Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 3 de dezembro de 2011

The Wallflowers: Heroes

Emily Dickinson

Se naufragou na água rasa do Pensamento
Como será no Mar?
O único Barco que não foi - Simplicidade -
A salvo a de ficar -


If wrecked upon the Shoal of Thought
How is it with the Sea?
The only Vessel that is shunned
Is safe -
Simplicity -

DICKINSON, Emily. A branca voz da solidão. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2011, p.248-249.

Óssip Mandelstam

O SOM SECO

O som seco e surdo desta
Fruta caindo
No murmúrio sem fim do
Oco silêncio da floresta.


CAMPOS, Augusto de. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006. p.112.

Streamschool (Patakiskola)

maravilhosa esta animação baseada em um poema húngaro

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

parágrafo

Ontem pensei muito num post assim: “Não sou para-raio de maluco.” Pois me lembrei de uma frase dita a uma amiga, não nesta letra, e aproximando um pouco o espírito. Eu havia dito a minha amiga, ao me despedir dela já um pouco tarde em sua casa, que não se preocupasse, pois nada costuma me acontecer nessas circunstâncias. Pensei mas não postei. E então, porque pensava também na grafia de para-raio segundo o acordo ortográfico, sonhei, Deus sabe por quê, que parágrafo havia perdido o acento. O bastidor aí já é outro, uma conversa recente com os colegas de trabalho sobre aspectos contraditórios do acordo, com o qual, no que diz respeito ao hífen, pouco me familiarizei até agora, pois que já não tinha muita familiaridade com o hífen. Mas é claro que não sonhei com o acordo, embora possa ter sonhado com a história da língua. Sonhei com o dito não postado, menos que um parágrafo, apenas uma frase. E é uma pena que, do sonho, só esta lembrança tenha ficado, já que, por lampejos, sei que havia outras coisas, que foram embora assim que a manhã tomou o lugar da noite. Não sei o que a palavra parágrafo estava fazendo no meu sonho. Quem sabe uma metonímia do dia de ontem, física e mentalmente bastante cansativo, com muitos parágrafos, não necessariamente concordantes, às vezes com ruídos, mas fazendo um texto novo, me parece. 

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

mofo

Sonhar com mofo, o que é? Sonhos são condensações. A cômoda que veio da casa antiga ainda com cheiro de mofo, e a consequente intenção de passá-la adiante. A notícia de uma viagem em que cabem muitas. No sonho ia haver uma viagem ― portanto uma mala ― porém arrumada às pressas, de última hora, e espessa camada de mofo tomava conta da mala, de tudo ― depois não sei mais. Não sei se estou finalmente enxergando o mofo ou se, por pequenas mudanças, ele, ao se fazer visível, tornou-se passível de ser elaborado. Enxergar o mofo é admitir que alguma coisa mudou de lugar. 

P.S. Mais um elo da trama do mofo: recentemente emprestei Morangos mofados para minha analista, a propósito de ter comentado uma das histórias na sessão. O livro já voltou para mim e tal. O que conta aqui é outra coisa, posta em movimento inclusive pelo trabalho de análise, cuja expressão nunca é fácil. 

sofia

terça-feira, 29 de novembro de 2011

um fragmento de quirinus kuhlmann

Tudo muda; tudo ama; tudo quer tudo combater:
Só quem medita neste lema alcançará o saber

CAMPOS, Augusto de. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006. p.27.

a aurora do homem: stanley kubrick

Cruz e Souza

Alexei Bueno

Que a tua vida, já que o tempo é breve,
E o fim não dá motivo à covardia,
Tal qual o raio efêmero ela seja,
Que mal feriu a vista em trevas some,
Mas ilumina no seu tempo, e ainda
Que igual a ele, após extinta, soe!

BUENO, Alexei. Poemas gregos. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p.180.

domingo, 27 de novembro de 2011

Time Warp (VFS)

amanheceu chovendo

Amanheceu chovendo, mais que uma poeira fina de água, trazendo um frescor leve e agradável. A chuva sempre acorda o bem em mim, renova alguma coisa difícil de precisar. Além disso, há uns passarinhos cantando, algo que distingui assim que acordei, trazendo-me à memória manhãs antigas. Estou lendo Joseph Conrad, Coração das trevas, mas hoje a leitura terá que ceder espaço ao último conjunto de redações que solicitei aos alunos do 6º ano ― um relato em primeira pessoa focalizando experiências vividas com animais, inspirado em A mulher que matou os peixes, de Clarice Lispector. Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu, anuncia-se (denuncia-se) a autora logo no início da narrativa. Que coisa, mesmo dirigindo-se a crianças essa senhora não evitava a morte. Mas titubeava diante dela ― assim como nos relatos de gente grande, como ela diz ―, e amenizava-a para não impactar as crianças. Não à toa, na quase totalidade das redações que li até agora, os alunos relataram experiências em que os animais morreram. Agora percebo por quê. Também teria algumas experiências com animais para relatar, mas fica para outra ocasião, pois a chuva que cai é vida, pura vida. Enquanto isso, vou deixando aqui alguns rastros do mergulho de Marlow no coração do Congo, atendendo ao chamado do mar:

“Ele era o único entre nós que ainda ‘atendia ao chamado do mar’. E o pior que dele se podia dizer era que não se tratava de um bom representante da sua classe. Era um homem do mar, mas um homem errante também, enquanto a maioria dos homens do mar, se é que se pode dizer assim, leva uma vida sedentária. Têm um espírito caseiro e carregam sempre com eles o seu lar ― o navio ― bem como o seu país ― o mar. Todos os navios são muito parecidos, e o mar é sempre o mesmo. Na imutabilidade em que habitam, são as terras estrangeiras, os rostos estrangeiro, a imensidade cambiante da vida, que se sucedem à frente deles, velados não por um senso de mistério mas por uma ignorância levemente desdenhosa, porque não existe nos homens do mar mistério algum além do próprio mar, senhor de sua existência e tão imperscrutável quanto o Destino.”


CONRAD, Joseph. Coração das trevas. Trad. Sérgio Flaksman. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008, p.12.

LISPECTOR, Clarice. O mistério do coelho pensante e outros contos. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2010.