Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 6 de dezembro de 2014

Paulo Francis, jornalismo e metáforas

O lugar-comum, equivocado, de que roupa branca suja mais poderia servir de farol para desmascarar o oportunismo que vem tomando conta de uma oposição pouco séria que quer posar de mocinho, ou mesmo mocinha. A corrupção não é maior agora que nos governos precedentes: está aparecendo mais. As metáforas do que está sendo chamado pela imprensa de Petrolão podem servir de norte: Operação Lava Jato.

“O jornalista Franz Paul Heilborn, que assinava sua coluna nos jornais e se apresentava na TV como Paulo Francis, morreu menos de um mês depois de ser informado por seus advogados de que não tinha como se defender no processo movido pela Petrobras na corte de Nova York. Como havia acusado sem provas, baseado em fontes que não podia revelar, entrou em depressão e sofreu um estresse que causou sua morte por um ataque cardíaco, segundo revelou sua mulher, a jornalista e escritora Sonia Nolasco. A lembrança de sua denúncia vem agora assombrar antigos dirigentes da empresa petroleira e colocar a imprensa brasileira diante de um dilema: se persistir em circunscrever o escândalo aos fatos recentes, datando o processo a partir do ano 2013, o noticiário ficará marcado pelo partidarismo e a manipulação. Se for investigar as origens do escândalo, completando a pauta levantada por Paulo Francis há 17 anos, terá que reconhecer que a corrupção na Petrobras tem raízes mais profundas, e estará aberto o caminho para uma operação de larga escala contra a roubalheira. O ponto de partida dessa pauta é sua afirmação de que, em 1997, diretores da Petrobras engordavam contas bancárias na Suíça com dinheiro de propinas obtidas na compra de equipamentos.” (Observatório da Imprensa)

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

domingo, 20 de julho de 2014

Emily Dickinson

Deus tudo fez por um motivo,
E um plano deu às almas,
Nossa inferência é prematura,
Nossas premissas falsas.


God made no act without a cause,
Nor heart without an aim,
Our inference is premature,
Our premises to blame.

DICKINSON, Emily. A branca voz da solidão. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2011, p.154-155.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

sexta-feira, 30 de maio de 2014

a dimensão da dor

[...]
Será maior a tua dor
que a daquele gato que viste
a espinha quebrada a pau
arrastando-se a berrar pela sarjeta
sem ao menos poder morrer?

Ferreira Gullar. Toda poesia. 19.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010, p.295.

sábado, 26 de abril de 2014

boa companhia

eu!?

Tenho momentos de extrema fragilidade, em que parece que vou desintegrar, que o eu que construí para uso externo e contínuo vai ceder à emergência de forças disciplinarmente mantidas sob controle, sob vigilância atenta. Entrevejo outros eus, passados e presentes, e pressinto que a casca frágil da superfície pode facilmente rebentar. Meus recursos nesses momentos? Escrever, por exemplo. Outros são de foro íntimo.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Murilo Mendes

JUÍZO FINAL DOS OLHOS

Teus olhos vão ser julgados
Com clemência bem menor
Do que o resto do teu corpo.
Teus olhos pousaram demais
Nos seios e nos quadris,
Eles pousaram de menos
Nos outros olhos que existem
Aqui neste mundo de Deus.
Eles pousaram bem pouco
Nas mãos dos pobres daqui
E nos corpos dos doentes.
Teus olhos irão sofrer
Mais que o resto do teu corpo:
Eles não poderão ver
As criaturas mais puras
Que no outro mundo se vê.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.205.

poesia

“Devo aos poetas de todos os tempos a sobrevivência de minha alma. [...] A Baudelaire, em cujo túmulo depositei uma rosa, a fulgurância do raciocínio, a elegância corrosiva de seu sentimento trágico; a Shakespeare, a iniciação a todas formas humanas [...]. A Pablo Picasso, a reacomodação do nervo óptico.”

Paulo Mendes Campos. Cisne de feltro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p.18.

desolation row

dentro da ordem (e do progresso)

terça-feira, 22 de abril de 2014

para ouvir no táxi

imagens de são paulo (5)

imagens de são paulo (4)

imagens de são paulo (3)

imagens de são paulo (2)

imagens de são paulo (1)

Paulo Henriques Britto: "Nem tudo que fui se aproveita"

QUEIMA DE ARQUIVO

Houve um tempo em que eu amava
em cada corpo o reflexo
do que eu queria ter sido.
No fundo do sexo eu buscava
o meu desejo perdido.

Acabei achando o outro
que em mim mesmo destruí.
Foi fácil reconhecê-lo:
de tudo que vi em seu rosto
somente o ódio era belo.

Esse morto adolescente
implacável e virginal
não me perdoa a desfeita.
Não faz mal. Eu sigo em frente.
Nem tudo que fui se aproveita. 

Paulo Henriques Britto. Mínima lírica. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p.80.

uma imagem do museu do futebol (sp)

lou reed - "foot of pride"

manuel, o audaz

segunda-feira, 21 de abril de 2014

páscoa

Tive uma páscoa maravilhosa, sem precisar de chocolate — e sem precisar lembrar que era páscoa.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

cansaço

No cansaço do final do dia —
E é sempre um cansaço denso —
Surge no horizonte a poesia
Trazendo à noite outro tom de intenso.

domingo, 13 de abril de 2014

Manuel Bandeira

A ESTRELA

Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.

Por que da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alta luzia?

E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.174.

sábado, 5 de abril de 2014

Milguel Marvilla

INSTANTE

Estamos ressurgindo.
Estou aberto e pleno neste instante irrepetível.
O mundo acontece, estou vivo,
preparo minha permanência:
repito meu papel mil vezes diante do espelho.
Acompanho a linha que meus olhos produzem à cata
de uma estrela há muito morta
e sei que sou, de novo, real.

Este brilho em teu olhar, no entanto, instaura a dúvida:
um de nós é sonho. Mas qual?

Miguel Marvilla. Lição de labirinto. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1989, p.87.

Glauber Rocha - De Lá Pra Cá

terça-feira, 1 de abril de 2014

"escravos de jó", canção censurada do álbum "milagre dos peixes", gravada posteriormente como "caxangá" por elis regina

Milton Nascimento e Fernando Brant
  
Sempre no coração 
haja o que houver 
a fome de um dia poder 
morder a carne dessa mulher 

Veja bem meu patrão 
como pode ser bom 
você trabalharia no sol 
e eu tomando banho de mar 

Luto para viver 
vivo para morrer 
enquanto a minha morte não vem 
eu vivo de brigar contra o rei 

Em volta do fogo 
todo o mundo abrindo jogo 
conta o que tem pra contar 
casos e desejos 
coisas dessa vida e da outra 
mas nada de assustar 
quem não é sincero 
sai da brincadeira correndo 
pois pode se queimar, queimar 

Saio do trabalh-ei 
volto pra cas-ei 
não lembro de canseira maior 
em tudo é o mesmo suor  

Murilo Mendes

A VISIBILIDADE

Passar ignorado dos homens, das palavras,
Ignorado das águas, do demônio,
Ignorado dos personagens da história,
Ignorado até de Deus,
Até dos pássaros, das pedras.
Mas a luz se desfaz em vaia.
Os demônios mostram o seio em arco
— Arco de sua vitória exclusiva —,
As águas exigem um carinho,
Do contrário te afogarão.
As pedras exigem teu amor
— Vives em cima delas —
Do contrário te apedrejarão,
Apedrejarão
Quem quiser viver no ar.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.233.

segunda-feira, 31 de março de 2014

caxangá (milton nascimento & fernando brant): por boca livre

31 de março de 1964: 50 anos

Paul Géraldy

MEDITAÇÃO

A gente começa a amar
Por simples curiosidade,
Por ter lido num olhar
Certa possibilidade.

E como, no fundo, a gente
Se quer muito bem,
Ama quem a ama somente
Pelo gosto igual que tem.

Pelo amor de amar começa
A repartir dor por dor.
E se habitua depressa
A trocar frases de amor.

E, sem pensar, vai falando
De novo as que já falou…
E então continua amando
Só porque já começou.


Poetas de França. Trad. Guilherme de Almeida. 5.ed. São Paulo: Babel, s/d, p.161.

domingo, 30 de março de 2014

Murilo Mendes

"A caligrafia das constelações é claríssima."

o poder

Michel Foucault. — Esta dificuldade — nosso embaraço em encontrar as formas de luta adequadas — não virá de que ainda ignoramos o que é o poder? Afinal de contas, foi preciso esperar o século XIX para saber o que era a exploração, mas talvez ainda não se saiba o que é o poder. E Marx e Freud talvez não sejam suficientes para nos ajudar a conhecer esta coisa tão enigmática, ao mesmo tempo visível e invisível, presente e oculta, investida em toda parte, que se chama poder. A teoria do Estado, a análise tradicional dos aparelhos de Estado sem dúvida não esgotam o campo de exercício e de funcionamento do poder. Existe atualmente um grande desconhecido: quem exerce o poder? Onde o exerce? Atualmente se sabe, mais ou menos, quem explora, para onde vai o lucro, por que mãos ele passa e onde ele se reinveste, mas o poder... Sabe-se muito bem que não são os governantes que o detêm. Mas a noção de "classe dirigente" nem é muito clara nem muito elaborada. "Dominar", "dirigir", "governar", "grupo no poder", "aparelho de Estado", etc., é todo um conjunto de noções que exige análise. Além disso, seria necessário saber até onde se exerce o poder, através de que revezamentos e até que instâncias, frequentemente ínfimas, de controle, de vigilância, de proibições, de coerções. Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui. 

sábado, 29 de março de 2014

a aula inaugural de clarice

“À fraternidade e solidariedade dramatizadas na literatura oitocentista, Clarice erige o lugar da solidão como o laboratório experimental onde se pode melhor trabalhar as injustiças da sociedade contemporânea, envolvendo os materiais de trabalho — homens e coisas em estado de palavra — num clandestino amor.” Silviano Santiago, “A aula inaugural de Clarice”.

quinta-feira, 27 de março de 2014

asterismo

Já me disseram que eu complico demais as coisas... Fazendo uma analogia para traduzir a ingenuidade do pensamento, considere-se o jogo de ligar os pontos. Há os que têm menos pontos a unir, ou os pontos estão dispostos de forma tal a dar rapidamente uma figura reconhecível ou dominável pelo imaginário. Eu tenho mais, muitos aliás, pontos a unir, e eles não chegam a formar uma figura, muito menos com sentido facilmente reconhecível — pelo menos até agora.

segunda-feira, 24 de março de 2014

a palavra "desejo"

CHAUÍ, Marilena. Laços do desejo. In: NOVAES, Adauto (Org.). 
O desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.22-23.

sábado, 22 de março de 2014

mar – gens

Cuspi na zona de espraiamento — aquela parte mágica da praia em que se caminha molhando a pequenos intervalos os pés —, e fiquei esperando a onda que viria integrar aquela parte desprezível de mim ao suco salgado do mar.

a luz de tieta

"Todo dia é o mesmo dia, a vida é tão tacanha... nada novo sob o sol".

Manuel Bandeira

A LUA

A proa reta abre no oceano
Um tumulto de espumas pampas.
Delas nascer parece a esteira
Do luar sobre as águas mansas.

O mar jaz como um céu tombado.
Ora é o céu que é um mar, onde a lua,
A só, silente louca, emerge
Das ondas-nuvens, toda nua.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.238.

quarta-feira, 19 de março de 2014

lua eventual

sonetário brasileiro

AQUI.

Carlos Pena Filho

SONETO DAS DEFINIÇÕES

Não falarei das coisas, mas de inventos
e de pacientes buscas no esquisito.
Em breve, chegarei à cor do grito
à música das cores e dos ventos.

Multiplicar-me-ei em mil cinzentos
(desta maneira, lúcido, me evito)
e a estes pés cansados de granito
saberei transformar em cataventos.

Daí, o meu desprezo a jogos claros
e nunca comparados ou medidos
como estes meus, ilógicos, mas raros.

Daí também, a enorme divergência
entre os dias e os jogos, divertidos
e feitos de beleza e improcedência.

Os melhores poemas de Carlos Pena Filho. 4.ed. são Paulo: Global, 200, p.91.

terça-feira, 18 de março de 2014

Paulo Henriques Britto

Dentro da noite que construo aos poucos
para meu próprio uso, tudo é sombra
em que repouse a vista, salvo a lua
eventual, que me ilumine o espaço
que falta eliminar e meça o tempo
em que me esqueço a contemplar o tédio
que descasco e rejeito, em que dispenso
a luz do dia, excesso que não quero
ou não mereço, luxo que desprezo
sem sombra de arrependimento ou luto.
Aqui onde me resto tudo é meu
e mudo, e a noite me cai muito leve
sobre os ombros frios, como um manto, ou como
um outro pano mais definitivo.

Paulo Henriques Britto. Mínima lírica. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p.27.

domingo, 16 de março de 2014

heresia

Meu desejo de mar é maior que o de amar.

Emily Dickinson

Cirurgiões precisam ter cautela
Com sua lâmina afiada
Por sob as finas incisões se agita
A Vida – essa Culpada!


Surgeons must be very careful
When they take the knife!
Underneath their fine incisions
Stirs the Culprit  Life!

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.240-241.

sábado, 15 de março de 2014

Stéphane Mallarmé

A TUMBA DE EDGAR POE

Tal que a Si-mesmo enfim a Eternidade o guia,
O Poeta suscita com o gládio erguido
Seu século espantado por não ter sabido
Que nessa estranha voz a morte se insurgia!

Vil sobressalto de hidra ante o anjo que urgia
Um sentido mais puro às palavras da tribo,
Proclamaram bem alto o sortilégio atribu-
Ído à onda sem honra de uma negra orgia.

Do solo e céu hostis, ó dor! Se o que descrevo —
A ideia só — não esculpir baixo-relevo
Que ao túmulo de Poe luminescente indique,

Calmo bloco caído de um desastre obscuro,
Que este granito ao menos seja eterno dique
Aos voos da Blasfêmia esparsos no futuro.

Mallarmé. Trad. Augusto de Campos. 4.ed. São Paulo: perspectiva, 2010, p.67.

2Cellos

quinta-feira, 13 de março de 2014

saudades de renato russo e suas tiradas maravilhosas

artigo indefinido

não acredito                                    viver
                           ser possível                          sem poesia.

Emily Dickinson

No fim nos guia a Experiência
Sua acerba amizade
Não há de dar a um Axioma
Uma Oportunidade


Experiment escorts us last –
His pungent company
Will not allow an Axiom
An Opportunity

DICKINSON, Emily. A branca voz da solidão. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2011, p.158-159.

domingo, 9 de março de 2014

chove...

CANTIGAS ESQUECIDAS – III
Paul Verlaine

Chora no meu coração
Como chove na cidade;
Qual será tal lassidão
Entrando em meu coração?

Ó doce rumor da chuva
Pela terra e sobre os tetos!
Coração que se enviúva,
Ó, a cantiga da chuva!

Chora sem qualquer razão
No coração que se enfada,
Pois! Nenhuma traição?…
Este luto é sem razão.

É bem certo a pior dor
A de não saber por quê
Sem amor e sem rancor
Coração tem tanta dor!

Tradução José Lino Grünewald. Disponível aqui.


Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...

Fernando Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.199-200.