Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 9 de abril de 2011

Mário Faustino

Consta que Mário Faustino previu sua morte. De fato, sua poesia é atravessada por cintilações sombrias, cintilações que produzem em quem lê uma paradoxal sensação de vida transbordante, vida que se deseja viva, vida contrastando com a opacidade da técnica, do nevoeiro a assombrar destinos. Porque se há um diferencial na poesia de Mário Faustino, esse diferencial é sua força, que o afastou da tentação de se ater aos volteios da linguagem, até sedutores, mas que se esgotam no signo, não necessariamente vazio, mas auto-referente. Nada é frio na poesia de Mário Faustino, exceto a morte, com a qual sua poesia trava uma forte luta, ainda quando espera um milagre para enfrentar a fera. Este milagre bem pode ser a poesia, ou a sutileza de re-inventar o homem.

NO TREM, PELO DESERTO

As vozes frias
Anulam toda chance de existência.
Jogam cartas terríveis
Batem fotografias perigosas
Não temem. Falam. Passam,
Na chacina do raro ostentam sua miséria.

Ninguém veste de verde. Um só
Parece vivo, aberto ― e esse dorme.
As aves lentas voam seus presságios
E a brisa morna engendra flores duras
Na secura dos cactos.

Alguém pergunta: "Estamos perto?" E estamos longe
E nem rastro de chuva. E nada pode
Salvar a tarde.

(Só se um milagre, um touro
Surgisse dentre os trilhos para enfrentar a fera
Se algo fértil enorme aqui brotasse
Se liberto quem dorme se acordasse).

BOAVENTURA, Maria Eugênia (Org). O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009, p.196. Nunca é demais lembrar as ponderações feitas por Sérgio Alcides sobre esta edição (aqui).

falando ainda sobre o que não quer calar

Acusações de sensacionalismo na cobertura da imprensa sobre o ocorrido há dois dias não retiram o incômodo que paira num nível anterior ao dado bruto da informação. Morar na cidade e na mesma região (zona oeste) em que tudo aconteceu, trabalhar no bairro onde a violência se deu, em sua forma mais brutal e estúpida, que é a execução sumária sem chance de defesa, tem um impacto que eu jamais poderia entrever. Que palavras dão conta do que choca e atordoa? Como lamentar sem ferir uma dor inconcebível, que não é minha e que mal posso alcançar? Minha dor é outra, a da perplexidade, do espanto. Numa resposta a um comentário de outro post, escrevi: "A escola tem um componente de esperança muito grande, um investimento afetivo por parte de quem a procura, então eu não consigo aceitar a morte dessas crianças (quer dizer, a morte de qualquer criança parece mesmo um insulto, uma ofensa), era para ser um dia como outro qualquer na vida delas, a gente sabe da luta das pessoas menos favorecidas para manter os filhos na escola, e essas crianças perderam a vida onde tinham ido buscar, como dizem o Chico Buarque e o Paulinho da Viola, um lugar no futuro." Essa noite sonhei coisas esquisitas, violentas, que não consegui entender. Há um trauma coletivo que se instaurou a partir do episódio, e por isso a obsessão de escrever, falar. Um site fornece dados que compõem um quadro bizarro de tudo: 

A Polícia Civil do Rio de Janeiro vai apurar as informações de um homem que teria sido o melhor amigo de Wellington Menezes de Oliveira, o atirador que invadiu a escola municipal Tasso da Silveira, em Realengo, zona oeste do Rio, na última quinta-feira (7) matando 12 alunos. Oliveira também morreu na ação. O UOL Notícias conversou com o suposto amigo, que aqui será identificado como G.S. Ele afirmou que também foi aluno da escola Tasso da Silveira e que conhecera Wellington em um templo das Testemunhas de Jeová, há cerca de quatro anos. Durante a conversa, ele fez pelo menos quatro menções a passagens da Bíblia ― como esta dos Coríntios: "Não vos enganeis: as más conversações corrompem os bons costumes" ― e  também citou pontos abordados na carta deixada por Oliveira, como a questão da pureza. "Aquele colégio era cheio de garotas ‘fogosas’. O pessoal até achava que eu era gay, pois as meninas chegavam passando a mão e eu me mantive puro, pois a fornicação é condenada pela sagrada escritura", disse G.S. Na carta de suicídio, o atirador também usou o verbo "fornicar" de forma a condenar a prática sexual. G.S. afirma que a pressão religiosa foi fundamental para a construção da personalidade criminosa de Oliveira.

A carta deixada pelo rapaz é de fato assustadora, e a considerar o tom religioso, quase messiânico, que dominou o último debate eleitoral para a presidência da república no Brasil, em que a causa da mulher e a questão da legalização dos direitos dos homossexuais foram motivo de disputas calorosas e ardilosas, a ponto de muitos analistas terem percebido uma postura quase medieval de setores mais conservadores da sociedade, é digno de nota que num pequeno trecho da fala acima destacada apareçam entrelaçados o discurso bíblico, o julgamento da conduta das mulheres e uma recusa a ser tachado como gay. Tampouco surpreende, agora divagando mais longe, a polêmica recente em torno das declarações do deputado Jair Bolsonaro, racistas e homofóbicas. Dado que a misoginia anda a par da homofobia, é este o mesmo tom da carta do rapaz que executou as crianças, alvejando preferencialmente, segundo relatos, as meninas. Valores tradicionais, forte componente religioso-messiânico, misoginia. A proporção do horror que assumiu essa combinação, numa mente psicótica, talvez impeça, no momento, de pensar que há uma tendência em curso ao conservadorismo, em ritmo lento mas decisivo, observável em diferentes setores da sociedade brasileira, tendência mais fácil de tomar proporções catastróficas em setores desfavorecidos economicamente, pois em geral a pobreza torna tudo mais grave e difícil. Possivelmente é desses setores que vêm os votos de Jair Bolsonaro e congêneres.

juventude

Há pessoas que deixam de ser jovens muito cedo. Alguma coisa em sua postura faz imaginá-las já no amanhã, não contando as transformações físicas e um endurecimento do que um dia pôde ser chamado de ternura, com o agravante de que os inevitáveis problemas de saúde virão calejar ainda mais. Há um traço forte para esse reconhecimento, traço este que não se encontra em todos os que envelhecem jovens: a facilidade com que se tornam "situação", não importa quem esteja no comando. É todo um conjunto muito sutil de características e posturas que trai uma ausência de rebeldia. E aqui abro um parêntese para dizer que o poema "Juventude", de Mário Faustino, inspirou um pouco do que aqui vai. Fui reler e imaginei mesmo como seria uma adaptação para um curta-metragem. Imaginei, mas não passou de um esboço, suficiente para dar o traço decisivo do modo "situação" de se colocar no mundo: o discurso poliana, de olhar e ver que sempre há, ou pode haver, uma situação pior que aquela apresentada. Nada pior do que ter como parâmetro o que está aquém do que, por julgamento, já está ruim. Porque a chance de que as coisas continuem a piorar é bem grande. Por que não lembrar que há possibilidades de as coisas serem melhores, condições mais favoráveis a uma existência tranquila? De pior em pior, chega-se sabemos muito bem onde. 

sexta-feira, 8 de abril de 2011

descobrindo novos blogs

No raposas a sul: "O carácter excepcional da experiência poética não pode ser assimilado a nenhum sistema ético, estético ou gnoseológico determinado. A questão consistiria então em saber se a poesia é ela mesmo susceptível de dar acesso à virtude, à beleza, à verdade. Se nós consideramos a ética, por exemplo, nós vemos que ela se refere à conduta do homem relativamente a certos valores, o bem, o mal, ao que conforma, ou não, o erro, a falta, a coragem. Mas estas noções são de todo estranhas à poesia que não têm nada a ver com a ética: ela é uma ética profunda. Ela é, no fim de contas, uma maneira de ser, de se conduzir em profundidade, uma atitude de inteireza face ao real. A poesia é uma tentativa de purificar a visão, de abrir o olhar sobre as coisas na sua plenitude. Creio que a poesia sustida por uma conduta integral é uma das formas maiores duma ética perfeita." (Homenagem: Roberto Juarroz).

um dia lívido

Em virtude do que se passou ontem no Rio, fiquei constrangida de falar sobre uma experiência, no final da tarde, no centro da cidade. É que meu dia ontem teve coisas boas, apesar das ameaças de tempestade que pairavam pela manhã sobre ele. Um dia à deriva entre situações cujo discernimento me faltava, mas que reclamavam decisões. Não, não é escolha. É outra coisa que acontece. É um tateio, uma busca de elementos que componham uma referência para pensar, para se situar. A sequência de tudo mostra que a intuição é tão forte quanto aquilo que pode ser dado pela razão. Então, depois de uma forte angústia acerca de situações das quais não tenho como me esquivar, no final da tarde, como que por encanto, aquelas nuvens pesadas de ameaça de tempestade haviam se dispersado, ou pelo menos migrado para outro céu, nem que seja outro céu da minha paisagem. Então respirei os ares bons do centro da cidade. 

ilha do passarinho

significado de não sonho mais chico buarque; artrorressonância onde posso fazer em belo horizonte; canções de bob dylan; ilha do passarinho; im not there; poema de monteiro lobato: reconheço percursos meus, pessoais e afetivos, nesses signos dispersos; reconheço a dispersão de uma aposta nesses percursos; reconheço, nesses signos, as asas com que me permito viver. 

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Às crianças que saíram de casa hoje para estudar, sem volta

massacre de crianças na zona oeste do Rio

“A gente viemos do inferno ― nós todos ― compadre meu Quelemém instrui. Duns lugares inferiores, tão monstro-medonhos, que Cristo mesmo lá só conseguiu aprofundar por um relance a graça de sua substância alumiável, em as trevas de véspera para o Terceiro Dia. Senhor quer crer? Que lá o prazer trivial de cada um é judiar dos outros, bom atormentar; e o calor e o frio mais perseguem; e, para digerir o que se come, é preciso de esforçar no meio, com fortes dores; e até respirar custa dor; e nenhum sossego não se tem. Se creio? Acho proseável. Repenso no acampo da Macaúba da Jaíba, soante que mesmo vi e assaz me contaram; e outros ― as ruindades de regra que executavam em tantos pobrezinhos arraiais: baleando, esfaqueando, estripando, furando os olhos, cortando orelhas e línguas, não economizando as crianças pequenas, atirando na inocência do gado, queimando pessoas ainda meio vivas, na beira de estrago de sangues... Esses não vieram do inferno? Saudações. Se vê que subiram de lá antes dos prazos, figuro que por empreitada de punir os outros, exemplação de nunca esquecer do que está reinando por debaixo. Em tanto, que muitos retombam para lá, constante que morrem... Viver é muito perigoso.”

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.64-65.

minhas tímidas experiências com o Reiki

Retomei ontem minha incursão pelo Reiki. Na realidade, o que quer que exista em mim de religioso ou "espiritual" é um província que está me exigindo, depois de anos, muitos, não digo abandonada, mas relegada a camadas adormecidas de meu ser. Não suporto a religião institucionalizada, a própria edificação me sufoca, fere minha sensibilidade. Só entro em igrejas em situações pontuais, momentâneas. Mas se entro em igrejas a necessidade está posta. Então é preciso admitir a necessidade. Quando comecei o Reiki em 2010, não suportei passar de três ou quatro tentativas; de repente alguma coisa nova, estranha e muito forte foi posta em movimento. Interrompi, me distancei, mas até hoje não entendi o que aconteceu. Não se mexe em uma província adormecida impunemente. Mas sei que preciso cuidar dela. A literatura não me bastou, e isso talvez explique as sucessivas crises a partir do doutorado, em que passei a manter uma relação tensa com o texto literário, hipertrofiado por necessidades que ele não pode atender. A escolha da crítica literária como percurso me deu a dimensão desse impasse. E se eu tivesse escolhido a filosofia? Provavelmente o mesmo impasse ou conflito estaria sendo vivenciado. Se eu tivesse escolhido a Física? Teria abandonado, como abandonei a Biologia. E não quero abandonar a literatura, uma das melhores descobertas da minha vida. Tenho certeza de que Kafka foi decisivo, até para me dar recursos que pudessem me salvar do mundo que engoliu suas personagens. Então é isso. Estou jogando a toalha, depois de vinte anos de embate. Passei o dia de ontem, após um ritual simples de Reiki, com uma arritmia, um bater de coração descompassado, que só acalmou com o sono. É só se explica porque estou dando atenção, ensejo, a vozes que estão gritando, porque fizeram parte de minha constituição como ser. Escrever isso é uma forma de me acalmar, pois nunca consegui entender o que foi a experiência de 2010, as coisas que foram postas em movimento, catalisadas pelo Reiki, eu que já havia começado o ano em crise e com uma forte demanda espiritual. Cheguei a ligar para um amigo, chorando muito, numa tarde em que não conseguia entrar numa igreja, não adiantava tentar. Já havia então entrado em algumas, e coisas novas e diferentes começaram a acontecer. O Reiki (ou o que estava se passando em mim) foi muito forte, entrou e desbaratinou tudo. Deixei quieto, até acalmar. Se essa demanda não for atendida, meu incompleto ser pode estar flertando perigosamente com o que é precário. 2010 ficou como um enigma, mas também como um alerta. 

quarta-feira, 6 de abril de 2011

relendo grande sertão: veredas (X)

“Ah, porém, estaquei na ponta de um pensamento, e agudo temi, temi. Cada hora, cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de medo.”

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.103. P.S. A concretude da imagem do medo: estaquei na ponta de um pensamento. Riobaldo não é covarde ou medroso, ele tem a dimensão do perigo. 

qualquer música: alívio imediato

Trabalho, trabalho, trabalho. Trabalho o dia inteiro. Cansaço e sua mais-valia, aquilo que é cumulativo no ônus do trabalho. No meio de tudo, minha vida, meu ser precisando respirar. Então chego em casa precisando absurdamente de música, qualquer, que me tire da alma esta incerteza que quer qualquer impossível calma. Fernando Pessoa reconhecido nos versos musicados por Fagner. Precisos. Preciso. Precisamente isso, qualquer impossível calma. Vou vasculhando a MPB, Raimundo Fagner conduz a Zeca Baleiro. Não serve. Pode ser brega, pode ser um rockinho de araque made in Brazil. Aí me ocorrem os Engenheiros, Alívio Imediato.  Que a chuva caía como uma luva um dilúvio um delírio, que a chuva traga... Que a noite caía de repente caía tão demente quanto um raio, que a noite traga... Música, noite e chuva. Então acontece que os Engenheiros também gravaram "Negro Amor", versão brasileira de "It's All Over Now, Baby Blue". E aí que fizeram um vídeo bem cafoninha, mas que cai bem neste começo de noite, da noite de um dia em que alguns passos foram tatetados, e por isso esse coração batendo fora de compasso, porque as coisas não param mesmo de se mexer: "Risque outro fósforo, outra vida, outra luz, outra cor!" Foi para chegar neste verso de Bob Dylan, na tradução de Caetano Veloso e Péricles Cavalcante, que esse périplo todo foi feito. Porque meu coração às vezes bate de modo selvagem demais, e eu preciso acalmá-lo.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Os Teus Últimos Dias Como Criança

escrita

A escrita me sustém, nela eu encontro vida.

ninguém me contou, eu vi!!!

A tentação de ler as páginas iniciais da minha tese, uma vez disponibilizada a versão digital no site da UFMG, me fez morder a própria língua: o demônio da revisão foi agindo, e encontrei um erro de digitação logo no início. Corrigi e tomei as providências cabíveis, de forma que a versão retificada já se encontra disponível (AQUI). Mas ficou-me o saldo da incoerência: além de mim, outras seis pessoas leram o texto, e ninguém deu pelo problema, nem eu, na leitura final. Ao mesmo tempo, desagrada-me a possibilidade de encontrar outros problemas similares, pois fiz o possível para evitá-los. Julguei que os outros leitores fossem sinalizá-los, caso os encontrassem, e creio que julguei mal. Teriam sido úteis, estes sofisticados leitores, sinalizando essas coisinhas miúdas, mais chãs, mas com as quais também se faz a qualidade de uma escrita. 

espiritualidade

Pode-se dar à palavra "espiritualidade" diferentes contornos. Saindo do plano dos signos, seria análogo dizer que a espiritualidade é experenciada, quando o é, de formas distintas, que no âmbito da experiência ela adquire contornos e nuances relativos a quem sente em si um certo incômodo, ou deslocamento, que só pode ser traduzido pela palavra "espiritualidade". Não é angústia, não é tristeza nem alegria. É um leve desconforto, um desacordo de si com a substância das coisas, talvez sintoma de um acordo mais fundo. Isso é tão difícil de expressar quanto a singularidade de uma vida. Mas quando essa presença é sentida em si, não pode ser ignorada.

Nightfall

Iwan Goll: Karawane der Sehnsucht

Caravana do Desejo

A longa caravana de nosso desejo
Nunca encontra o oásis das sombras e ninfas!
Amor nos chamusca, pássaros da dor
Devoram mais e mais nosso coração.
Ah, conhecemos águas e ventos frios:
Elísio poderia estar em toda parte!
Mas caminhamos, caminhamos sempre no desejo!
Em algum lugar salta um homem da janela
Atrás de uma estrela, e morre,
Alguém procura na galeria
Seu sonho de cera e o ama ―
Mas um fogo queima em nós no sequioso coração,
Ah, corressem Nilo e Niágara
Através de nós, então gritaríamos ainda mais sedentos!

Poesia expressionista alemã: uma antologia. Org. e trad. Claudia Cavalcanti. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p.80-81. Edição bilingue ilustrada.

mudança

Daqui a um mês, pouco mais, pouco menos, me mudo de casa aqui no Rio de Janeiro. Alguma coisa em mim já se enraizou nesta cidade desorganizada. Vencido o primeiro ano de rejeição, cumprido o compromisso com a finalização da tese, posso enfim mudar de casa, sabendo o suficiente da cidade para escolher um lugar. Por que mudar? Porque é necessário. Dois anos numa casa que seria apenas uma solução a curto prazo, uma casa que habitei mas não sei se me habitou. Por que então tanto tempo? Porque não é simples ou fácil. Com a escrita de uma tese entre as coisas a transportar, fica complicado pensar em mudança. Então fui ficando. Até que, por acaso, dentro da inquietude que não desiste de procurar, um lugar apareceu. Um lugar que me agradou, não totalmente, é certo, mas que vou conseguir habitar, conforme me pareceu. Então é assim: finalmente estou podendo escolher um lugar para morar nesta cidade que não escolhi, para a qual me vi empurrada, mas que agora, vez ou outra, flagro como minha. É algo muito de relance: olho uma paisagem pela janela do ônibus e constato: moro aqui. Nestes dois anos, percorri intensamente a cidade, e percebi por exemplo que o que mais gosto nela não está no cartão postal ― com exceção do mar.

domingo, 3 de abril de 2011

Debussy: La Mer

Claude Debussy - Nocturnes: Nuages

a capa da veja desta semana é de fazer rir coelhinho da páscoa


A singeleza de tudo: "VEJA teve acesso a documentos da CIA, FBI, Tesouro americano, Interpol e Polícia Federal que mostram que extremistas islâmicos usam o país como base de operações e aqui aliciam militantes. Encontramos e fotogramos cinco deles." Então é isso: extremistas islâmicos agindo no Brasil, deixando-se fotografar pela Veja.... No site, o pouco que se encontra mostra que não há qualquer sustentação para a chamada da capa (aqui). Segundo o semanário, o discurso dúbio e incoerente da PF não apenas facilita o enraizamento de organizações extremistas no Brasil como cria grandes riscos para o futuro imediato. Impressionante como este panfleto semanal acho que faz jornalismo. É tudo muito ridículo. Mas há um agravante: o sutil incitamento da revista ao racismo, ainda mais quando se considera a convulsão política no norte da África. Basta olhar as imagens que ilustram a capa. Enquanto isso, gangues de skinheads perseguem negros e gays pelas ruas de São Paulo (aqui), mas chamar isso de terror não encontraria ressonância nessas estruturas mentais mais arraigadas, que preferem, por algum esquematismo de pensamento, acreditar que o mundo ainda está na Guerra Fria, enquanto uma guerra viva, pulverizada e constante galopa sobra a vida das pessoas.

à deriva

No CCBB Rio, a Sala Contemporânea está com uma pequena exposição de Thiago Roca Pitta, cujo release inicial recebe o título de "À Deriva". Não entendi muita coisa da proposta pelo texto; apenas esbarrei, já para o final, com a cara (caríssima, eu diria) palavra delicadeza. Como uma situação de deriva poderia se combinar com a delicadeza é uma questão que agora me ocorre, enquanto escrevo isso. Ainda estava disponível para outro confronto estético (já havia passado por uma exposição complexa), e entrei, a sala bastante escura, com um vídeo, na parede oposta, em que alguma coisa brilhava. Me orientando pela luz que vinha da porta de entrada, adentrei o quanto pude, conferi a instalação mais próxima e sai logo. Não mergulhei na face escura da proposta. De volta à claridade, considerei muito tosca minha tentativa, e resolvi voltar. Fui adentrando novamente a escuridão. "Vocês podem chegar mais perto", disse uma voz. "Quem falou isso?", perguntei, pois que não enxergava quase nada. "Eu", respondeu o dono da voz. "Isso eu sei, que é 'eu', quero saber quem é". Era um funcionário do CCBB, conforme se apresentou e entrevi. Aí ele advertiu: "É preciso chegar mais perto da tela (e do vídeo) para interagir com o naufrágio". "Tem um náufrago aí?", perguntei. "Tem, e ele filmando." Aproximei-me do vídeo, e era alguém filmando em mar aberto, ainda claro, como se estivesse à deriva no mar.


À medida que o olhar à deriva se aproximava de um estranho objeto luminoso, ia escurecendo, até sumir tudo. Esta é a proposta da vídeo instalação "O Cúmplice Secreto". O funcionário me diz: "Nem sempre é fácil entrar na cabeça desses artistas." Fiz um assentimento qualquer, e continuei olhando o vídeo, não sabendo bem como discernir, na proposta, deriva de naufrágio, e tentando entrever a delicadeza. Foi outra coisa que senti, e comentei: "É angustiante". Recebi então a confirmação de que as pessoas, eu incluída, ouvem o que querem ouvir: "É relaxante sim, tem gente que senta aí diante do vídeo e fica meia hora." Saí da sala sem entender muito da proposta. Mas sei muito bem que a vida pode ficar à deriva. Talvez isso seja bom.