Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 24 de março de 2012

nunca, jamais, trair a poesia: ou sim, pela vida?

“A tragédia do humano tem a ver com a incapacidade de não atingir Deus. Nunca chegamos a saber. Quando se procura muito, se estuda muito, quando se chega lá, vê-se que não é nada daquilo. (...) Chama-se a isso o pecado original. A árvore do saber... Mas o Homem não soube nada, só soube o mal. Foi castigado. Ninguém consegue saciar o desejo. É o cerne de tudo.”

Ana Hatherly, A idade da escrita e outros poemas, p.142.

grande momento do genesis

murilo mendes: o tigre

O TIGRE

O tigre, segundo Valéry, é um fato grandioso, uma vera instituição, um poder organizadíssimo, uma espécie de razão do estado, de monarquia totalitária; o animal absoluto. Por estes e outros motivos afins já se vê que le tigre ce n’est pas moi.
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O tigre, mamífero (sic) da família real dos Felídios, calcula seus atos com rigor extremo; não se passa a limpo, não se desdiz, nem se corrige. O tigre é autocronometrado. Mesmo quando opera durante a noite opera diurno.
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William Blake maravilha-se com razão, perguntando-se que olho imortal ousou a terrível simetria do tigre; e se o tigre poderia agradar ao próprio Deus que criou o Cordeiro.
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O tigre devorará tua metáfora antes do seu acabamento. O tigre não espera o homem. Os deuses esperam o tigre.
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O tigre, compasso em forma de tigre.
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Não há tigre vice: o leão é vice-tigre.
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O tigre: tão bem organizado que até os tigres de papel fazem-se tremer.
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Agredirei a majestade desse animal definitivo, aludindo à tigricidade da dupla Stalinhitler?
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O tigre, esse cosmotigre.
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O tigre é belo. Inadiável. Sibilino. Calmo. Intransferível.
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A tigresa eternidade avança para mim sob a forma de uma tesoura: Átropos.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.981.

eaux fortes (animação)

sexta-feira, 23 de março de 2012

sono lento

Algumas coisas antigas do blog volta e meia são apagadas. Cumpriram seu papel de enunciação. Isso basta.

quinta-feira, 22 de março de 2012

João Cabral de Melo Neto

NA MORTE DE JOAQUIM CARDOZO

Creio que Joyce é que dizia
que a Irlanda dele se comia

comendo os filhos, como a porca
que as crias melhores devora.

Estamos tão desenvolvidos
que já podemos esse estilo

de fazer Dublin, Irlanda, Europa?
e um novo imitá-las, em porca?


MELO NETO, João Cabral de. Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.122.

humildade

“Como aqueles que, no convento, varrem o chão e lavam a roupa, servindo sem a glória da função maior, meu trabalho é o de viver os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver.”

Clarice Lispector, “O ovo e a galinha”

a alegria que se tem

A alegria é uma condição incomum, porque depende de vínculos efetivos com uma infância saudável e que tenha sido infância o suficiente para legar, vida afora, certo frescor de inocência e espanto. A alegria é um pacto profundo com o bem e tudo o que ele representa. O bem, no sentido de uma disposição genuína para a vida, para o que é vivo, o que quer viver, para sentimentos como amor e amizade. O que é querer o bem? É, em camadas por vezes inacessíveis, lutar por ele, estar a seu lado, saber que o caminho a ser trilhado é duro, difícil e penoso. Querer o bem é já trazê-lo junto a si, e isso se transforma em alegria. Mas como é difícil romper o diamante bruto do bem para chegar à alegria. 

quarta-feira, 21 de março de 2012

Carlos Drummond de Andrade

O VERBO MATAR

Quem se espanta com o espetáculo de horror diversificado que o mundo de hoje oferece faria bem se tivesse o dicionário como livro de leitura diurna e noturna. Pois ali está, na letra M, a chave do temperamento homicida, que convive no homem com suas tendências angélicas, e convive em perfeita harmonia de namorados.
O consulente verá que matar é verbo copiosamente conjugado por ele próprio. Não importa que cultive a mansuetude, a filantropia, o sentimentalismo; que redija projetos de paz universal (...) e considere abominações o assassínio e o genocídio. Vive matando.
A ideia de matar é de tal modo inerente ao homem que, à falta de atentados sanguinolentos a cometer, ele mata calmamente o tempo. Sua linguagem o trai. Por que não diz, nas horas de ócio e recreação ingênua, que está vivendo o tempo? Prefere matá-lo.
Todos os dias, mais de uma vez, matamos a fome, em vez de satisfazê-la. Não é preciso lembrar como um número infinito de pessoas perpetra essa morte: através da morte efetiva de rebanhos inteiros, praticada tecnicamente em lugar de horror industrial, denominado matadouro. Aí, matar já não é expressão metafórica: é matar mesmo.
O estudante que falta à classe confessa que matou a aula, o que implica matança do professor, da matéria e, consequentemente, de parte do seu acervo individual de conhecimento, morta antes de chegar a destino. No jogo mais intelectual que se conhece, pretende-se não apenas vencer o competidor, mas liquidá-lo pela aplicação de xeque-mate. Não admira que, nas discussões, o argumento mais poderoso se torne arma de fogo de grande eficácia letal: mata na cabeça.
(...)
Se a linguagem espelha  o homem, e se o homem adorna a linguagem com tais subpensamentos de matar, não admira que os atos de banditismo, a explosão intencional de aviões, o fuzilamento de reféns, o bombardeio aéreo de alvos residenciais, (...) as bombas A e H, a variada tragédia dos dias modernos se revele como afirmação cotidiana do lado perverso do ser humano. Admira é que existam a pesquisa de antibióticos, Cruz Vermelha Internacional, Mozart, o amor.

ANDRADE, Carlos Drummond de. De notícias & não notícias faz-se a crônica. Rio de Janeiro: Record, 1987, p.65-67.

alma

"Poucos homens exploram sua alma" - Murilo Mendes.

escrita

A escrita é o único território onde ainda se respira liberdade.

terça-feira, 20 de março de 2012

Jorge de Lima: Livro de Sonetos

Era um tempo de olhares alternados
em que dois entes ou anjos, curiosos
me fitavam das trevas ou de cima,
dias e noites, duros, obstinados.

Livraram-me dos seres entranhados
em nós, uns mansos e outros tumultuosos
transmitidos de sangues e de climas,
da vida extinta dos antepassados.

Esperaram que me fizesse poeta
para dissimular seus greves rostos
e me espreitarem hoje disfarçados.

E eis que deixando essa órbita secreta:
lançam ao poema risos e desgostos,
gritam em torno, chamam-me dos lados.

Jorge de Lima. Poemas negros. Rio de Janeiro: Record, 2007, p.146.

domingo, 18 de março de 2012

Rainer Maria Rilke: Sonetos a Orfeu

II.20

Quanto espaço entre estrelas distantes!
Mais distante está o que aqui se aprende.
Alguém, por exemplo, um menino... outro adiante,
afastados entre si incompreensivelmente.

Palmo a palmo o destino mede nosso ser,
embora nos pareça estranho que assim seja.
Pensa: quantos palmos entre o homem e a mulher,
quanto mais o evita, mais ela o deseja.

Tudo é distância. Não se fecha a circunferência.
Vê sobre a mesa os peixes na travessa,
olhos frios na cara gelada.

Peixes são mudos... achava a ciência.
Mas afinal há um local, no qual se expressa
a língua dos peixes, por eles não falada?

RILKE, Rainer Maria. Os sonetos a Orfeu. Elegias de Duíno. Trad. Karlos Rischbieter e Paulo Garfunkel. Rio de Janeiro: Record, 2002, p.104-105. Vale a pena cotejar com a tradução de Augusto de Campos.

saudades de clarice lispector

VIVER

Ele teve a sensação de ser. Não poderia explicar, tão profundo, nítido e largo que era. A sensação de ser era uma visão aguda, calma e instantânea de se ser o próprio representante da vida e da morte. Então, ele não quis dormir, para não perder a sensação da vida.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.365.

livros preciosos

carlos walker: um dia (caetano veloso)

Manuel Bandeira

TEMAS E VOLTAS

Mas para quê 
Tanto sofrimento,
Se nos céus há o lento
Deslizar da noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se lá fora o vento
É um canto na noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se agora, ao relento,
Cheira a flor da noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se o meu pensamento
É livre na noite?

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.192.