenvolvimento da cultura está em que nela o homem estabeleceu um mundo próprio ao lado do outro, um lugar que ele considerou firme o bastante para, a partir dele, tirar dos eixos o mundo restante e se tornar seu senhor. Na medida em que por muito tempo acreditou nos conceitos e nomes de coisas como aeternae veritates [verdades eternas], o homem adquiriu esse orgulho com que se ergueu acima do reino animal: pensou realmente ter na linguagem o conhecimento do mundo. O criador da linguagem não foi modesto a ponto de crer que dava às coisas apenas denominações, ele imaginou, isto sim, exprimir com as palavras o supremo saber sobre as coisas; de fato, a linguagem é a primeira etapa no esforço da ciência.” (NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 21).

o perspectivismo em Nietzsche

Assim Renarde Freire Nobre apresenta o perspectivismo em Nietzsche: “Nietzsche formula sua crítica ao conhecimento conforme sua dimensão fenomenal, como o faz com todas as demais representações que figuram na consciência. Acontece que o fenomenalismo nietzschiano possui bases e segue percursos bem distintos do lado kantiano. Em uma imagem, quando Kant olhou para o horizonte longínquo que se instala no encontro do ‘céu com o mar’, ele chamou de mundo sensível toda a extensão abrangida pelo intelecto ligada à experiência; a partir desse ponto, ele chamou o que não se explica de mundo supra-sensível, o domínio do noumeno (a coisa-em-si). Nietzsche recusou a distinção entre mundos ou faculdades humanas, mesmo supondo relações entre eles. Para ele, não há o pensar, o sentir e o desejar como domínios exclusivos e separados; todo conhecer é tão-só um horizonte provisório e mutável de forças que, por transformação e corporificação, fazem-nos seres desejosos, sensíveis e pensantes. Mais precisamente, para ele a elaboração do pensamento estava subordinada aos impulsos, simplesmente porque só se pensa a partir de impulsos, sendo os fenômenos da consciência expressão de impulsos incorporados, sintomatologias espirituais que se apresentam como ajustes (jogos de domínios) entre impulsos diferenciados. Ou seu fenomenalismo é, mais originalmente, um perspectivismo de afetos. Não que os impulsos exatamente pensem; a melhor imagem é a de que na base dos pensamentos que se tornam conscientes há jogos impulsivos. [...] Os pensamentos, tal como eles se apresentam à consciência, são perspectivas que se baseiam fundamentalmente na memória e no uso dos recursos da linguagem, como as metáforas e as metonímias. Mas o homem é, antes de tudo, um campo sensitivo, natureza e desrazão. Tudo o que se processa como pensamento (palavras, ideias, imagens) encontra-se, de uma maneira ou de outra, afetado pela rede de nossas sensibilidades e dos impulsos mais recônditos de nosso ser, como condições últimas de nossa capacidade de simbolização. Os afetos corporais e as impressões subjetivas têm uma inscrição visceral e indelével no pensamento. [...] O pensar nunca designa uma transcendência, mas uma serie de perspectivas simbólicas em uma cadeia de perspectivas afetivas muito mais indecifráveis do que as materializações mentais.” (NOBRE, Renarde Freire. Perspectivas da razão: Nietzsche, Weber e o conhecimento. Belo Horizonte: Argumentum Editora, 2004, p. 57-58)

"Eu estou depois das tempestades" - Riobaldo (GSV)

Trecho do conto "O espelho", de Guimarães Rosa, uma de suas narrativas mais epifânicas. O espelho, o outro, a busca da "vera forma", ensejando muitas descobertas: “São coisas que não se devem entrever; pelo menos, além de um tanto. São outras coisas, conforme pude distinguir, muito mais tarde — por último — num espelho. Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava — já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria. E... Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto — quase delineado, apenas — mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá?” (Primeiras estórias, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, p. 72.)

"E aquela era a hora do mais tarde" - Grande sertão: veredas

"E aquela era a hora do mais tarde. O céu vem abaixando. Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi." 

João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas, 19. ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 616.