Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 22 de setembro de 2012

Mário Quintana

DAS UTOPIAS

Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A mágica presença das estrelas!

Mário Quintana. Nova antologia poética. São Paulo: Globo, 2007, p.134.

amizade

Numa aula sobre algumas das figuras de linguagem mais conhecidas, o exemplo dos olhos metonímicos levou um aluno a dizer que os meus estavam me entregando. Eu disse que meus olhos são meus amigos.

Nuno Júdice

METAFÍSICA

Às vezes, um verso transforma o modo como
se olha para o mundo; as coisas revelam-se
naquilo que imaginação alguma as supôs; e
o centro desloca-se de onde estava, desde
a origem, obrigando o pensamento a rodar
noutra direcção. O poema, no entanto, não
tem obrigatoriamente de dizer tudo. A sua
essência reside no fragmento de um absoluto
que algum deus levou consigo. Olho para
esse vestígio da totalidade sem ver mais
do que isso — o desperdício da antiga
perfeição — e deixo para trás o caminho
da ideia, a ambição teológica, o sonho do
infinito. De que eternidade me esqueço,
então, no fundo da estrofe?

Nuno Júdice. Por dentro do fruto a chuva. São Paulo: Escrituras, 2004, p.82.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Cacaso

TÁXI

O poeta passa de táxi em qualquer canto e lá vê
o amante da empregada doméstica sussurrar
em seu pescoço qualquer podridão deste universo.
Como será o amor das pessoas rudes?

O poeta não se conforma de não conhecer
todas as formas da delicadeza.

CACASO. Lero-lero. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.16. 

a palo seco

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Miguel Marvilla


TODAS AS COISAS DIFÍCEIS

Ninguém pensa impunemente
numa escrita permanente
da vida que se levou.
Há sempre sob o lençol
um corpo irreconhecível
em seu próprio imaginário:
um aquário cheio de bile,
peixes nadando ao contrário.

Resvalando nos silêncios,
o que aflora à superfície,
depois do mundo acabado,
é noite sem lua dentro:
todas as coisas difíceis
que foram postas de lado.

A parte que nos toca: literatura brasileira feita no Espírito Santo (Org. Miguel Marvilla e Reinaldo Santos Neves). Vitória: Florecultura, 2000, p.157.

domingo, 16 de setembro de 2012

dagdraumar

an act or state of absent minded day dreaming

redenção

Escrever tem sido minha redenção, em muitos sentidos.

rituais

Minha polidez foi esculpida sobre material resistente. Daí, amiúde, a sensação de que ela é frágil e precisa de atenção constante. Não que eu seja artificialmente educada. A educação é sempre um artifício, uma batalha que se trava contra o corpo e a natureza. É que não domino todos os traquejos das pessoas ditas civilizadas e, ao primeiro vinho, a franqueza inadvertidamente, sem querer, por vezes transborda. A vida é feita de rituais, e a civilização é apenas um deles. Ou terá sido construída sobre o recalque de outros rituais, a ponto de ter-se a impressão de vivermos uma vida desritualizada?

sensibilidade

Eu tento escutar, mas é difícil, porque depende de minha sensibilidade também, e esta precisa ser ensinada.

intervalo de liberdade

fragmentos

Sonhei com flores ― rosas vermelhas ― esquartejadas pela minha mãe. Outras coisas, importantes, compuseram o enredo, e pela manhã senti, ao me lembrar, por relances, dos fragmentos ― das rosas, do sonho, dos afetos ―, senti alívio.