Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 9 de outubro de 2010

asas do desejo

Não é comentário, não é resenha, não é nada: é só uma fala atravessada por um desejo. Começo a assistir "Asas do Desejo", mas o filme tem uma densidade que não combina com sono. Mas é fatal começar a ver e entender tudo: "Quando a criança era criança,/ não sabia que era criança." O que dizer depois disso? Adultos maltratam-se inutilmente. Que anjos maravilhosos são aqueles, que nunca vi? Talvez, quando assistir ao filme inteiro, até apague este post, mas é que a parte inicial me trouxe uma saudade imensa de alguma coisa que nunca vi, ou vi e não fui capaz de reconhecer. Pois o desejo imediato suscitado pelo filme em mim foi acreditar que exista alguma coisa parecida com anjo que volta e meia passa perto de mim e me protege.

sessão nostalgia - Duran Duran

"Queda que as mulheres têm para os tolos" – Machado de Assis (1861)

Nota do editor Oséias Silas Ferraz:

A declaração de que se tratava de tradução seria um artifício para disfarçar a autoria [...]. José Paulo Paes não entra em detalhes, mas é dos únicos a falar em tradução, a partir do original de um certo Olona, autor satírico espanhol que escreveu peças com o mesmo tema. A dúvida, no entanto, existia e só foi esclarecida pelo professor francês Jean Michel Massa, em Machado de Assis traducteur, ensaio que compõe a segunda parte de sua tese de doutoramento [...]. Apenas a primeira parte da tese foi publicada no Brasil, A juventude de Machado de Assis. Devido talvez às questões embaraçosas (para a crítica) levantadas sobre as traduções de Machado, o ensaio nunca foi publicado e permanece pouco divulgado. [...] Pesquisador atento, Massa enumera os textos que serviram de base a Queda... O Petit traité de l’amour des femmes pour les sots (1788), de autoria presumida de Champcenets (citado na parte XII de Queda...) apresentaria afinidades, mas não seria ainda o texto traduzido. Esse é finalmente identificado por Massa: De l’amour des femmes pour les sots, publicação anônima atribuída a Victor Henaux [...]. Encerra-se, assim, a polêmica sobre a originalidade do texto: ao contrário do que ficou estabelecido pela crítica machadiana, Queda que as mulheres têm para os tolos é uma tradução.” (FERRAZ, Oséias Silas. Nota do Organizador. In: ASSIS, Machado de. Queda que as mulheres têm para os tolos e outros textos. Belo Horizonte: Crisálida, 2003, p.9-10.)

A pesquisadora da Unicamp Ana Cláudia Suriani da Silva afirma que o estudioso francês não forneceu dados conclusivos que sustentem seu argumento, mas corrobora a tese da tradução, propondo uma versão bilíngue com o original e a versão machadiana: “A edição bilíngue de Queda que as mulheres têm para os tolos que eu publico pela Editora da Unicamp neste ano do centenário da morte do escritor segue intencionalmente os princípios tradicionais da crítica textual para oferecer uma base mais segura para pesquisas futuras. Estabelece definitivamente o texto traduzido por Machado e traz em espelho o texto de Victor Hénaux, o que permite que original e tradução sejam lidos lado a lado por um público que agora não se restringe mais ao próprio Machado e a uma meia dúzia (ou menos) de críticos.(Jornal da Unicamp).

Obs: segue a transcrição das duas páginas iniciais conforme edição da Crisálida. O editor manteve a grafia original do texto.

QUEDA QUE AS MULHERES TÊM PARA OS TOLOS

Advertencia

Este livro é curto, e talvez devera sel-o mais.
Desejo que elle agrade, como me sahe das mãos; mas é com pezar que me vanglorio por esta obra.
Fallar do amor das mulheres pelos tolos, não é arriscar ter por inimigas a maioria de um e outro sexo?
Diz-se que a materia é rica e fecunda; eu accrescento que ella tem sido tratada por muitos. Se tenho, pois,  a pretenção de ser breve, não tenho a de ser original.
Contento-me em repetir o que se disse antes de mim; minhas paginas conscienciosas são um resumo de muitos e valiosos escriptos. Propriamente fallando, é uma comparação scientifica, e eu obteria a mais doce recompensa de meus esforços, como dizem os eruditos, se inspirasse aos leitores a idéa de aprofundar um tão importante exemplo.
Quanto á imparcialidade que presidio a redacção deste trabalho, creio que ninguem a porá em duvida.
Exalto os tolos sem rancor, e se critico os homens de espirito, é com um desinteresse, cuja extenção facilmente se comprehenderá.
  
I

Il est des nouds secrets, Il est des sympathies.

Passa em julgado que as mulheres lêem de cadeira em materia de fazendas, perolas e rendas, e que, desde que adoptam uma fita, deve-se crer que a essa escolha presidiram motivos plausiveis.
Partindo deste principio, entraram os philosophos a indagar se ellas mantinham o mesmo cuidado na escolha de um amante, ou de um marido.
Muitos duvidaram.
Alguns emittiram como axioma, que o que determinava as mulheres, neste ponto, não era, nem a razão, nem o amor, nem mesmo o capricho; que se um homem lhes agradava, era por se ter apresentado primeiro que os outros, e que sendo este substituido por outro, não tinha esse outro senão o merito de ter chegado antes do terceiro.
Permaneceo por muito tempo este systema irreverente.
Hoje, graças a Deus, a verdade se descobrio: veio a saber-se que as mulheres escolhem com pleno conhecimento do que fazem. Comparam, examinam, pesam, e só se decidem por um, depois de verificar nelle a preciosa qualidade que procuram.
Essa qualidade é... a toleima!

ASSIS, Machado de. Queda que as mulheres têm para os tolos. Belo Horizonte: Crisálida, 2003, p.17-19.

FLICTS

"Nada no mundo é Flicts ou pelo menos quer ser" 
(Ziraldo. Flicts. São Paulo: Melhoramentos, 2005, p.30)

Emily Dickinson: "as palavras sentidas em silêncio"

As palavras na boca dos felizes
São músicas singelas
Mas as sentidas em silêncio
São belas

The words the happy say
Are paltry melody
But those the silence feel
Art beautiful ―

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.246-247.

"viajar é mais" (Toninho Horta)

O post "a história de um jipe" tem estado entre os mais visitados. Sinal de que o Clube da Esquina tem boa música a oferecer. Ou então de que a fantasia de um manuel, o audaz  revigora a imaginação. Tomo notícia da existência de um documentário, "A Música Audaz de Toninho Horta" (informações aqui).

Emily Dickinson: "Whether my bark went down at sea..."

Se ao mar se foi meu barco
Se enfrentou as procelas ―
Se em busca de ilhas encantadas
Abriu as dóceis velas ―

Em que místico porto
Está seguro agora ―
Esta a missão que têm os olhos
Pela Baía afora.


Whether my bark went down at sea ―
Whether she met with gales ―
Whether to isles enchanted
She bent her docile sails ―

By what mystic mooring
She is held today ―
This is the errand of the eye
Out upon the Bay.

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p. 106-107.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

linhas/entrelinhas

Há um trecho famoso de Clarice Lispector, acerca da escrita: "Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra ― a entrelinha ― morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente." (A descoberta do mundo, p.385). Distraidamente, certas coisas, em seu falar silencioso, elidem a palavra e deixam entrever novas trilhas no viver. 

Clarice Lispector

Caderno de notas

"Todos aqueles que fizeram grandes coisas fizeram-nas para sair de uma dificuldade, de um beco sem saída." Traduzo isso do francês, frase encontrada num caderno de notas antigo. Mas, quem escreveu isso? quando? Não importa, é uma verdade da vida, e muitos poderiam tê-la escrito. (LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.399.)

Mário Faustino: amor órfico à poesia

BALADA

(Em memória de um poeta suicida)

Não conseguiu firmar o nobre pacto
Entre o cosmo sangrento e a alma pura
Porém, não se dobrou perante o facto
Da vitória do caos sobre a vontade
Augusta de ordenar a criatura
Ao menos: luz ao sul da tempestade.
Gladiador defunto mas intacto
(Tanta violência, mas tanta ternura)

Jogou-se contra um mar de sofrimentos
Não para pôr-lhes fim, Hamlet, e sim
Para afirmar-se além de seus tormentos
De monstros cegos contra um só delfim,
Frágil porém vidente, morto ao som
De vagas de verdade e de loucura.
Bateu-se delicado e fino, com
Tanta violência, mas tanta ternura!

Cruel foi teu triunfo, torpe mar.
Celebrara-te tanto, te adorava
Do fundo atroz à superfície, altar
De seus deuses solares ― tanto amava
Teu dorso cavalgado de tortura!
Com que fervor enfim te penetrou
No mergulho fatal com que mostrou
Tanta violência, mas tanta ternura!

Envoi

Senhor, que perdão tem o meu amigo
Por tão clara aventura, mas tão dura?
Não está mais comigo. Nem conTigo:
Tanta violência. Mas tanta ternura.

MORICONI, Ítalo (Org.). Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.217-218.

Mário Faustino: "traduções do cisne"

PREFÁCIO

Quem fez esta manhã, quem penetrou
À noite os labirintos do tesouro,
Quem fez esta manhã predestinou
Seus temas a paráfrases do touro,
A traduções do cisne: fê-la para
Abandonar-se a mitos essenciais,
Desflorada por ímpetos de rara
Metamorfose alada, onde jamais
Se exaure o deus que muda, que transvive.
Quem fez esta manhã fê-la por ser
Um raio a fecundá-la, não por lívida
Ausência sem pecado e fê-la ter
Em si princípio e fim: ter entre aurora
E meio-dia um homem e sua hora.

FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2000, p.61. [5º verso retificado conforme Sérgio Alcides]

Mário Faustino, o amor e a hora do desastre

Por Sérgio Alcides (Portal Literal)

Ninguém exigiu tanto da poesia no Brasil da segunda metade do século XX quanto Mário Faustino. Para ele, fiel aos ensinamentos de Orfeu, o poeta deveria ser um demiurgo, intermediário entre os homens e os deuses. Mais do que um organizador da linguagem, seria aquele que a torna orgânica, vivente, ao mesmo tempo em que transmuta o vivido em escrito: "Vida toda linguagem" ― é a fórmula mágica que abre um de seus poemas mais conhecidos. Em plena onda desenvolvimentista dos anos 1950, quando o país ingressava na era da televisão e das auto-estradas, Faustino trazia de volta à vanguarda o mito do poeta visionário, capaz de fazer da poesia "o mais exato, o mais perene e o mais eficaz meio de comunicação".
É claro que o defensor de tão vigorosas proposições era então um jovem. Muito infelizmente, o destino impediu que ele realizasse sua grande aspiração. Confirmou-se em sua fulgurante trajetória de jornalista, poeta e crítico literário o velho adágio: os amados dos deuses morrem cedo. Tinha 32 anos quando, em 1962, o avião em que viajava para o México bateu no Cerro de la Cruz, nos Andes, a poucos quilômetros da primeira escala, em Lima.
Quarenta anos depois, sua obra inacabada retorna às livrarias ― pela primeira vez remetendo ao título do seu único livro publicado em vida: "O homem e sua hora e outros poemas" (Companhia das Letras). Segundo a organizadora da edição, Maria Eugenia Boaventura, da Unicamp, trata-se do primeiro volume de uma série de cinco, que também recolherá os textos de crítica, teoria e tradução do autor. O projeto é grandioso: teremos finalmente uma vista de conjunto da obra completa de uma figura tão apaixonante. E é possível que isso estimule a publicação da correspondência do poeta, importantíssima, sobretudo a trocada com o filósofo Benedito Nunes, seu mais próximo interlocutor e amigo.
É difícil imaginar o efeito que o reencontro com Mário Faustino pode ter sobre as novas gerações, e principalmente sobre os "novíssimos". Na verdade, ele nunca perdeu o grande poder de atração e a autoridade que conquistou entre os poetas mais jovens, desde que se tornou conhecido em todo o país como organizador da página intitulada "Poesia-Experiência", no hoje lendário (e quase inacreditável) Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Encarnação do que os vanguardistas chamavam de "poeta-crítico", ele ainda estava para completar os 26 anos quando começou a editar semanalmente, entre 1956 e 1958, seu  workshop em papel-jornal. Tinha chegado pouco antes ao Rio – tendo nascido no Piauí e se formado em Belém do Pará ― e já era respeitado pela publicação, em 1955, de "O homem e sua hora".
Sob o lema (inspirado em Ezra Pound) "Repetir para aprender, criar para renovar", a página semanal de Faustino incluía várias seções dedicadas à divulgação, à crítica e à tradução de poesia de todos os tempos e de poetas contemporâneos. Só uma parte desse vasto esforço chegou a ser publicada em livro ― nos volumes "Poesia-Experiência" (Perspectiva) e "Evolução da poesia brasileira" (Casa de Jorge Amado). Quanto às traduções de poemas, também apenas algumas apareceram na primorosa edição de 1985, "Poesia completa, poesia traduzida" (Max Limonad), organizada por Benedito Nunes.
Enquanto esperamos o lançamento dos próximos volumes da série, "O homem e sua hora e outros poemas" já nos dá bastante material para reflexão. Por um lado, é inevitável uma especulação sobre o prejuízo deixado pelo desastre aéreo de 1962 para a poesia brasileira. Com ele, fechou-se para sempre o caminho estritamente pessoal aberto por Faustino; em tempos de crise e polêmica, era um caminho alternativo entre o concretismo e a reação anticoncreta ― tola querela que até hoje polariza o debate poético no país. Por outro lado, nota-se agora um paradoxo em relação à poesia faustiniana: boa parte dela ressurge simultaneamente envelhecida e rejuvenescida. Muito tempo (de passado) e pouco tempo (de idade) deixaram aqui a sua marca.
A solene grandiloqüência dos versos cadenciados e impecáveis de "O homem e sua hora" não disfarça, hoje, o sabor de coisa antiga, a ser admirada com reverencial distanciamento. Por exemplo, no poema-título do livro: "(...) Aqui, / Sábia sombra de João, fumo sacro de Febo, / Venho a Delfos e Patmos consultar-vos, / Vós que sabeis que conjunções de agouros / E astros forma esta Hora". Pretendendo elevar-se acima do mundo e do tempo, os versos acabam soando como se datassem de outro tempo e de outro mundo. Já com os poemas mais experimentais da segunda fase, contemporâneos da militância na página "Poesia-Experiência" e tributários do diálogo com a vanguarda concretista, o carimbo da data não marca tanto o desejo de atemporalidade quanto o engajamento num projetado tempo futuro; por exemplo nos jogos verbais de versos como "e pelos pêlos do cão do chão" e "as uvas e as luvas / alvas da nuvem".
Paradoxalmente, a mesma grandiloqüência, numa fase, e o mesmo engajamento, na outra, traem um certo entusiasmo juvenil, a excitação pela descoberta do próprio talento, com aquela ânsia de elevar a voz à altura de seus grandes ídolos de leitor de poesia, desde Homero a Mallarmé, de Píndaro a Eliot. O excesso de alusões literárias e citações em latim e grego demonstra a admiração pela obra pantagruélica de Pound, mas não deixa de indicar a fantasia de participação direta nesse universo livresco, o que no fundo afasta o poeta de seus melhores temas ― que são o amor (ou, sobretudo, a falta dele) e a morte (a literal, não a "literária" dos clássicos). De certo modo, o que Haroldo de Campos chamou de "impaciência órfica" de Mário Faustino, "contra o espírito do tempo", é exatamente o que envelheceu e rejuvenesceu na sua sempre comovente poesia.
Mais paradoxal ainda é que esse orfismo afetado e imaturo, com a decorrente opção pelo tom sublime e às vezes preciosista, permitiu ao poeta alguns acertos que permanecem impressionantes ― porque de fato não têm idade. Seja na expectativa de completude amorosa ― "Amor feito de insulto e pranto e riso, / Amor que força as portas dos infernos, / Amor que galga o cume ao paraíso" ― seja no pressentimento da finitude mortal – "Eis a quinta estação, quando um mês tomba, / O décimo-terceiro, o Mais-Que-Agosto". É o Faustino ávido por amor que, no entanto, corteja a morte, como único meio de acesso real ao absoluto, numa espécie de erotismo cósmico: "Não morri de mala sorte, / Morri de amor pela Morte".
Também é tão solene quanto certeira a "Balada (em memória de um poeta suicida)" que é o mais antológico poema de Faustino, desde que serviu de inspiração e epígrafe para uma das obras-primas de Glauber Rocha, "Terra em transe", de 1967. "Não conseguiu firmar o nobre pacto / Entre o cosmos sangrento e a alma pura. / Porém, não se dobrou perante o fato / Da vitória do caos sobre a vontade / Augusta de ordenar a criatura / Ao menos: luz ao sul da tempestade. / Gladiador defunto, mas intato / (Tanta violência, mas tanta ternura)".
Esta primeira estrofe resume o lirismo feito de exaltação e fracasso que marca o melhor da poesia faustiniana. O caos revém contra o afã de ordem e beleza próprio da forma poética. Mas a violenta frustração do "nobre pacto" é justamente a garantia final de cumprimento da missão da poesia enquanto meio de conhecimento do mundo, do cosmos e de si. O fracasso de Orfeu completa o mito. Como explica Benedito Nunes em seus ensaios sobre a obra do amigo, opera aí o princípio clássico do amor fati – uma aceitação do destino e da necessidade que representa, no dizer de Nietzsche, um grande "sim" à vida e suas contingências.
Mas essa afirmação perde o fôlego sempre que precisa competir, na poesia, com outra mística: a da forma acabada e da tradição literária. Isso talvez explique por que Faustino não chegou a publicar um segundo livro nos sete anos de vida – tão ativa! – que teve após o lançamento de "O homem e sua hora". O poeta-crítico que assinava combativos artigos no "Jornal do Brasil" parecia perfeitamente seguro sobre o melhor a fazer. Mas o poeta-mesmo era bem mais hesitante: seus "Esparsos e inéditos" reunidos em livro pela primeira vez em 1966 mostram alguns poemas realmente memoráveis, mas o conjunto aponta para várias direções diferentes, e não é fácil enxergar ali um projeto de livro próximo do acabamento. Pelo menos não com a organicidade e o rígido planejamento reclamado pelo poeta-crítico, sob forte influência do proselitismo de Pound.
A monumentalidade in progress dos "Cantos" do poeta americano, poliglóticos e eruditíssimos, impressionou Faustino. Junto com o núcleo concretista de São Paulo – os irmãos Campos e Décio Pignatari ― o piauiense estava entre os primeiros leitores brasileiros que mostraram uma compreensão mais ampla da experiência poundiana. Ao mesmo tempo, também se deixara impactar pela publicação, em 1952, de outro projeto monumentalizante, a "Invenção de Orfeu", de Jorge de Lima, com seu profuso desfile de imagens entre o barroco e o Kitsch. Esses dois modelos de gigantismo fizeram sombra ao rapaz que, no entanto, escreveria em módicas 14 linhas alguns dos sonetos mais bonitos da lírica brasileira. E ele se convenceu, então, da necessidade do largo fôlego versificador: "Toda a minha obra tende à criação de poemas longos", declarou, mais de uma vez. Hoje, cabem as perguntas: era mesmo uma tendência ou uma auto-exigência? tal inclinação partia da sua escrita ou das suas leituras? tratava-se, para ele, de uma questão realmente poética ou apenas "literária"?
Os inéditos divulgados por Benedito Nunes em 1966 mostram algumas tentativas, sempre inacabadas, de prolongar o canto das Musas. Junto com elas, ficamos conhecendo alguns dos planos redigidos pelo autor. Como nessa espécie de "pauta" anotada em 1959: "1º) Conferir à poesia uma vasta medida, uma dignidade que lhe permita competir com as outras formas de cultura contemporâneas, sobretudo a arquitetura e a ciência; 2º) Fazer com que a poesia possa satisfazer de algum modo as necessidades, digamos, metafísicas do homem contemporâneo". É o poeta-crítico da página dominical em ação sobre si mesmo: a poesia se tornava uma verdadeira tarefa de Hércules para ele.
A mesma ambição desmesurada aparece em "A reconstrução" ― poema que, abandonado, não chegou a ficar tão longo quanto seu minucioso plano. Depois de invocar toda uma academia de ídolos ― Virgílio, Dante, Camões e cia. ― o planejador anota: "Identificar a procura da poesia com a procura do graal". Essa demanda, no fim, aparece também associada ao desejo amoroso: "Descrever minha busca do amor, todas as minhas tentativas. O caminho. Recordar a Divina Comédia. Recordar D. Quixote". Por um lado, a escrita de um simples poema se converte numa epopéia, sendo a poesia comparada a um vaso santo, tão raro quanto desaparecido. Por outro, espera-se encontrar o amor só depois de atravessar os círculos do inferno e combater os moinhos de vento.
Não deve ser um acaso que os poemas mais belos e acabados de Faustino, escapando ao plano, tratem exatamente do amor fracassado, da rejeição, do abandono e do anseio (real, sexual) de amar. É o caso da "Ballatetta" ("Por não ter esperança de beijá-lo / Eu mesmo, ou de abraçá-lo, / Vai tu, poema, ao meu / Amado, vai ao seu / Quarto dizer-lhe quanto, quanto dói / Amar sem ser amado, / Amar calado"). E também dessa pequena jóia que é o "Soneto": "Necessito de um ser, um ser humano / Que me envolva de ser / Contra o não ser universal, arcano / Impossível de ler". Em ambos os casos, são poemas que não deixam de remeter aos acervos eruditos do autor, em particular ao lirismo medieval italiano (a escola toscana, Guido Cavalcanti, o Dante da "Ballatetta dolente"). Mas, neles, a remota evocação de formas tradicionais vem acrescentar ao sofrimento amoroso o distanciamento por onde se instila a suave ironia que é sua marca moderna.
Essas peças que ele próprio talvez considerasse "menores" formam hoje a parte realizada da curta obra de Mário Faustino, e contrastam com a sua perseguida aspiração ao poema longo, à medida épica e ao tom grandioso. É por causa delas, com sua bem-trabalhada despretensão, que se pode dizer também dele que "a vida é curta, a arte é longa". Nos seus últimos anos, porém, o poeta parece ter antevisto uma possibilidade de conciliação entre o lirismo breve e as estruturas de largo fôlego, com a proposta de uma obra-em-progresso composta de fragmentos a serem encadeados por meio de uma técnica inspirada na montagem cinematográfica. "Se tenho lápis e papel à mão, vou escrevendo em bruto da maneira que em cinema se tomam takes que mais tarde serão montados"  escreveu ele em carta de 1960 a Benedito Nunes.
Foi o filósofo quem transmitiu a idéia para os leitores: "seria a forma total nascendo do intercurso de formas parciais, (...) num processo de recorrência, no qual cada parte ensejasse o todo e o todo preexistisse em cada parte". Restaram apenas 18 fragmentos, sem indicações seguras sobre sua montagem. Considerados isoladamente, eles finalmente superam a adolescência órfica do poeta: são poemas muito mais espontâneos do que tudo o que ele jamais escrevera antes, mais livres de figuras mitológicas e bíblicas, bem como do cânone em peso da poesia ocidental.
Mas nem por isso serão composições menos experimentais, deixando de lado a megalomania de Pound, mas incorporando o seu princípio de escrita ideogrâmica (também reivindicado na época pelos concretistas): "meninada apostando corrida com chuva / menino adiante / atrás a chuva oblíqua". Ocasionalmente, a nota erudita reaparece, mas (como em Manuel Bandeira) nunca como decoração exterior; por exemplo no dístico "Gaivota, vais e voltas, / gaivota, vais – e não voltas", que ecoa distantes cancioneiros. Pelo menos um desses fragmentos – "Juventude ― / a jusante a maré entrega tudo" ― pode ser considerado uma obra-prima, com todo o seu ar de coisa inacabada, aberta, em movimento, incapaz de monumentalismo.
Por uma ironia do destino, o poeta que tanto sonhou com o poema longo deixou uma obra em fragmentos. Apaixonado pela idéia de perfeição, mas fadado ao imperfeito, acabou se voltando para essa busca do perfeito na imperfeição que é a escrita fragmentária: segundo Schlegel, "um fragmento deve ser como uma pequena obra de arte, separado do mundo ao redor e em si mesmo perfeito e acabado como um ouriço". O desastre interrompeu o já pensado antes como obra de interrupção e retomada, impedindo o autor de experimentar a idéia da montagem. Faustino, que tanto almejou como poeta-crítico um poema absoluto e cabal, terminou aproximado à concepção bem menos retumbante de um poeta que ele parece não ter conhecido, pois estava fora das prescrições da vanguarda brasileira no momento. Escreveu Paul Celan, seu contemporâneo: "O poema absoluto  não, com certeza ele não existe. Mas em todo verdadeiro poema, mesmo no menos ambicioso, existe essa questão inelutável, essa demanda exorbitante". Mas, se até um fragmento participa em potencial do almejado poema absoluto, então estamos livres da obrigação de atingi-lo sozinhos.
O caráter fragmentário da obra faustiniana dificulta bastante a tarefa de seus editores: não pode haver uma edição definitiva de uma obra inacabada. O volume agora lançado nos deixa ainda mais ansiosos por uma edição crítica, que indique e comente de maneira mais rigorosa suas fontes e as variantes. Maria Eugenia Boaventura presta um bom serviço ao acrescentar 13 poemas ao corpus do autor, mas infelizmente não escreve uma palavra sequer sobre sua origem e estado de acabamento. Também o problema da ordem dos textos mereceria uma reflexão mais detida  não sendo de todo satisfatório o critério de ordem decrescente da data para uma obra que, além de inacabada, se pretendeu "em progresso".
Algumas falhas de revisão prejudicam o resultado final. Há muitas gralhas espalhadas pelo texto, como em "Prefácio" ("as traduções" em vez de "a traduções"), "O homem e sua hora" (uma vírgula na expressão "turris eburnea", "rumos ao" em vez de "rumo ao", "autora" em vez de "aurora") e "Rupestre africano" ("acorda" em vez de "a corda"). O texto mais comprometido é o da famosa "Balada", que teve a estrofação confundida e ganhou uma vírgula inexistente nas edições anteriores, sem o devido esclarecimento; o subtítulo incorporou erro da edição de 1985 ("uma poeta suicida" em vez de "um"). Por fim, pela terceira vez se perdeu a oportunidade de grafar corretamente o título de "Ballatetta". 

Sérgio Alcides é poeta, pesquisador e professor-adjunto da UFMG, autor de “Estas paisagens: Cláudio Manuel da Costa e as paisagens de Minas” (Hucitec, 2003), "Nada a ver com a Lua" (Sette Letras, 1996) e "O ar das cidades" (Nankin, 2000).

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

"São Marcos" - Guimarães Rosa

“Mas, como eu contava ainda há pouco, eram sete horas, e eu ia indo pela estrada, com espingarda, matula, manhã bonita e tudo. Tão gostosos a claridade e o ar ― morno cá fora, fresco nas narinas e feliz lá dentro ― que eu ia do mais esquecido, tropica-e-cai levanta-e-sai, e levei um choque, quando gritaram, bem por detrasinho de mim:
― ’Güenta o relance, Izé!...
Estremeci e me voltei, porque, nesta estória, eu também me chamarei José. Mas não era comigo. Era com outro Zé, Zé-Prequeté, que, trinta metros adiante, se equilibrava em cima dos saltos arqueados de um pangaré neurastêmico.
Justo no momento, o cavalicoque cobreou com o lombo, e, com um jeito de rins e depois um desjeito, deu com o meu homônimo no chão.” (ROSA, João Guimarães. Sagarana. 13. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971, p.228-9.)

Meu grande companheiro na literatura é um narrador anônimo e cego. Cerca de seis anos depois de ter defendido minha dissertação de mestrado, descubro que meu amor por “São Marcos”, sexta narrativa de Sagarana, continua intacto, até aumentou. Os muitos capítulos tentando dar conta de um conto que me escapava. O título aloprado da dissertação: “Um mango vale mil contos: ‘São Marcos’, de Guimarães Rosa ― a narrativa na fronteira das culturas”. O fato é que meu narrador estimado, além de racista e preconceituoso, e de ficar cego no meio de uma mata por força de um vodu lançado pelo seu desafeto João Mangolô, tinha uma particularidade: não tinha nome definido: “nesta estória, eu também me chamarei José”, diz ele  também José, como o outro José/Izé; ou também José, além de João,  já que afirma ser o joão-de-barro seu xará. Um xará João e um homônimo José. Um termo erudito e outro popular. Dois nomes comuns, que remetem ao anonimato (“zé-mané”, “joão-ninguém”) para um anônimo, um dos narradores mais esquisitos criados por Guimarães Rosa. Um estranho, um desconhecido. 

jardim de infância

A coisa do errante navegante. Tenho o luxo de poder dizer que morei em três das quatro capitais do Sudeste  — Vitória, Belo Horizonte e agora Rio de Janeiro, dessa vez pra ficar. Um detalhe apenas: a cada vez que cheguei num novo lugar, tive que começar tudo de novo, e aí aprendi uma coisa fundamental: a diferença entre os que trazem e os que não trazem amigos do jardim de infância. Pertenço ao segundo grupo, por uma razão muito simples, da qual decorrem as outras que se podem supor: no interior onde nasci a escolarização começava no primeiro ano primário, não havia pré-escola como agora. Quer dizer: a pré-escola ia se fazendo no aprendizado estranho da vida. Meu jardim de infância foi outro... Meu pai era lavrador, e trabalhava um pouco longe de casa, de forma que às vezes levávamos o almoço dele, para que ele não tivesse sempre que se alimentar com uma marmita fria já bastava o trabalho pesado, ingrato, mal remunerado, de sol a sol. O lugar em que ele trabalhava se chamava “Grota Funda”, e até chegar lá dentro, na plantação, havia todo um caminhozinho que minha memória recompõe com bastante dificuldade, talvez alguns trechos sejam mesmo imaginados ou sonhados. Mas no trajeto havia uma água que corria, menos que um regato, um trecho de aguinha transparente que se destacava da vegetação, correndo por sobre pedras. Devia ser água próxima de alguma fonte ou nascente. Havia um frescor muito especial naquele lugar, onde eu me detinha, antes ou depois de levar a marmita, para olhar a água correndo cristalina entre pedras e vegetação. Lá foi meu jardim da infância. E há um imponderável nisso tudo, que o discurso não comporta.

sessão nostalgia - the smiths

Rubem Braga: "poesia"

POESIA ― Era um poeminha antigo de João Alphonsus:

O diabo é que a vida
Nem sempre, porém...
Toada da onda
Que vai e que vem
Da onda daonde?
Até nem sei bem...
Ora bolas! Da onda
Que vai e que vem.

O rapaz leu e achou engraçado: “como é que um sujeito pode fazer um poema sem dizer nada, mas nada mesmo?”
Eu fiquei calado.
Ficava difícil explicar que o poeta dissera muita coisa, que a vida é assim mesmo, que a vida tem essa toada da onda... Da onda daonde?

BRAGA, Rubem. Recado de primavera. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.50.