Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 14 de abril de 2012

lendo o duplo

O duplo, de Dostoiévski, é uma leitura pesada, assaz complexa. Ali se distinguem já os meandros mentais e burocráticos que atormentarão as personagens de Kafka. 

amanhã bob cantará aqui

Não irei. No entanto, não me é indiferente sua passagem pelo Rio de Janeiro, num show de custo, para meu orçamento e minhas pretensões, elevado. Mas isso é o argumento superficial. A verdade é que pouco me interesso por shows, seja de quem for, no que devo estar perdendo muito. Azar. O fato é que amanhã à noite ele estará bem pertinho, a menos de 10 km (cerca de meia hora num trânsito livre de domingo à noite). Vai se apresentar no Citibank Hall, av. Ayrton Senna, oficialmente Barra da Tijuca, mas coladinho a Jacarepaguá.

Murilo Mendes

POEMA DE ALÉM-TÚMULO

Deste horizonte estável
Vejo homens e bichos combatendo
Ao mesmo tempo pela guerra e pela paz.
Vejo campos de sangue e ossadas,
Faixas de terror:
Mas vejo essencialmente uma coisa branca,
Um castelo branco e simples
Feito de um só diamante
Que da terra não se vê.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.431.

superstição vinda da religião

Abrir aleatoriamente um livro de poesia ― a obra completa de Murilo Mendes, por exemplo ― na expectativa de encontro com a palavra.

naufrágio do ser

Nas lojas, o contato bruto com a mercadoria é a pior das formas de alienação. Pessoas que talvez te tratassem com até hostilidade em outro contexto ali se rasgam em afabilidades para angariar um consumidor. Mal disfarçam a animosidade quando você se despede sem nada levar. Melhor sair à francesa, já que é impossível entrar num loja sem se fazer notar ― já se sabe: como sinônimo de lucro. 

P.S. A morbidez capitalista desconhece limites. É o que mostra essa estranha movimentação em torno dos cem anos do naufrágio do Titanic.

pessoas

As pessoas, entre familiares e estranhas, vão e vêm em meus sonhos. Assumem falas e posturas, criticam, revelam-me. Mas, deleite dos deuses, eu as deixo ir assim que acordo, pois sei que vieram apenas porque precisei delas para melhor descansar de mim. Fizeram-me o grande favor de, participando de minha vida noturna, ajudar a perceber que a vida diurna, a vida que se vive como real, pode tornar-se um manso exercício de convívio consigo mesmo. 

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Álvaro de Campos: versos de estranhamento

Através do ruído do café cheio de gente
Chega-me a brisa que passa pelo convés
Nas longas viagens, no alto mar, no verão
Perto dos trópicos (no amontoado nocturno do navio ―
Sacudido regularmente pela hélice palpitante ―
Vejo passar os uniformes brancos dos oficiais de bordo).
E essa brisa traz um ruído de mar-alto, pluromar
E a nossa civilização não pertence à minha reminiscência.

PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. Ed. Teresa Rita Lopes. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007, p.100.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Álvaro de Campos

Não fales alto, que isto aqui é vida —
Vida e consciência dela,
Porque a noite avança, estou cansado, não durmo,
E, se chego à janela,
Vejo, de sob as pálpebras da besta, os muitos lugares das estrelas…
Cansei o dia com esperanças de dormir de noite,
É noite quase outro dia. Tenho sono. Não durmo.
Sinto-me toda a humanidade através do cansaço —
Um cansaço que quase me faz carne os ossos…
Somos todos aquilo…
Bamboleamos, moscas, com as asas presas,
No mundo, teia de aranha sobre o abismo.

PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. Ed. Teresa Rita Lopes. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007, p.401.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Álvaro de Campos

"Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?"

Luis Fernando Verissimo

HISTÓRIA ESTRANHA

Um homem vem caminhando por um parque quando de repente se vê com sete anos de idade. Está com quarenta, quarenta e poucos. De repente dá com ele mesmo chutando uma bola perto de um banco onde está a sua babá fazendo tricô. Não tem a menor dúvida de que é ele mesmo. Reconhece a sua própria cara, reconhece o banco e a babá. Tem uma vaga lembrança daquela cena. Um dia ele estava jogando bola no parque quando de repente aproximou-se um homem e... O homem aproxima-se dele mesmo. Ajoelha-se, põe as mãos nos seus ombros e olha nos seus olhos. Seus olhos se enchem de lágrimas. Sente uma coisa no peito. Que coisa é a vida. Que coisa pior ainda é o tempo. Como eu era inocente. Como os meus olhos eram limpos. O homem tenta dizer alguma coisa, mas não encontra o que dizer. Apenas abraça a si mesmo, longamente. Depois sai caminhando, chorando, sem olhar para trás. 
O garoto fica olhando para a sua figura que se afasta. Também se reconheceu. E fica pensando, aborrecido: quando eu tiver quarenta, quarenta e poucos, como eu vou ser sentimental! 

Luis Fernando Verissimo. Comédias para se ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p.41.

domingo, 8 de abril de 2012

Jorge de Lima: Livro de Sonetos

Este poema de amor não é lamento
nem tristeza distante, nem saudade,
nem queixume traído nem o lento
perpassar da paixão ou pranto que há de

transformar-se em dorido pensamento,
em tortura querida ou piedade
ou simplesmente em mito, doce invento,
e exaltada visão da adversidade.

É a memória ondulante da mais pura
e doce face (intérmina e tranquila)
da eterna bem-amada que eu procuro;

mas tão real, tão presente criatura
que é preciso não vê-la nem possuí-la
mas procurá-la nesse vale obscuro.

Jorge de Lima. Poemas negros. Rio de Janeiro: Record, 2007, p.168.

páscoa

A Páscoa deste ano foi divina ― de forma que quase não me lembrei que era Páscoa.

o duplo

Comecei a leitura de O duplo, de Dostoievski, e tive um sonho revelador. Mas mais revelador é onde estava quando sonhei.

restar com as bagagens da vida

É bastante conhecido o conto “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa, talvez a nossa narrativa por excelência de certo lugar/discurso do deslocamento. Estava na rodoviária, numa rodoviária. Bastidores intensos vislumbrados no relance de estar ali, de passagem. Então de repente se vive algo que sobra, que não cabe naquele espaço exíguo de suspensão da cidade, fazendo transbordar a vida que exige não ficar circunscrita àqueles limites. Esse algo não consegue caber na narrativa que se quer para si. Esse algo mal se acomoda na linguagem que serena sentidos. É preciso traduzir, encontrar as palavras que contornem a dimensão do pasmo, do espanto, do anticlímax que derruba com violência a árvore que um dia se plantou. Onde elas, as palavras que repusessem a vida em sua marcha reconhecível? Então, devagar, alguma coisa como ficar com a herança da vida foi se insinuando. E, talvez por estar numa rodoviária, socorreu-me a formidável imagem das bagagens da vida, de Guimarães Rosa: “Eu fiquei, de resto. (...) Eu permaneci, com as bagagens da vida.”