Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 20 de novembro de 2010

Jacob's Ladder (EUA, Adrian Lyne, 1990)


Alucinações do Passado é um drama psicológico com requintes de terror. "Este não é um filme de guerra, apesar da abertura. O tema do trabalho do diretor Adrian Lyne é o tênue limite entre sonho e realidade", informa o Cine Repórter (aqui). Prossegue: "Jacob é um personagem fascinante. Traumatizado com a guerra, ele retornou aos EUA outro homem. Dono de um doutorado em Filosofia e pai de duas lindas crianças de um casamento feliz, ele jogou tudo para o alto. Abandonou a família para casar com uma carteira, e o apartamento chique em Manhattan, onde vivia, para morar em um moquifo no Brooklyn, bairro de classe média baixa habitado por criaturas da noite. Quando o vemos pela primeira vez, no metrô, Jacob está lendo o romance O estrangeiro, de Albert Camus. A leitura é uma informação importante para compreendermos o homem que ele é, suas motivações e seus traumas. Jacob é um personagem sólido. Infelizmente, o mesmo não se pode dizer de sua sanidade. Interpretado por um Tim Robbins quieto, calado e com um sorriso contagiante, Jacob é um mistério que vai sendo revelado aos poucos." Daqui em diante é melhor não acompanhar mais o texto, pois entrega algo do suspense do filme, e seu grande trunfo está na construção desse suspense. No final, o espectador entende tudo, e entende como foi bem feita a armação do enredo, as alucinações do personagem, a fantasmagoria toda. A atuação de Tim Robbins torna o personagem e tudo o mais antológico. Discordando do Cine Repórter, este é sim um filme de guerra, ou melhor, é um filme sobre os horrores a que pode chegar a violência da guerra.

próximo blog

Este é um blog sem identidade, à deriva. Descobri isso seguindo, na barra superior, o próximo blog: via de regra, o usuário deixa claro a que veio.

Bob Dylan/The Byrds - Mr. Tambourine Man

Milonga de Los Morenos (Jorge Luis Borges e Vitor Ramil)

Poema de Jorge Luis Borges. Versão em estúdio com Caetano Veloso (aqui).

sessão nostalgia - the cure: in between days

imagem da semana



"Por que as esculturas na China têm um aspecto novo, enquanto que às nossas faltam braços e cabeças?" perguntou Berlusconi ao seu arquiteto quando a estátua foi entregue, de acordo com o La Repubblica. Nanni Moretti mostrou bem as engrenagens que alçaram Silvio Berlusconi ao comando da Itália, em Il Caimano. Ainda assim Berlusconi se reelegeu. 

à noite

De tudo que sonhei esta noite, a lembrança mais forte é o texto do sonho, a escrita ― pobre tradução verbal ― do sonho. Sei que era violência o que sonhei, e que isso virava um texto (um post) relativamente bem sequenciado de imagens a que pertencia a própria escrita do texto. A escrita aplacando a violência, dando um contorno à vida metamorfoseada em sonho, ou à vida que explode no sonho. Explosão cujo contorno pela escrita impede, até certo ponto, que os estilhaços atinjam quem está apenas sonhando, entregue ao sono e à sensação de que o texto que aparece no sonho já está escrito. 

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Franz Kafka (narrativas do espólio)

À NOITE

Afundado na noite. Como alguém que às vezes baixa a cabeça para meditar, totalmente afundado na noite. Em torno as pessoas dormem. Uma pequena encenação, um inocente auto-engano de que dormem em casas, em camas firmes, sob o teto sólido, estirados ou encolhidos sobre colchões, em lençóis, sob cobertas, na realidade reuniram-se como outrora e mais tarde, em região deserta, um acampamento ao ar livre, um número incalculável de pessoas, um exército, um povo, sob o céu frio, na terra fria, estendidos onde antes estavam em pé, a testa premida sobre o braço, o rosto voltado para o chão, respirando tranquilamente. E você vigia, é um dos vigias, descobre os mais próximos pela agitação da madeira em brasa no monte de galhos secos ao seu lado. Por que você vigia? Alguém precisa vigiar, é o que dizem. Alguém precisa estar aí.

Kafka, Franz. Narrativas do espólio. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.114.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Torquato Neto

Hai ― Kaisinho

caminho no escuro
que é
que eu procuro?

NETO, Torquato. Torquatália {do lado de dentro}. Org. Carlos Roberto Pires. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p.53.

LITERATURA BRASILEIRA

“Existe uma literatura latino-americana?"
“Não me faça rir. Não existe nem mesmo uma literatura brasileira, com semelhanças de estrutura, estilo, caracterização, ou lá o que seja. Existem pessoas escrevendo na mesma língua, em português, o que já é muito e tudo. Eu não tenho nada a ver como Guimarães Rosa, estou escrevendo sobre pessoas empilhadas nas cidades enquanto os tecnocratas afiam o arame farpado. Passamos anos e anos preocupados com o que alguns cientistas cretinos ingleses e alemães (Humboldt?) disseram sobre a impossibilidade de se criar uma civilização abaixo do Equador e decidimos arregaçar as mangas, acabar com os papos de botequim e, partindo de nossas lanchonetes de acrílico, fazer uma civilização como eles queriam, e construímos São Paulo, Santo André, São Bernardo e São Caetano, as nossas Manchesters tropicais com suas sementes mortíferas. Até ontem o símbolo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo eram três chaminés soltando grossos rolos negros de fumaça no ar. Estamos matando todos os bichos, nem tatu aguenta, várias raças já foram extintas, um milhão de árvores são derrubadas por dia, daqui a pouco todas as jaguatiricas viraram tapetinho de banheiro, os jacarés do pantanal viraram bolsa e as antas foram comidas nos restaurantes típicos, aqueles em que o sujeito vai, pede capivara à Thermidor, prova um pedacinho, só para contar depois para os amigos, e joga o resto fora. Não dá mais para Diadorim.”

FONSECA, Rubem. Intestino grosso. Feliz ano novo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.173.

Stray Cats - Stray Cat Strut


Singin' the blues while the lady cats cry

“Wild stray cat you're a real gone guy”  

I wish I could be as carefree and wild
But I got cat class and I got cat style
( Brian Setzer)

trecho de conversa: "beco"

"Eu sai do meu beco (embora, mais tarde ou mais cedo, a gente sempre acabe entrando em outro), não do jeito que eu esperava, mas foi o jeito que eu dei conta de sair e agora estou bastante aliviada, com planos novos, renovada. Nada mal! E fico aqui desejando muito que o mesmo aconteça com você."

televisão, notícias, futebol

Meus pais interditavam o acesso à televisão à noite. Desse interdito veio-me o costume de não assistir televisão hora nenhuma. Ontem, num telefonema, fui informada que era intervalo de um jogo da seleção. Ah, o Brasil está jogando? Hoje, no UOL, nenhum holofote, e logo se vê por quê. E justo los hermanos!!! Vamos ver como será arranjada a coisa para 2014. 

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

sessão nostalgia - Sultans Of Swing


Tocava no shopping, logo após sair do salão (dito agora coiffeur, para melhor sonoridade). Sensação incrível de leveza. O cabeleireiro havia acertado a mão, e não economizou nos elogios (fazem isso para as mulheres voltarem, é certo). Mas cortar o cabelo é algo sempre bom: junto com os fios vão-se emoções negativas, talvez por sugestão da aparência que se renova. É como perder objetos: uma forma sutil de deixar experiências para trás. You feel alright when you hear that music ring.

The Flying Musical Seahorse

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Dica do amigo Anderson: vídeo bacana do Marcelo Adnet

 Meditações de um eleitor frustrado em Miami. 

Dia Mundial do Mar - "Peixinhos do Mar" (folclore adaptado por Tavinho Moura)

Dia Mundial do Mar - "Brigam Espanha e Holanda pelos direitos do mar" (Milton Nascimento & Leila Diniz)

Paulo Leminski

Parada cardíaca

Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure
vem de dentro

Vem da zona escura
donde vem o que sinto
sinto muito
sentir é muito lento

Os melhores poemas de Paulo Leminski. 6.ed. São Paulo: Global, 2002, p.125.

Oktapodi (curta de animação)

domingo, 14 de novembro de 2010

Nick Cave & the Bad Seeds - The Carny


The Carny

And no-one saw the carny go
And the weeks flew by
Until they moved on the show
Leaving his caravan behind
It was parked out on the south east ridge
And as the company crossed the bridge
With the first rain filling the bone-dry river bed
It shone, just so, upon the edge 

Dog-boy, atlas, half-man, the geeks, the hired hands
There was not one among them that did not cas an eye behind
In the hope that the carny would return to his own kind 

And the carny had a horse, all skin and bone
A bow-backed nag, that he named "Sorrow"
How it is buried in a shallow grave
In the then parched meadow 

And the dwarves were given the task of digging the ditch
And laying the nag's carcass in the ground
And boss Bellini, waving his smoking pistol around
saying "The nag is dead meat"
"We caint afford to carry dead weight"
The whole company standing about
Not making a sound
And turning to dwarves perched on the enclosure gate
The boss says "Bury this lump of crow bait" 

And thean the rain came
Everybody running for their wagons
Tying all the canvas flaps down
The mangy cats crowling in ther cages
The bird-girl flapping and squawking around
The whole valley reeking of wet beast
Wet beast and rotten hay
Freak and brute creation
Packed up and on their way 

The three dwarves peering from their wagon's hind
Moses says to Noah "We shoulda dugga deepa one"
Their grizzled faces like dying moons
Still dirty from the digging done 

And as the company passed from the valley
Into a higher ground
The rain beat on the ridge and on the meadow
And on the mound 

Until nothing was left, nothing at all
Except the body of Sorrow
That rose in time
To float upon the surface of the eaten soil 

And a murder of crows did circle round
First one, then the others flapping blackly down 

And the carny's van still sat upon the edge
Tilting slowly as the firm ground turned to sludge
And the rain it hammered down 

And no-one saw the carny go
I say it's funny how things go 

Fonte: site oficial de Nick Cave.

A tradução mais aproximada para carny seria carnavalesco. Um amigo confirma: O que eles chamam de carnaval é também aquelas feiras e exposições ambulantes, com circos e parques de diversão. Parece o sentido que a palavra tem na música.” Parte dessa música toca em Asas do Desejo, numa performance ao vivo do Nick Cave e The Bad Seeds, e ela figura como espécie de música-tema, no menu. Há de se considerar o espaço dado no filme ao circo tradicional, itinerante e via de regra carente de recursos ― um modelo em extinção. A música em si, nesta performance, é desesperada. E linda.

"A raposa e o bode": duas versões

A RAPOSA E O BODE

Uma raposa caiu em um poço e foi obrigada a permanecer ali. Um bode, levado pela sede, aproximou-se do mesmo poço e, vendo a raposa, perguntou-lhe se a água estava boa. E ela, regozijando-se pela circunstância, pôs-se a elogiar a água, dizendo que estava excelente e o aconselhou a descer. Depois que, sem pensar e levado pelo desejo, o bode desceu junto com a raposa e matou a sede, perguntou-lhe como sair. A raposa tomou a palavra e disse: “Conheço um jeito, desde que nos salvemos juntos. Apoia, pois, teus pés da frente contra a parede e deixa teus chifres retos. Eu subo por aí e te guindarei.” Tendo o bode se prestado de boa vontade à proposta dela, a raposa, subindo pelas pernas dele, por seus ombros e seus chifres, encontrou-se na boca do poço, saltou e se afastou. Como o bode a censurasse por não cumprir o combinado, a raposa voltou-se e disse ao bode: “Ó camarada, se tivesses tantas ideias como fios de barba no queixo, não terias descido sem antes verificar como sair.”

Assim também, é preciso que os homens sensatos primeiro verifiquem o resultado de uma ação antes de pô-la em prática.

ESOPO. Fábulas completas. Trad. Neide Smolka. São Paulo: Moderna, 1994. Disponível em não gosto de plágio.


FOPOS DE ESÁBULA
Uma tentativa B.N. (Bossa Nova) de escrever as fábulas de Esopo
 na linguagem do tempo em que os animais falavam.

A BAPOSA E O RODE

Por um asino do destar, uma rapiu caosa num pundo profoço, do quir não consegual saiu. Um rode, passi por alando, algois tum detempo e vosa a rapendo foi mordade pela curiosidido. "Comosa rapadre” — perguntou — “que ê que vocé esti fazá aendo?" "Voção entê são nabe?" respondosa a mapreira rateu. "Vaí em a mais terrêca sível de teste a histoda do nordória. Salti aquei no foço deste pundo e guardarar a ei que brotágua sim pra mó. Porér, se vocem quisê, como é mau compedre, per me fazia companhode.” Sem pensezes duas var, o bem saltode tambou no pundo do foço. A rapente, imediatamosa, trepostas nas cou-lhes, apoifre num dos xides do bou-se e salfoço tora do fou, enquava berranto: "Adadre, compeus!"

MORAL: JAMIE CONFAIS EM QUA ESTADE EM DIFICULDÉM.


FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p.76. 

O Invasor (Brasil, Beto Brant, 2001)

Em O Invasor, terceiro e melhor longa de Beto Brant, é fundamental observar o cartaz de divulgação:


A figura agressiva de Anísio (que revelou Paulo Miklos como ator), o matador de aluguel contratado pela dupla de sócios da construtora para tirar o terceiro sócio da jogada, aparece, no cartaz, visivelmente caracterizada como um alienígena, e isso é fundamental para entender toda a engrenagem que é posta em movimento a partir do momento em que Anísio percebe o trunfo que tem nas mãos - o segredo do crime cometido pelos sócios através dele. Ele tem tudo nas mãos, e vai fazer valer isso. Não sobra nada do Brasil neste filme, e este nada aparece em toda sua expressividade na cena final. O interessante é que nenhum político aparece, mas está lá a empreiteira, ramo que mais se envolveu em corrupção no Brasil milagre e pós-milagre. O angustiado Ivan (uma das melhores atuações de Marco Ricca), dividido entre duas "éticas" (se se pode falar assim), a do sócio Gilberto (Alexandre Borges) e a da própria consciência que o acusa, é um ponto alto do filme, junto com o invasor Anísio. Ivan não consegue escolher, já entra no jogada arrependido, e isso o perde. 

Mário Faustino

POEMA DE AMOR

Quem como tu sem ser percebida
poderia passar entre as legiões dos anjos?

Se com eles cantasses nenhuma nota soaria em falso
e serias um deles em seus coros
a mim inacessíveis

Estás tão perto anjo desambientado!
Mas é tão frágil a tua presença
que é possível que eu fique de repente
outra vez sozinho
na noite desamparado

FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009, p.202.

grande momento do Festival da Record de 1967 - "Domingo no Parque"

Jabuti

A respeito do recente barulho envolvendo o rompimento de uma editora de peso (a Record) com o prêmio Jabuti, por discordar dos critérios de premiação, ditos políticos, me parece que o rompante tem mais de comercial que qualquer outra coisa. Não li Leite derramado, e ouvi de fonte segura que não é bom. Depois do surgimento da FLIP, a Festa Literária Internacional de Paraty, e seus muitos holofotes duvidosos, a questão é alguém ainda acreditar em critérios não comerciais para qualquer coisa envolvendo literatura no Brasil. Os mentores da coisa bem poderiam ter disfarçado e adotado o termo Feira, em vez de Festa. Mas ficaria muito bairrão, muito convencional. A literatura anda a adjetivar festas, definitivamente perdendo qualquer atributo substantivo... e a editora vem reclamar de critérios políticos de escolha. Por que não reclamaram do ex-presidente FHC fazendo a conferência de abertura da última FLIP, cuja temática principal era Gilberto Freyre, em pleno ano eleitoral? A questão é outra: políticos ou não, há muito os critérios têm sido tão-somente comerciais. A mesma editora vem lançando a obra de Carlos Drummond de Andrade em livros avulsos, depois de ter sido ela editada como obra reunida, pela tradicional casa editorial José Olympio, adquirida recentemente pela dita editora: "Estabelecida no mercado desde 1931, a editora José Olympio é um dos pilares da cultura brasileira. Atravessou várias fases e boa parte da história editorial brasileira. Pelas mãos de seus colaboradores, muitos originais saíram do prelo para a posteridade, como o eterno Fogo morto, de José Lins do Rego. Integrando o Grupo Record desde 2001, a José Olympio restaura, com frescor e dinamismo, seu patrimônio editorial." Mais um passo e o Grupo Record vai se ver imbuído da missão de preservar a cultura brasileira da inevitável erosão a que toda cultura está sujeita, refreada apenas pelo trabalho anônimo e sem graça dos que se entregam à pesquisa das fontes e ao pó e mofo dos arquivos, e que, com alguma sorte, encontra visibilidade e consegue publicação, raramente por uma editora de peso.