Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 30 de abril de 2011

a inestimável qualidade da poesia

Do blog O leitor sem qualidades: "Porque é preciso nunca falhar a ocasião da leitura, estes são os livros que leio e sobre os quais, numa fulguração momentânea, até mesmo Kafka, contrariando todos os seus intérpretes futuros, teria dito: 'atravessando as palavras há restos de luz'." 

Atravessando as palavras há restos de luz, ruínas de sentidos, sombras de imprecisão. Atravessando um poema (como o de Mário Faustino), há um desafio ao silêncio das regras do jogo, ou do joio, porque é preciso quebrá-las para que a vida possa viver. 

Mário Faustino: a medula da palavra revirada pela ironia

Deixo a quem quer que seja
A quem queira, a quem possa, a quem sirva, a quem goste,
A tarefa de construir um novo mundo.
Minha obrigação, o mínimo
Que inda posso fazer
É ajudar a acabar com esse monturo
Onde inadvertidamente me jogou a
Senhora minha mãe.
Há múltiplas maneiras de ajudar a acabar
Com o monturo
(O monturo, aliás, não tem nada de grande, é até fácil de arrasar).
Há uma particularidade que me apeteceu.
Uma delas é arrebentar-lhe ostensivamente com as regras do jogo.
A outra é desenvolver até o requinte as referidas regras do jogo
E obedecer, também até o requinte, as ditas regras do jogo.
Outra maneira é aumentar o monturo fazendo filhos
Educando-os e ensinando-os higienicamente a fazer outros filhos.
Outra maneira é ir à missa todos os domingos e contribuir para as obras da paróquia.
Outra maneira é lançar mais um jornal,
Mais um partido, mais um grupo de estudos,
Mais uma conspiração civil ou militar.

FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009, p.140.

Memórias do cárcere - II (ainda sobre o medo)

“Desumanidade e grosseria deixar de enviar algumas linhas ao rapaz. Refletindo, lembrei-me de que não nos tínhamos obrigado. Capitão Lobo apenas afirmara que nos comprometíamos. Uma ordem, somente. Se decidíssemos transgredi-la? De qualquer modo havia um acordo tácito ― e aí notei pela primeira vez um dos horrores sutis em que é fértil a cadeia: pretendem forçar-nos, sob palavra, a ser covardes. A princípio não distinguimos a cilada. ― ‘Está ali um sujeito com quem o senhor não se pode entender.’ ― ‘Perfeitamente.’ Aceitamos a imposição sem divisar nenhuma inconveniência. Mais tarde um infeliz nos abre a alma e hesitamos em solidarizar-nos com ele. Haverá maior covardia? Obedeceremos à frase a que não demos a necessária atenção ou escutaremos a voz interior?”

RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. 44.ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.98.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Memórias do cárcere - I

Das muitas coisas espantosas de Memórias do cárcere, este trecho quase vale a narrativa, se isso não fosse uma contradição por si: “[...] Não tive, porém, consciência de semelhantes baixezas e menciono-as como possibilidades. Sei lá o que se passava no meu interior? Difícil sermos imparciais em casos desse gênero; naturalmente propendemos a justificar-nos, e é o exame do procedimento alheio que às vezes revela as nossas misérias íntimas, nos faz querer afastar-nos de nós mesmos, desgostosos, nos incita a correção aparente. Na verdade, vigiando-me sem cessar, livrava-me de exibir sentimentos indignos. Afirmaria, porém, que eles não existiam? Tudo lá dentro é confuso, ambíguo, contraditório, só os atos nos evidenciam, e surpreendemo-nos, quando menos esperamos, fazendo coisas e dizendo palavras que nos horrorizam. De fato ainda não me assaltara o medo, faltava razão para isto; vinha-me, porém, às vezes o receio de experimentá-lo. Sensação angustiosa e absurda: medo de sentir medo. Aparentemente nada nos ameaça, estamos calmos; súbito chega uma inquietação que nos domina, cresce e nos dá suores frios: ― ‘Se um perigo surgir, de que modo me comportarei? Reagirei como um sujeito decente ou sucumbirei, trêmulo e acanalhado?’ Resistimos a essa dolorosa incerteza fingindo segurança, que realmente conseguimos obter, falamos à toa, largamos opiniões temerárias. Bazófias. Pouco importa que nos julguem nocivos e nos conservem no isolamento. As nossas cogitações afastam-se daí, têm sentido muito diverso: ― ‘Revelei acaso fraqueza, conformismo? Pensarão que me quero vender?’ Essa prostituição nos aterroriza ― e o terror nos força a proceder de maneira razoável. Capitão Lobo é homem direito. Bem. Ficaríamos com ele se as nossas ideias não brigassem com as dele. Mas quais são as ideias de capitão Lobo? Temos certo número de ideias, firmes, e recusamos fórmulas desacreditadas. Boas há um século, hoje nada valem. Vendo-o, escutando-o, precisamos saber que ele está do outro lado e consequentemente é um inimigo. Percebendo-lhe a retidão, ficamos em guarda.”

RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. 44.ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.84-85.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

reacionários

Por onde passei, seja escola, família ou trabalho, esbarrei em pessoas reacionárias. São inevitáveis. Mas cansam.

Bob Dylan: Desolation Row (Grateful Dead)

Letra aqui: "And fishermen hold flowers / Between the windows of the sea"

relendo grande sertão: veredas (XII) - trecho fabuloso da obra

“Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por disfarçar, não pense. De grave, na lei do comum, disse ao senhor quase tudo. Não crio receio. O senhor é homem de pensar o dos outros como sendo o seu, não é criatura de pôr denúncia. E meus feitos já revogaram, prescrição dita. Tenho meu respeito firmado. Agora, sou anta empoçada, ninguém me caça. Da vida pouco me resta ― só o deo-gratias; e o troco. Bobéia. Na feira de São João Branco, um homem andava falando: ―“A pátria não pode nada com a velhice...” Discordo. A pátria é dos velhos, mais. Era um homem maluco, os dedos cheios de anéis velhos sem valor, as pedras retiradas ― ele dizia: aqueles todos anéis davam até choque elétrico... Não. Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de contar. Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte.  Os revoltosos depois passaram por aqui, soldados de Prestes, vinham de Goiás, reclamavam posse de todos animais de sela. Sei que deram fogo, na barra do Urucúia, em São Romão, aonde aportou um vapor do Governo, cheio de tropas da Bahia. Muitos anos adiante, um roceiro vai lavrar um pau, encontra balas cravadas. O que vale, são outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido e desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 114-115.

Andrei Tarkovski: uma cena de "Nostalgia"


Um amigo recomenda-me sempre os filmes Tarkovski. De tanto falar, acabo prestando atenção. No youtube, onde encontrei esta sequência, há uma breve apresentação que pede leitura. “Nostalgia, mais do que um retorno ao passado, é esse desejo, sem-solo, de se tocar, de se contagiar (e contagiar o espectador) com um sentido indecifrável de eternidade. E esse é o grande êxito do filme, e de Tarkovski.” Mais na revista Contracampo.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

relendo grande sertão: veredas (XI)

“Rumo a rumo de lá, mas muito para baixo, é um lugar. Tem uma encruzilhada. Estradas vão para as Veredas Tortas ― veredas mortas. Eu disse, o senhor não ouviu. Nem torne a falar nesse nome, não. É o que ao senhor lhe peço. Lugar não onde. Lugares assim são simples ― dão nenhum aviso. Agora: quando passei por lá, minha mãe não tinha rezado ― por mim naquele momento? Assim, feito no Paredão. Mas a água só é limpa nas cabeceiras. O mal ou o bem, estão é em quem faz; não é no efeito que dão.”

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 113.

terça-feira, 26 de abril de 2011

sinal verde

Uma sequência curiosa e feliz de acasos levou-me a usar caneta verde, em vez da vermelha, na correção das provas da escola. Novos tempos. Minha mudança de casa e endereço (finalmente!) também é para esses dias. Conheço minha inquietação. 

aparência e essência, duas farsantes da mesma família

Semanalmente vou à zona sul, em virtude da análise. Procurando um lugar diferente para almoçar hoje, deparei-me com um buffet de saladas. Lá pelas tantas, chega um grupo que se distinguia por portar uma câmera filmadora profissional. Bulício geral: reportagem da TV Globo com a Renata Ceribelli para um quadro do Fantástico sobre alimentação light, "Medida Certa". A moça que estava ao meu lado foi que me informou isso, eu não reconheceria a cuja, tão diferente estava do que aparece na televisão. Ninguém que estava por lá comendo deu muita bola, exceto os funcionários do restaurante. Terminei de comer, paguei e saí. Ainda tinha um tempo disponível, entrei numa pequena livraria em frente, nada muito especial. Folheia daqui, folheia de lá, acabei esbarrando na biografia de Clarice Lispector, li alguns trechos das páginas iniciais e não gostei: essa obsessão biográfica, esse devassar da intimidade do autor/criador acaba respingando na obra, porque não sobram frinchas por onde o mistério possa ainda ser entrevisto. No fundo, é a mesma malfadada vontade de explicar a obra pela biografia, justificar a criação pelo eu biográfico. De outro modo, como se explicaria esse surto editorial em torno de Clarice Lispector: cartas trocadas com as irmãs, escritos de revistas femininas, correio feminino, fotografias e agora uma biografia ricamente detalhada. Não parece interessante essa devassa na intimidade de alguém, parece antes um voyerismo sem freios, que não consegue se saciar. Esse furor biográfico trai a crença romântica na unidade do eu. E a obra de Clarice Lispector questiona radicalmente isso. Basta ler "O ovo e a galinha." Qual a conexão disso com o episódio das saladas? Nenhuma, exceto que de um lado da rua a preocupação era com a aparência e do outro com a essência.

a vida é estranha

Sonhei algo bastante estranho, de que sou acordada por um telefonema amigo, sem saber ao certo que dia é hoje e temendo ser dia de ir para o serviço, quarta-feira, o que representaria fatalmente atraso. Não, é terça, terça-feira, mas mesmo assim estou atrasada, o volume de coisas a fazer é muito grande. O sonho é a morte de um homem (quem seria ele?), um assassinato(?), o corpo é escondido debaixo da cama, mas o envolvido alega inocência (meu último post...), tudo é muito confuso na minha tentativa de recompor a sequência narrativa do sonho (e é muito raro que meus sonhos me ofereçam uma sequência, qualquer que seja), desse suposto crime que eu presencio, mas ao mesmo tempo sou um homem, companheiro de morada do outro, o que mata(?) e tenta esconder o corpo. Ele alega inocência e tenta se esquivar daquela morte. Como a morte acontece no sonho eu não consigo me lembrar, se é acidental ou fatal. Só sei que há um quarto, um rapaz que esconde um morto debaixo da cama, e eu, que estou lá e ao mesmo tempo não estou, vivenciando/presenciando aquilo tudo. 

Alguma coisa se move no quarto, sem explicação, e isso é tacitamente entendido como o homem morto tentando se comunicar (com quem?). As coisas principiam a ficar seu tanto sombrias, me afasto com medo, mas ao mesmo tempo continuo lá. O outro, o que escondeu o corpo (então ele tem culpa?) começa a ser investigado, e sai em busca de testemunhas que possam ajudá-lo. Enquanto isso, uma terceira voz começa a falar comigo e desenha-me este homem em novas tintas (e esta é uma das partes mais cristalinas do sonho), e o que parecia ser um rosto inocente vai aos poucos assumindo um contorno diabólico (contorno, agora sei, emprestado do próprio diabo que figura no filme Fausto 5.0), mas no sonho quem me ocorre é Edgar Allan Poe, então descubro o que já intuía pelo medo, que estou sonhando algo sinistro: o rosto inocente, pela ótica desse narrador que me fala, vai aos poucos se desenhando diabólico, caninos proeminentes, um contorno de face a não deixar dúvidas, e era o rosto, agora sei, do diabo do aludido filme. Em seguida estou em outro lugar, conversando com outra pessoa, uma mulher (e agora sou eu mesma), que me pergunta como estão as coisas por lá, e digo que na mesma; mas então, num cômodo contíguo, algo começa a acontecer, é um chão de terra, minha toalha verde está lá (eu a deixei?), e de repente a terra começa a fazer um movimento em torno da toalha, em posição horizontal, no chão, a imitar uma pessoa deitada, a terra envolvendo a toalha como se envolvesse um morto quando ele é enterrado, ao jeito de uma cova simples, dessas dos cemitérios pobres, e então, assustada e surpresa, chamo esta outra pessoa que está comigo para mostrar o que está acontecendo, é o morto tentando se comunicar comigo, dizendo que foi assassinado. Mas é um telefonema amigo que me acorda disso tudo, alguém que está bem vivo e se lembra de mim e se importa comigo e liga para para saber como estou e dizer que está com saudades. E descubro nisso tudo que quem está tentando se comunicar comigo é a minha intuição, e que eu preciso confiar mais nela, e em mim mesma e nas minhas escolhas e decisões. Eu estou do lado da vida: é o que consigo dizer.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

inocência

Não, eu não vou me afogar no mar da blogosfera. Há coisas incríveis, fantásticas, talvez imperdíveis por aí. Mas sei dos meus limites, e com algum esforço consigo saber o que estou fazendo aqui. As melhores coisas que saíram de mim foram exatamente isso: saíram de mim, pediram para existir. Como tal, têm seu lado de inocência: elas, as palavras que vão sendo escritas à medida que meus dedos manejam um teclado (e com menos facilidade do que se supõe, afinal um deles encontra-se, faz tempo, levemente machucado), elas trazem consigo algo de Angela Vicario (Crônica de uma morte anunciada): ninguém nunca saberá seu segredo, embora, no caso, isso não custe a vida de ninguém, porque não envolve a violência. E já era mesmo tempo de falar de Gabriel Garcia Márquez por aqui. 

Richie Havens: License To Kill (Bob Dylan)

"Now, they take him and they teach him and they groom him for life / 
And they set him on a path where he’s bound to get ill / 
Then they bury him with stars / 
Sell his body like they do used cars"

domingo, 24 de abril de 2011

Dia Mundial do Livro

Ontem foi o Dia Mundial do Livro. Foi o que fiquei sabendo ao ler isto. E Fernando Pessoa falando de Shakespeare é mesmo encantador: "Não há Estado que valha Shakespeare." Por alguma espécie de vício, acabo sempre tomando livro por literatura.