Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 3 de setembro de 2011

Herberto Helder

As pálpebras batem contra o grande dia masculino
do pensamento.

Herberto Helder. Ou o poema contínuo. São Paulo: A Girafa, 2006, p.108.

Guenádi Aigui

SONHO: CAMINHO NO CAMPO

se quase não existes ― para que
buscar um outro

que não consiste em corpo?...

que esperas do caminho? uma sombra
que encerra algo...

alimento inefável:

que ali também não há...

daquele que antes passa
não descobrirás

nem rastros...


Poesia russa moderna. Trad. Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 2001, p.389.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

por enquanto é tempo de morangos

"Vou-me embora, pensou: a estrada é longa.
Tocou então o próprio corpo. Uma glória interior, foi assim que batizou solene, infinitamente delicado, quando ela brotou. Arpejo, foi o que lhe ocorreu, ridículo complacente, cor-nu-có-pia soletrou, quero um instante assim barroco, desejou. Mas vestido de amarelo como estava, visto de costas contra o céu, supondo uma câmara cinematográfica colocada aqui na porta desta sala o enquadrasse agora pareceria quase bizantino, ouro sobre azul, magreza mística, que tinha sua cultura, sua leitura.

ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. ___. Morangos mofados. 9.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.152.

a roupa suja da vida

Enquanto tomava banho e repassava a difícil semana, as idas e vindas a médicos nos últimos dias, me ocorreu que a linguagem é inseparável do que sou (e não sou), e portanto dos problemas de saúde que tenha ou venha a ter. A linguagem ― a escrita ― é uma forma de expurgar males orgânicos, e então duas coisas aconteceram concomitantes: ao dirigir-me à máquina de lavar para deixar uma peça de roupa, insensivelmente caminhei para a lixeira da cozinha e abri-a, e só então me dei conta do que estava fazendo, e recordei no átimo uma fala antiga, escutada de uma professora versada em atos falhos: relatava que uma moça, ao falar sobre jogar as roupas no cesto de roupa, teria dito: vontade de jogar todas essas roupas no cesto de lixo. Os problemas, quantas vezes, quando não se consegue lavá-los como uma roupa suja, que tentação, que vontade desfazer-se deles pelo cesto de lixo. Pelo menos ao escrever, não importa se lixo, eu estou me limpando um pouco mais por dentro, complementando o banho. Talvez haja formas mais elaboradas de fazer isso, mas a sintaxe também oprime.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

primeiro de setembro

Por ser hoje o primeiro dia de um novo mês, não um mês qualquer, mas setembro, e pelo muito que coube no dia de hoje, eu vislumbrei, quando ouvi alguém dizer hoje é primeiro de setembro, como num ritual antigo de primavera, a possibilidade da vida se renovar. 

o nó cego da vida

Já vi um homem sem rosto ― sem face? Era uma deformidade, ou perda, a tal ponto estranha, que o que restava não compunha uma face, não encontrava lugar numa narrativa. Isso faz tempo, estava indo para uma sessão de análise. Vi também, há pouco tempo, um ser muito mutilado esmolando, gritando por caridade, filho que não encontrou pai ou mãe, em frente a uma agência bancária. Dentro da agência, em que precisava entrar para apanhar o dinheiro que move a engenhoca, falas e olhares constrangidos ― isso é uma questão social... ― enquanto me vinha o pensamento de sempre, diante de situações absurdas: como passar diante do horror de mãos dadas com meu amor? Vi casais passando, apertando o passo, desviando o olhar, unindo mais firmemente as mãos diante do súbito desamparo: seus sonhos são doces, prevêem filhos sadios, querem muito estar sempre, forevermore, num comercial de margarina. A fantasmagoria não pode turvar seu desejo. Eu ainda não aprendi a passar incólume pela face do horror da vida. Este texto, na verdade, está entrando no lugar de outro, o insólito do dia de hoje, em que busquei avidamente me aproximar do sagrado. Fragmentos produzindo um brado matinal, dirigido à atual analista quase como um grito que não pode mais esperar: eu não sou máquina! O bonde descarrilou, houve vítimas fatais, e a Ana precisava chegar ao Jardim Botânico. A outra Ana chegou, depois do brado, e teve um interlúdio de paz naquele refúgio em que havia o murmúrio de uma pequena cachoeira, o bastante para acalmar difíceis memórias. Depois o inacreditável de uma missa assistida do início ao fim, com direito àquela bendita hóstia e lágrimas. Mas logo depois, caminhando em busca de comida, alimento para o corpo, eu vi uma barata esmagada na calçada, e lembrei-me daquela outra comunhão, mais severa, atroz, quase impossível, quem sabe motivada pela tentativa de aceitar, humildemente, a estupidez da vida, seu horror, aceitar, essa palavra tão difícil, porque não faz sentido sem o movimento efetivo da aceitação, assim como o sim é performativo: dizer sim é aceitar. Barata morta, notícia do bonde, Jardim Botânico, massa branca da hóstia ― em qualquer desordem. Minhas dores serão justas? Ou por elas uma outra coisa está me sendo dita?