Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 6 de abril de 2013

Waly Salomão

CÂMARA DE ECOS

Cresci sob um teto sossegado,
meu sonho era um pequenino sonho meu.
Na ciência dos cuidados fui treinado.

Agora, entre meu ser e o ser alheio
a linha de fronteira se rompeu.

SALOMÃO, Waly. Algaravias. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, p.21.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

proteção

Enquanto nado ― e parece que nada acontece ―, sinto a água me envolvendo, como se fosse um lugar muito confortável de se estar, aplacando securas de meu ser, reentrâncias interditadas ao escrutínio do olhar. Sinto, ao contato com a água, a força do meu corpo aumentar, pois vem ao encontro da vida.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

arriscando uma leitura

O poema anterior, salvo engano, encena o mito de Eco e Narciso, na perspectiva dela.

Dora Ferreira da Silva

O ESTRANGEIRO

Na horta, revolvo a terra.
Entre raízes ávidas
me curvo.

Anunciam-te: o hóspede,
o totalmente outro, o antípoda.

As mãos sujas de terra,
mergulho-as na fonte. Nas águas,
refletida, a face que fulgura.

Desvio o olhar ferido.
Para sempre morta
a tudo que não sejas.

Dora Ferreira da Silva. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p.104.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Walt Whitman

Só o que a si mesmo prova a todo homem e mulher existe,
Só o que ninguém nega existe.

WHITMAN, Walt. Folhas de relva. Trad. Rodrigo Garcia Lopes. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.85. 

a força de um gesto criador

Uma peça de roupa que comprei estava meio descosturada. Percebi quando já estava no corpo. Demorei um pouco a me lembrar da cesta de costura ― agulha, tesoura e linha. Enquanto costurava, dei-me conta de que sentia calma, o gesto fino e pequeno de tecer, unindo fios e tecidos, me acalmava. Não sei se a calma veio da percepção nova que tive, ou ao contrário essa percepção produziu em mim a calma. O que percebi ali, muito sutilmente, é que participo da tessitura de minha vida, criando, produzindo, e que posso criar coisas boas. 

Paulo Leminski

apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme

Paulo Leminski. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p.84.

Eugénio de Andrade

MUSICA MIRABILIS 
[agradecendo à Helena]

Talvez a ternura
crepite no pulso,
talvez o vento
súbito se levante,
talvez a palavra
atinja o seu cume,
talvez um segredo
chegue ainda a tempo

― e desperte o lume.

Eugénio de Andrade. Coração do dia e Mar de setembro. Lisboa: Assírio & Alvim, 2013, p.75.

domingo, 31 de março de 2013

ouvindo uma intuição

Na primeira “Elegia de Duíno”, o poeta diz que os vivos cometem, todos, “o erro de distinguir em demasia.” Há dias pensava num modo de escrever sobre um desejo que senti, de ver menos, de não perceber tanto as coisas. Cheguei a ensaiar alguns movimentos, a fazer uma espécie de exercício de diminuição da percepção, que sentia saturada. Fechei os olhos até. Depois tudo voltou ao modo habitual de olhar, ou ao hábito do olhar habituado. Ou quase, porque aquele lampejo ficou latente, e agora o acaso de uma leitura me conduz a um verso que o confirma como intuição a ser ouvida.

escrever no quase vazio

Paranoid Park traz, a bordo do vazio e da incomunicabilidade das experiências que as personagens adolescentes vivenciam, uma aposta inusitada: a escrita como elemento de catarse. No caso, praticamente um simulacro da escrita, haja vista que a carta (ou cartas) não será enviada à remetente, que no entanto é decisiva para que aquela escrita aconteça. Metonimicamente, as cartas deslizam para o fogo, que aparece não como destruição, mas como possibilidade de transformação, que a escrita ensejou.

caetano veloso não morreu

A conjunção de diferentes signos nos últimos dias levou-me a sonhar esta noite que Caetano Veloso havia morrido ― logo eu, que não quero que ele morra, pelo menos tão cedo. Nos arredores deste 31 de março (que não foi um primeiro de abril), como em outros, aumentam as referências ao golpe de 64 ― por exemplo, o documentário recém-lançado “O dia que durou 21 anos”. Vi uma entrevista de Caetano ontem, num documentário intitulado “Canções do Exílio”, vi num outro canal o Emílio Santiago cantando, e por fim num terceiro canal passava o show “Prenda Minha”, em que Caetano interpreta com muita energia a canção “A Luz de Tieta” (que acabei postando). Então por que sonhar com a morte dele, num contexto de tanta vitalidade? Só pode ser para afirmar, por outros caminhos, a força da vida.

a igualdade é branca

Assisti ao filme que faltava da trilogia das cores, "A Igualdade é Branca". As fronteiras separando os diferentes, a própria língua como uma barreira. Gostei muito de "A Fraternidade é Vermelha", achei até mais forte, mas este, voltado para a igualdade (pelo menos na tradução do título), é igualmente espinhoso, ou pelo menos incômodo. O cinema tem alguma coisa de sonho: quando consigo me lembrar do que sonhei, enquanto me lembro tudo parece fazer sentido; depois aquilo foge, vai embora, às vezes sem deixar qualquer vestígio consciente. Até pela simbologia das cores, essa trilogia talvez se aproxime da região não discursiva dos sonhos: o que fica dessas cores? O branco abre espaços (em especial quando o protagonista volta para sua terra), mas a última cena se dá dentro de uma prisão...