Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Cecília Meireles

SUGESTÃO

Sede assim — qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Flor que se cumpre,
sem pergunta.

Onda que se esforça,
por exercício desinteressado.

Lua que envolve igualmente
os noivos abraçados
e os soldados já frios.

Também como este ar da noite:
sussurrante de silêncios,
cheio de nascimentos e pétalas.

Igual à pedra detida,
sustentando seu demorado destino.
E à nuvem, leve e bela,
vivendo de nunca chegar a ser.

À cigarra, queimando-se em música,
ao camelo que mastiga sua longa solidão,
ao pássaro que procura o fim do mundo,
ao boi que vai com inocência para a morte.

Sede assim qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Não como o resto dos homens.

Cecília Meireles. Antologia poética. 3.ed. São Paulo: Global, 2013, p.68-69.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

uma nota de humor no fim da tarde

Aconteceu no ponto de ônibus. Que, no Rio de Janeiro, dependendo do bairro, é também ponto das vans. As vans trabalham em geral com um trocador, que vai cantando o destino à medida que passa nos pontos. Por exemplo: “sulacap-taquara-recreio”  a que se costuma acrescentar: “vaga sentado”. Tudo isso prolongando o “o” de sentadooo. Talvez seja impossível reproduzir em palavras o pequeno chiste que o inusitado de uma situação ensejou. Um gari dependurado no carro de coleta de lixo passou no ponto cantando um destino qualquer das vans, não esquecendo a “vaga sentadooo”. Naturalmente se ele, depois de um dia pesado de trabalho, tinha disposição para brincar com os passageiros também cansados que aguardavam no ponto, por que não retribuir? E, de fato, ficou engraçado, algumas pessoas riram, talvez pela surpresa de alguém extrair humor do que comumente é opaco.

Cecília Meireles

NESTE LONGO EXERCÍCIO DE ALMA...

Ciência, amor, sabedoria,
— tudo jaz muito longe, sempre...
(Imensamente fora do nosso alcance!)

Desmancha-se o átomo,
domina-se a lágrima,
vence-se o abismo:
— cai-se, porém, logo de bruços e de olhos fechados,
e é-se um pequeno segredo
sobre um grande segredo.

Tristes ainda seremos por muito tempo,
embora de uma nobre tristeza,
nós, os que o sol e a lua
todos os dias encontram,
no espelho do silêncio refletidos,
neste longo exercício de alma.

Cecília Meireles. Antologia poética. 3.ed. São Paulo: Global, 2013, p.309.

sweet music

domingo, 25 de agosto de 2013

alguns trabalhos premiados no 40º Salão Internacional de Humor de Piracicaba (SP)

Trabalho de José Antonio Costa Jota A (Brasil), vencedor na categoria tiras

Trabalho de Rafael Correa (Brasil), menção honrosa em charge

Trabalho de Angel Boligan (México), vencedor do prêmio temático de futebol

Trabalho de Goran Divac (Sérvia), vencedor da categoria cartum e do Troféu Zélio de Ouro

caetano hoje n'o globo

“Mas tenho de manter a minha fama de mau. O que desejo, no entanto, é tomar o 2 de Julho baiano deste ano como exemplo do que deve ser o 7 de Setembro nacional. Li no Jânio deFreitas (...) palavras indignadas com a agressão à emergência do Hospital Sírio-Libanês perpetrada pelos grupos violentos que se tornaram um lugar-comum do estágio final de cada passeata. Já me referi aqui à arriscada simplificação que a mídia faz quando separa os protestos, que começam pacíficos, dos atos de ‘vandalismo’ que em geral a eles se seguem: muita gente que não joga pedra se sente representado por quem joga — e muitos dos que saem sem esse intuito muitas vezes aderem, no calor da hora, aos atos agressivos. Todos sabem (a Globo mostrou os vídeos da Mídia Ninja) que a incitação à barbárie por vezes parte de policiais infiltrados e disfarçados (...). Mas as depredações de bancos e butiques responde a uma raiva anticapitalista que é parte do impulso político que fez nascer as manifestações. Também às formas meio filosóficas, meio literárias de expressão de tal sentimento engendradas por leitores de Deleuze e Foucault, como Antonio Negri e Michael Hardt (...). Seja como for, um 7 de Setembro violento seria uma burrice. Meu colega Sidney Waismann me procurou para propor algum gesto público que prevenisse a hecatombe que o artigo de Jânio de Freitas esboça (a partir do que leu em redes sociais). Sidney sugere chamar Zuenir, Alba Zaluar, Francisco Bosco, quem sabe companheiros músicos e outros criadores e pensadores, e pedir audiência com Beltrame. Por outro lado, expor aos manifestantes a questão não formulada: a violência é mais eficaz? Ele lembrou que Zuenir evoca Gandhi, Luther King e Mandela como exemplos. Se sairmos pela paz na Independência, o país lerá concentradamente a pergunta “Cadê Amarildo?” e tentará respondê-la. O mundo passa por convulsão. Nós precisamos de sabedoria. Dizer que passeata pacífica é armação da mídia golpista é pobreza que ajudará os piores argumentos dos reacionários. O artigo de Francisco Bosco foi iluminador. Para mim, violência no 7 de Setembro seria simplesmente burrice.

de um poema em prosa de Georg Trakl:

"São estranhos os atalhos noturnos do Homem." (Trad. Claudia Cavalcanti)

rádio mec

Para ouvir sem pressa.

arquitetura sentimental dos sonhos

Nas imagens que comparecem à noite, na intrincada arquitetura dos sonhos, figuram por vezes pessoas de minhas relações, próximas, em situações perturbadoras. Desavisada, incomodo-me mais pela pessoa naquela situação que pela situação que se valeu daquela pessoa para uma representação — ou condensação. Não é fácil, e essas imagens/enredos entram sorrateiramente na arquitetura do dia, ainda que por defesa ou precaução. Não havia me ocorrido ainda, porém, igualmente por desaviso, que eu também eventualmente posso figurar nos enredos noturnos de pessoas próximas a mim. Não sem algum desconforto, decanta-se-me uma questão: em que representações?