Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 23 de outubro de 2010

Chico Buarque - "Fado Tropical"

[do documentário "Fados", de Carlos Saura, com Carlos 
do Carmo declamando os trechos falados da canção]

Chico Buarque - "Construção"

comentário: heróis

Os heróis

Mesmo em Camus ― esse amor pelo heroísmo. Então não há outro modo? Não, mesmo compreender já é um heroísmo. Então um homem não pode simplesmente abrir uma porta e olhar? 

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.237.

P.S. Creio que o outro título que dei, embora falasse de uma dificuldade, ficou presunçoso. Depois de uma tarde de shopping center, com direito à gente pelas calçadas na ida e na volta, pode de fato soar presunçoso sustentar qualquer fala acerca de heroísmo. Então sai o comentário que escrevi, entra esse texto sem sabor de nada. Há pessoas vivendo em calçadas, enquanto outras lotam salas de cinema em busca do herói da vez, que atente pelo nome de capitão nascimento.

aforismo

"Nada do que vive se exprime impunemente em vocábulos" ― Sérgio Buarque de Holanda, 1925.

Mário Faustino: vida: perfeita língua eterna

VIDA TODA LINGUAGEM

Vida toda linguagem,
frase perfeita sempre, talvez verso,
geralmente sem qualquer adjetivo,
coluna sem ornamento, geralmente partida.
Vida toda linguagem,
há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome
aqui, ali, assegurando a perfeição
eterna do período, talvez verso,
talvez interjetivo, verso, verso.
Vida toda linguagem,
feto sugando em linguagem compassiva
o sangue que a criança espalhará ― oh metáfora ativa!
leite jorrado em fonte adolescente,
sêmen de homens maduros, verbo, verbo.
Vida toda linguagem,
bem o conhecem velhos que repetem,
contra negras janelas, cintilantes imagens
que lhes estrelam turvas trajetórias.
Vida toda linguagem ―
como todos sabemos
conjugar esses verbos, nomear
esses nomes:
amar, fazer, destruir,
homem, mulher e besta, diabo e anjo
e deus talvez, e nada.
Vida toda linguagem,
vida sempre perfeita,
imperfeitos somente os vocábulos mortos
com que um homem jovem, nos terraços do inverno, contra a chuva,
tenta fazê-la eterna ― como se lhe faltasse
outra, imortal sintaxe
à vida que é perfeita
língua
eterna.

FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009, p.70-71.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

o surgimento da crítica moderna segundo Koselleck

Reinhart Koselleck narra em Crítica e crise o surgimento da crítica moderna e sua vinculação estreita à ascensão da burguesia ao poder: “A burguesia moderna certamente nasce do foro interior secreto de uma moral de convicção privada e se consolida nas sociedades privadas” (p.67). Koselleck mostra como as guerras civis religiosas dos séculos XVI e XVII engendraram a necessidade do Estado absolutista, com a separação dos domínios da política e da moral. A consolidação do Estado moderno, por seu turno, apóia-se na teoria de Hobbes: “O Estado moderno surge, em Hobbes, tendo como pressuposto a cisão do homem em homem e cidadão” (p.36), correlata à cisão operada entre moral (domínio privado) e política (espaço público). Ou melhor: moral e política são obrigados a coincidir “quando a razão está diante da alternativa histórica entre guerra civil e ordem estatal” (p.33). O conteúdo histórico é o bastidor fundante da separação entre política e moral, ou esfera pública e privada, que condicionou o surgimento da crítica. No sentido de uma cisão do homem em homem e cidadão, o homem se tornará o refúgio de concepções morais que não podem contrariar os interesses do Estado. A ascensão e queda do Absolutismo está relacionada à progressiva extensão dos domínios do homem sobre o cidadão, por mais contraditório que isso possa parecer, e, por conseguinte, sobre a política. É que o confinamento da subjetividade ensejada pela tentativa de pacificação das guerras de religião teve como contraponto o surgimento da esfera pública e da Estética, conforme informa também Terry Eagleton em A função da crítica e Ideologia da estética. Isso se inicia na Inglaterra, no final do século XVII, com a sistematização de John Locke, que transforma esse foro privado de opinião em uma terceira lei, ao lado da lei religiosa e da lei do Estado, a lei da opinião, com poder de julgar: “Para a sociedade ascendente, as convicções se tornam um constante exercício de juízo” (p.53). A Inglaterra do século XVIII assiste assim à emergência do espaço público: “O juízo dos cidadãos, que se legitima a si mesmo como verdadeiro e justo ― isto é, a censura e a crítica ―, torna-se o poder executivo da nova sociedade” (p.53). O espaço público surge assim estreitamente associado à atividade da crítica, algo que se estenderá a todo o continente. Koselleck chama Locke de pai espiritual do Iluminismo burguês: “O advento da inteligência burguesa tem como ponto de partida o foro interior privado ao qual o Estado havia confinado seus súditos. Cada passo para fora é um passo em direção à luz, um ato de esclarecimento. O Iluminismo só triunfa na medida em que expande o foro interior privado ao domínio público. Sem renunciar à sua natureza privada, o domínio público torna-se o fórum da sociedade que permeia todo o Estado” (p.49). Segundo Koselleck, essa expressão judicativa se fará mediante duas instâncias, a franco-maçonaria e a república das letras. En passant, é interessante acompanhar a discussão em torno da separação entre razão e religião, pela submissão desta à instância da crítica, a chamada terceira lei (p.98-99). No que concerne à república das letras, o autor delimita melhor o conceito de crítica. O que importa reter é que a crítica moderna emerge de um contexto de conquista e expansão da esfera pública, e que sua ação judicativa encontrou nesse mesmo espaço a sua justificação. Em nota, Koselleck informa que a palavra “crítica é um tópico do século XVIII” (p.201, nota 151). Dito de outra forma, a crítica “emprestou seu nome ao século XVIII” (p.92). Nesse sentido, delineia-se um sentido amplo para o termo, que Koselleck procura especificar: “É inerente ao conceito de crítica levar a cabo uma distinção. A crítica é uma arte de julgar. Sua atividade consiste em interrogar a autenticidade, a verdade, a correção ou a beleza de um fato para, a partir de um conhecimento adquirido, emitir um juízo que, como indica o emprego da palavra, também pode se estender aos homens” (p.93). Substitua-se “fato” por “obra” e tem-se a delimitação do âmbito da crítica moderna, de onde se diferencia a crítica literária. Na virada do século XVIII para o XIX, ainda não se fazia uma distinção tão marcada entre arte e literatura, ou entre arte e poesia, ou entre poesia e literatura, por exemplo, sem contar que literatura, na acepção que passa a ter a partir do Romantismo, foi tomado, em princípio, como um fenômeno eminentemente moderno, o que já é outra discussão. Ou seja, também a crítica literária não se distinguia, ainda, da crítica no sentido amplo do termo, tal como o emprega Koselleck. 

KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Trad. Luciana Villas-Boas Castelo Branco. Rio de Janeiro: EdUERJ; Contraponto, 1999. 

terceiras estórias

Muito se pergunta por que Guimarães Rosa não escreveu as segundas estórias, indo direto das primeiras para as terceiras estórias... É que ele quis se colocar além  ou aquém, não importa  da dicotomia, da velha história do bem versus mal etc. Um autor que projetou a terceira margem do rio não sucumbiria à tentação do maniqueísmo que, é sabido, tem movido a História, ensejando histórias que alimentam o imaginário coletivo. 

"sou um castelo de areia na beira do mar" (verdadeira pérola)


Grande sucesso dos anos 70, requinte do don juan disfarçado de romântico sem pouso, metáforas(!) baratas, baranguice a toda prova, sonoplastia de luxo, visual e performance cafonas  o resto fica por conta da imaginação... Mas tem um trechinho bonito, moderninho: "e a namorada analisada por sobre o divã", perfeitamente capaz de entender que veio uma onda... e levou o moço pra longe. Hahaha!!! Bem longe, de preferência!!! Aos entusiastas, segue a versão acústica (aqui) e a roupagem nova dada pelo Kleiton e Kledir (aqui). 

poesia da vida inteira (manuel bandeira)

Acabo de perceber que cometi um ato falho, mas vou deixar assim mesmo. Ao postar um poema de Manuel Bandeira, em vez de escrever "Estrela da vida inteira", escrevi "Poesia da vida inteira". A vida (dele) que é inteira poesia, a poesia (dele) fazendo minha vida inteira.

Manuel Bandeira

O bicho

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Cantando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

BANDEIRA, Manuel. Poesia da vida inteira. 20.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.201-202.
“Os grandes livros foram escritos
os grandes ditos foram ditos
e eu só quero tentar pintar um quadro
do que acontece por aqui de vez em quando
ainda que não entenda bem o que se passa
sei que morreremos algum dia
e que nenhuma morte deterá o mundo”

Bob Dylan, no LP Bringing it all back home

Epígrafe do livro A morte de D.J. em Paris, de Roberto Drummond (São Paulo: Ática, 1991)

Gates of Eden - Bob Dylan (a imagem congelada desse vídeo ficou um tanto estranha, mas é o queixo do intérprete contra seu pescoço: só para esclarecer)


Of war and peace the truth just twists
Its curfew gull just glides
Upon four-legged forest clouds
The cowboy angel rides
With his candle lit into the sun
Though its glow is waxed in black
All except when ’neath the trees of Eden

The lamppost stands with folded arms
Its iron claws attached
To curbs ’neath holes where babies wail
Though it shadows metal badge
All and all can only fall
With a crashing but meaningless blow
No sound ever comes from the Gates of Eden

The savage soldier sticks his head in sand
And then complains
Unto the shoeless hunter who’s gone deaf
But still remains
Upon the beach where hound dogs bay
At ships with tattooed sails
Heading for the Gates of Eden

With a time-rusted compass blade
Aladdin and his lamp
Sits with Utopian hermit monks
Sidesaddle on the Golden Calf
And on their promises of paradise
You will not hear a laugh
All except inside the Gates of Eden

Relationships of ownership
They whisper in the wings
To those condemned to act accordingly
And wait for succeeding kings
And I try to harmonize with songs
The lonesome sparrow sings
There are no kings inside the Gates of Eden

The motorcycle black madonna
Two-wheeled gypsy queen
And her silver-studded phantom cause
The gray flannel dwarf to scream
As he weeps to wicked birds of prey
Who pick up on his bread crumb sins
And there are no sins inside the Gates of Eden

The kingdoms of Experience
In the precious wind they rot
While paupers change possessions
Each one wishing for what the other has got
And the princess and the prince
Discuss what’s real and what is not
It doesn’t matter inside the Gates of Eden

The foreign sun, it squints upon
A bed that is never mine
As friends and other strangers
From their fates try to resign
Leaving men wholly, totally free
To do anything they wish to do but die
And there are no trials inside the Gates of Eden

At dawn my lover comes to me
And tells me of her dreams
With no attempts to shovel the glimpse
Into the ditch of what each one means
At times I think there are no words
But these to tell what’s true
And there are no truths outside the Gates of Eden

Copyright © 1965 by Warner Bros. Inc. Fonte: site oficial de Bob Dylan.
Interpretação por Bob Dylan e The Band - 1974 (link aqui).

loucos amenos

Liberdade, estranha companheira a habitar aqueles que se decidiram pelo locus amoenus, loucos amenos, loucos a menos. Como prescindir da liberdade? Cecília Meireles conseguiu a proeza de fazer convergir árcades e românticos, na bela homenagem que fez aos poetas inconfidentes: "Liberdade essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda!"

“Através de grossas portas,
sentem-se luzes acesas,
— e há indagações minuciosas
dentro das casas fronteiras.
 ‘Que estão fazendo, tão tarde?
Que escrevem, conversam, pensam?
Mostram livros proibidos?
Lêem notícias nas Gazetas?
Terão recebido cartas
de potências estrangeiras?’
(Antiguidades de Nimes
em Vila Rica suspensas!
Cavalo de La Fayette
saltando vastas fronteiras!
Ó vitórias, festas, flores
das lutas da Independência!
Liberdade — essa palavra,
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!)
E a vizinhança não dorme:
murmura, imagina, inventa.
Não fica bandeira escrita,
mas fica escrita a sentença."

Fonte: Releituras.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

"Thursday's Child"

sessão nostalgia - "era um garoto, que como eu..."

Gravação original: Os Incríveis. Versão: The Originals.

etimologia do termo "estória"

Segundo o dicionário Houaiss, o termo “estória”, um diacronismo, significa o mesmo que “história”; no Brasil, o registro do termo remonta a 1912, na acepção de “narrativa de cunho popular e tradicional; história”. Etimologicamente, informa o dicionário, vem do inglês story (sXIII-XV), “narrativa em prosa ou verso, fictícia ou não, com o objetivo de divertir e/ou instruir o ouvinte ou o leitor, do anglo-francês estorie, do francês antigo estoire e, este, do latim historìa,ae; forma divergente de história adotada pelo conde de Sabugosa com o sentido de narrativa de ficção, segundo informa J. A. Carvalho em seu livro Discurso & Narração, Vitória, 1995, p. 9-11”. José Augusto de Carvalho, no texto citado por Houaiss, afirma: “Em 1912, em Portugal, Antonio Maria José de Melo Silva César e Menezes, conde de Sabugosa, no prefácio de seu livro Dama dos tempos idos, propõe o termo estória para designar a narrativa de ficção. No Brasil, proposto por João Ribeiro e encampado por Gustavo Barroso, em 1942, o termo adquiriu popularidade e prestígio, graças, possivelmente, à publicação, em 1962, do volume de contos Primeiras estórias, de Guimarães Rosa. O termo estória nasceu, portanto, no século XX, de uma subversão ortográfica calcada no inglês [...]”. (CARVALHO, J. A. Discurso & narração. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida/UFES, 1995, p.9). Não é o que a datação informada pelo dicionário sugere. O fato é que se trata de um termo pelo qual Guimarães Rosa nutria grande apreço, o que é evidente no seu emprego em suas narrativas e na declaração que abre “Aletria e hermenêutica”, primeiro prefácio de Tutaméia, também intitulada Terceiras estórias: “A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida com a anedota.” (ROSA, João Guimarães. Tutaméia. 7. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p.7.) 

re-signar

Atravessando uma rua, num sinal de trânsito, me ocorre que "resignado", pelo acréscimo de um hífen depois da primeira sílaba, mudaria radicalmente de sentido. Vou ao dicionário e confirmo a intuição. Resignar, verbo pronominal, etimologicamente vem do latim resígno, 'tirar o selo, deslacrar, abrir (uma carta); desvendar, descobrir; resignar, renunciar; lançar em rol, fazer assento de; quebrar, violar, anular'. Como uma palavra, com esse potencial de transgressão, reduziu-se a "submeter-se sem revolta a; acatar, conformar-se", é desses mistérios que só a história que não é contada poderia desvendar, deslacrar. Parece que a própria linguagem foi domesticada pela resignação humana.

Clarice Lispector: "Miopia Progressiva" (trecho final)

"E foi como se a miopia passasse e ele visse claramente o mundo. O relance mais profundo e simples que teve da espécie de universo em que vivia e onde viveria. Não um relance de pensamento. Foi apenas como se ele tivesse tirado os óculos, e a miopia mesmo é que o fizesse enxergar. Talvez tenha sido a partir de então que pegou um hábito para o resto da vida: cada vez que a confusão aumentava e ele enxergava pouco, tirava os óculos sob o disfarce de limpá-los e, sem óculos, fitava o interlocutor com uma fixidez reverberada de cego." (Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.24.)

Emily Dickinson

Na Primavera um quê de Insensatez
Até ao Rei lhe fará bem, talvez,
Mas Deus ao Bobo dê razão ―
Que acha que esse cenário excepcional ―
Esse Ensaio de Verde universal ―
É sua própria criação.

A little Madness in the Spring
Is wholesome even for the King,
But God be with the Clown ―
Who ponders this tremendous scene ―
This whole Experiment of Green ―
As if it were his own.

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.270-271.

Sentinela

escolhas: as letras com que algumas ilhas fazem-se ouvir

No ensino médio (antigo segundo grau), o estoque de inteligência parece inesgotável. A capacidade de lidar, valendo-se o mais das vezes da memória, com disciplinas muito diferentes, tentando sair-se bem da empreitada e de quebra passar num vestibular, é algo que desafia a capacidade humana de pensar. É como se vários compartimentos do cérebro estivessem sendo acionados independentemente: desliga a geografia, aciona a história, esquece a física... para lembrar de todas elas, do que se conseguiu decantar e/ou memorizar, na hora da famigerada prova do vestibular (que já foi, no Brasil, tecnicamente mais difícil, mas paradoxalmente menos concorrido, pelo menos nas universidades públicas). Nessa época de grande confusão mental, as escolhas se impõem. Qual ramo, ou especialidade, do saber escolher? Sobra algum saber para escolher? Na nebulosa daqueles tempos, comecei a perceber os limites do meu estoque de inteligência. Entendia vagamente a complexidade da Física, o bastante para perceber que não era um caminho a seguir. Aquilo tudo era muito bonito, complexo, difícil. Declinei. Escolhi Biologia, inspirada pela beleza da ilustração de uma célula. Tempos depois, a Biologia pareceu-me uma escolha insensata, cheia de desertos epistemológicos ― expressão chique com que tento traduzir a funda angústia que senti ao perceber que a moderna apropriação de Darwin pela teoria do gene egoísta tornava o ser humano mais vil, eu incluída, que toda a minha inocência antiga jamais poderia supor, suspeitar, entrever, adivinhar. Atirei-me a Fernando Pessoa, e ao que veio a reboque da tentativa de discernir alguma luz após o túnel. Impuseram-se as Letras. Na confusão de letras mal traçadas em que traçam-se escolhas, talvez tenha se confirmado para mim, por outras letras, a vileza do ser humano. A teoria do gene egoísta talvez seja muito mais verdadeira do que meu horror quis então acreditar. Holocaustos do século XX, escravidões de todos os séculos, guerras milenares, servidão desde a aurora das cavernas, submissão de tudo o que não é "macho adulto branco sempre no comando". O que sobra? Senti, certa feita, um profundo carinho pelo ser humano quando li sobre a origem da linguagem, dos sons articulados, e imaginei a dor física que ele certamente sentiu ao desenvolver a capacidade de falar, pois foi um esforço contra a natureza. Sobram as letras com que algumas ilhas fazem-se ouvir entre si, não de todo alheias ao imenso barulho dos genes egoístas.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Genesis - The Carpet Crawlers

Versão em estúdio (link aqui). Essa música, que eu aprendi a ouvir com um rapaz que conheci faz mais de vinte anos (como tudo o que diz respeito a rock), cujo amor por mim se traduzia nos gestos mais desprendidos e surpreendentes... essa música eu perdi de vista esse tempo todo, mas me lembrava de alguma coisa, vagamente a melodia. E de tanto procurar no google, acabei chegando a ela. Então, num dia como hoje, em que o mundo parece um pouco mais estúpido, hostil e incompreensível que o habitual, ouvir essa música é lembrar de um tempo muito bom... "There's no hiding in memory / There's no room to avoid... / We've got to get in to get out."

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Bob Dylan - The Times They Are A-Changin (1965)

ironia romântica: o absoluto possível

“A concepção fichteana do sujeito como dobra que se desdobra em eu-sujeito e eu-objeto ou espectador e ator do mesmo drama gnosiológico perpassa a revolução fundamental a que Friedrich Schlegel submete o conceito de ironia. Schlegel se credencia como principal teórico da ironia romântica, sobretudo porque a define como princípio de construção da poesia moderna em verso ou em prosa. A ironia que se caracteriza como romântica, no sentido do romantismo de Jena, postula o primado teórico da contradição e da inconclusividade do discurso genuinamente poético.” [MELO e SOUZA, Ronaldes de. Fichte e as questões da arte: a filosofia de Fichte e a poesia moderna. In: CASTRO, Manuel Antônio de (Org.). A arte em questão: questões da arte. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p.129.]

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“Schlegel avança um passo. Concorda com Fichte quando este afirma que a realização plena do ideal da liberdade humana não é possível. Mas, acrescenta ele, não é possível para a filosofia. E o que a filosofia não pode, visto que ela é abstrata, torna-se exequível para a arte. Se a filosofia não consegue concretizar o ideal da liberdade humana, a arte pode ao menos indicar um caminho que leve a tal concretização. De onde vem esse poder da arte? Na criação artística, o homem serve-se do sensível para dominá-lo e, através desse domínio, o Não-eu, o mundo sensível, como que se espiritualiza, se idealiza. Através da idealização que é a obra de arte, estabelece-se a unidade entre o real e o ideal. Assim, a unidade presente de modo abstrato na teoria de Fichte torna-se concreta na estética de Schlegel. Na arte, o homem aceita o mundo sensível, mas transfigurado por um sentido que lhe foi emprestado pelo espírito.” [BORNHEIM, Gerd. Filosofia do romantismo. In: GUINSBURG, Jacó (Org.). O romantismo. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002, p.93.]

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As questões que a poesia moderna coloca são antes formais, mais do que temáticas. Na poesia romântica, a morte não é apenas um tema, mas um princípio de composição, figurando como uma perspectiva do absoluto possível. A expressão é utilizada por Jaime Ginzburg em sua discussão sobre as estreitas relações entre ironia e melancolia na filosofia e na estética do Romantismo. Na revisão que faz do tema, o autor assinala que no Romantismo o Absoluto é deslocado da exterioridade do homem para a sua própria consciência, quando então seriam vivenciados dois movimentos: o contato com o Absoluto, vivido como entusiasmo, e a queda na imanência, vivida como ironia. A ironia romântica consistiria exatamente na consciência dessa precariedade: “O percurso irônico é ambivalente por incluir um lado de transcendência e um de inocuidade. A interpenetração entre o divino e o terreno se dá como impasse, sem uma síntese que restitua à relação entre o sujeito e o objeto o sentido que a queda suprimiu.” Essa consciência levaria à negatividade, pela possibilidade de perda de sentido do mundo: “se, por um lado, o eu é o fundamento na relação sujeito-objeto, e qualquer objeto tem seu valor atribuído pelo sujeito, por outro, o fato de o eu ser o princípio de tudo acaba por destituir os objetos de um valor a eles inerente, esvaziando o interesse do eu pela realidade.” Assim, no Romantismo, a morte é vivida como uma possibilidade de aniquilamento do eu, que finalmente poderia se encontrar com o absoluto. 


GINZBURG, Jaime. Olhos turvos, mente errante: elementos melancólicos em Lira dos vinte anos, de Álvares de Azevedo. 1997. 321f. Tese (Doutorado em Letras) – Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1997, p.80.

Emily Dickinson

In this short Life
That only lasts an hour
How much ― how little ― is
Within our power

Nesta Vida tão breve
De que nos dão só um gole
Quanto ― quão pouco ― está
Sob o nosso controle

DICKINSON, Emily. Não sou ninguém: poemas. Trad. Augusto de Campos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008, p.98-99.