Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 1 de outubro de 2011

segredo

nada o mar em seu mistério
mar onde mora o segredo.
o segredo do mar ― nada.
nada ― súmula do segredo
secreto o mistério.
não há mais segredo
se silenciada a palavra
que desfaria o mistério.
o mar secretou o nada
que silenciou o segredo.
não existe segredo além
da palavra segredo, do
que a palavra secreta.
a palavra secreta ―
o segredo ―
sua possibilidade ―
de palavra ―
seu segredo.
o segredo só existe para
quem supõe o mistério.
as palavras
emudeceram
o segredo ―
agora secreto.

escrever

De todas as possibilidades que me foram dadas, escrever é aquela em que me exerço sentindo mais de perto a liberdade. As palavras de fato são um patrimônio. Das muitas coisas que alguém tem ou pode ter, nenhuma escapa ao risco de ser perdida. Estar vivo, por exemplo, este bem tão precioso, não só não possui qualquer garantia como é certa a finitude. Com as palavras não, um milagre se passa na possibilidade da escrita. A escrita é o engendrar da vida como se fosse a própria respiração. O ar entrando e saindo como condição fundamental da vida. As palavras obedecem a estranhos fluxos e desígnios, menos óbvios que o movimento do ar alargando os pulmões. No entanto, enquanto alinho essas palavras sinto-me profundamente respirar. Sem qualquer mistificação, obedeço a alguma coisa que me manda escrever ― escrever, já se sabe, sem qualquer fim senão este de respirar e tornar manifesto que há na linguagem uma liberdade, e que ela pode ser experimentada por quem tiver a coragem de nela se aventurar. Comunico-me profundamente com Deus enquanto escrevo, e isso não consigo explicar ou entender. Apenas o que em mim manda escrever manda que seja escrito o que foi escrito ― passado da escrita, gostaria de entender melhor a dinâmica dos tempos verbais ― ao escrever a escrita já se torna passado, presentificando o gesto vital de escrever. Comunico-me, sei, com regiões densamente povoadas de meu ser, regiões que ficariam fora de qualquer acesso se não fosse a escrita, ou o universo dos sonhos, regiões que precisam respirar ― é isso que o gesto impulsivo da escrita me diz. Levar ar até essas regiões, ver de que forma elas podem encontrar um caminho pela linguagem, que palavras retas ou tortuosas vão dar a elas um contorno na minha incógnita geografia. Enquanto escrevia, tentava me lembrar do belo verso de Fernando Pessoa: “Já viram Deus as minhas sensações...”

Rainer Maria Rilke: Livro de Horas

Eu tenho hinos que guardo em silêncio.
Há um ser passado em julgado
dentro do qual meus sentidos inclino:
tu me vês grande e eu sou pequenino.

Podes no escuro diferenciar-me
das coisas que se põem de joelhos:
rebanhos elas são e estão pastando,
sou o pastor na vertente de sarça
para onde elas vão quando a noite vem.

Então, depois delas, eu vou chegando
e surdamente ausculto as ensombradas pontes,
e na fumaça que lhes cobre os lombos
passa dissimulado meu retorno.

RILKE, Rainer Maria. Livro de horas. Trad. Geir Campos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993, p.56.

Dora Ferreira da Silva

PEDAGOGIA DO PÁSSARO

Assomo à janela.
Nem vento ou rumor de passos
na relva.
Diz-me o sabiá: desce ao jardim!

Muitas flores colhi ao acaso
lá onde antes a aurora me fizera crer
que a vida era coisa inútil
gesto sem valia.


Dora Ferreira da Silva. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p.168. 

letra Z

Após a leitura de uma teoria sofisticada sobre o capitalismo, e constatados a geladeira e os armários vazios, fez-se imprescindível uma visita rápida ao supermercado (manhã de sábado, primeiro dia do mês, superlativamente um quente e ensolarado dia de rock), que ilustrou de forma cabal a teoria: a agitação das pessoas, carrinhos chocando-se, falta de espaço, mercadorias migrando das prateleiras para os escaninhos dos consumidores, o consumo que nunca é consumo apenas de mercadorias, mas de uma ideia, de muitas ideias, de modos de vida. Então, lembrando-me de uma situação recente vivida no divã, me dei conta de que quero falar de Zizek e não de Cazuza. Na hora achei graça na coincidência da letra Z e sorri, mais para dentro, percebendo que alguém me notava sorrindo. Sorri e apressei o passo. Ali só fico o indispensável. Na estética do capitalismo, o supermercado é o lugar em que a mercadoria atrita com o desejo de liberdade, embora pareça o tempo todo satisfazê-lo.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

nas malhas da ficção

Nas malhas da ficção, preciso saber o que de mim é fictício no que participo.

dia internacional da tradução

Herberto Helder: ETC.

Como o centro da frase é o silêncio e o centro deste silêncio
é a nascente da frase começo a pensar em tudo de vários modos ―
o modo da idade que aqui se compara a um mapa arroteado
por um vergão de ouro
ou o medo que se aproxima da nossa delicadeza
e que tratamos com o poder da nossa delicadeza ―
temos que entrar na zoologia fabulosa com um talento bastante fabuloso
pois também somos a vítima da nossa vítima ―
e ofereço à perscrutação apenas uma frase com buracos
assinalando uma cabeça escritora
assim era ― dizia a própria cabeça ― um queijo suíço
a fermentar como arcturus fermenta na treva celeste
e apura os volumes e a qualidade dos volumes
da luz ―
desde que a atenção criou nas coisas o seu movimento
as formas ficaram sob a ameaça do seu mesmo
movimento ―
o mais extraordinário dos nomes sempre esbarrou
consigo mesmo
com o poder extraordinário de ser dito ―
qualquer vagar é de muita pressa e toda a rapidez
é lenta ― basta olhar para a paisagem da escrita já antes
quando começa a abater-se pelo seu peso e o espírito
da sua culpa ―
porque uma frase trabalha na sua culpa como a paisagem
trabalha na sua estação ―
o merecimento a ver quem a ele chega primeiro
ao buraco do coração ― ver ou ser visto ―
ao buraco que transpira no meio do ouro ―
se é ele o ouro ou se o ouro está em volta tremendo
como um nó vivo implantado em cheio na madeira ―
e a única meditação moderna é sobre o nó
absorvendo a madeira toda ― uma espécie de precipitação
convulsa da matéria para o seu abismo próprio ―
e sobre a tábua despida incorporando cada nó que fica
a palpitar com a força do tecido inteiro
da tábua
e lançando na tábua a sua energia mergulhada
de nó ―
porque em toda palavra está o silêncio dessa palavra
e cada silêncio fulgura no centro da ameaça
da sua palavra ―
como um buraco dentro de um buraco no ouro dentro do ouro

                                                e

cumpre também falar do desafio do espetáculo ― o teatro
dentro do teatro ―
o travesti shakespeareano na dupla zona da forma e da inclinação
para o sentido enigmático ―
a rapariga vestida de rapaz interpretando a função oblíqua de rapariga
perante o rapaz vestido de rapariga interpretando
a misteriosa verdade corporal de rapaz ―
o que se pede à cena é apenas o delírio de uma coisa exacta
através das armadilhas ―
porque a vertigem é um acesso às últimas possibilidades
de equilíbrio
entre a verdade que é outra e a outra verdade que é
uma verdade de uma nova verdade continuamente ―
outra regra do espetáculo é inventar
a forma seguinte do enigma de modo a que a frase visível
fique junto ao rapto ―
empurrar o rosto para as trevas ― ou retirar da dança
os pés e ficar à luz uma espécie de imobilidade ―
o brilho do rosto já sem o rosto mas com toda a energia
e todo o impulso de um rosto ser o rosto teatral ―
porque também a máscara era a abolição de uma falsa liberdade
do rosto ―
e então não era o rosto que estava mas
a eternidade de um teorema ―
a abdicação das formas que morrem de si mesmas ―
um salto para o centro ―
e as presenças muito brancas enchem a cena
apenas de brancura
central implantada cega na paragem do tempo ―
perder o nexo que liga as coisas porque há só uma coisa
dada por indícios ―
uma centelha um sopro um vestígio um apelo uma voz ―
que a metáfora seja atendida como alusão à metáfora
da metáfora
como cada coisa é a metáfora de cada coisa ―
e o sistema dos símbolos se represente como o símbolo
possível de um sistema
de símbolos do símbolo que é o mundo ―
o mundo apenas como a nossa paixão posta diante de si ―
a paixão da paixão ―
nenhuma frase é dona de si mesma ―
e então o teatro que apresenta a frase não é dono de nada
mas só do recurso
de ganhar uma regra e recusar a regra ganha ―
assim como a voz abdica no silêncio e o silêncio
abdica na voz para dizer apenas que é uma forma de silêncio ―
um gênio animal inexplicável como uma queda no escuro ―
enquanto as vozes são cada vez mais astrológicas e loucas ―
e desaparecemos no silêncio levando com uma grande
leveza a queimadura inteira na cabeça

1974.

Herberto Helder. Ou o poema contínuo. São Paulo: A Girafa, 2006, p.297-300.

SPEK (animação)

SPEK from MOONSTA on Vimeo.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

no ponto de ônibus

Como hoje é dia de rock de novo, precisava escolher bem o trajeto para voltar para casa. Certo frisson no Centro anunciava complicações. Pensei numa forma, mas não funcionou ― já considerando descartada, por impraticável, a primeira opção. Na avenida principal fui para a fila do seletivo. Foi então que comecei, sem perceber, a ouvir a conversa no celular próximo. Um senhor fazendo aniversário de 59 anos recebeu uma ligação, o que entendi logo. O que não entendi era certo jeito embargado dele de falar, como demorando a anunciar alguma coisa. Até que ― e o fiscal já tinha dito que o ônibus ia demorar porque os melhores veículos foram liberados para o evento ―, até que ele disse com todas as letras para o interlocutor, seu irmão: "Perdi tudo, cara. Perdi tudo." Repetiu isso, algumas vezes. Fiquei imaginando o que ele poderia ter perdido, que tudo era aquele, e o que era perder tudo chegando perto dos 60 anos de idade. O homem parecia não se importar que os outros escutassem sua conversa, e mesmo pareceu-me que ninguém estava prestando atenção, tal o modo com que a promessa de ir para casa o quanto antes apaziguava a sensação de caos de mais um dia. “Perdi tudo”. Fui para outro ponto, tentar um ônibus vazio. Que viver é risco todo mundo sabe. Mas aquele homem era todo desamparo. Quando se escuta uma coisa assim o instinto de sobrevivência acorda. Estará alguém protegido? Iuri Gagárin foi o homem misterioso que inaugurou uma nova forma de viajar. Não obstante sua imensa coragem (ou quem sabe inocência), morreu misteriosamente sete anos depois num treinamento de rotina.

nas ruas da cidade

A rua ontem não estava nem mais nem menos agitada que o usual. Estava rua, com sua confusão de signos, sua dispersão de passos, seu entrecruzar caótico de gente. Encontrei uma brecha e fui ao CCBB comprar a entrada para o teatro que está prestes a sair de cartaz, "Na Selva das Cidades", de Bertold Brecht. Aproveitei o parêntese e conferi a exposição sobre Miles Daves, também saindo de cartaz, reparando num trocadilho: Miles Smiles. 

noite

Ao dormir, o expressivo verso de Dylan Thomas, tentativa de evocação da leitura feita um pouco antes: "Tornei-me amigo do sono que me beijava o cérebro":

Tornei-me amigo do sono que me beijava o cérebro,
Deixando rolar a lágrima do tempo; o olho de quem dormia,
Abrindo-se na luz, voltou-se para mim qual uma lua.
Assim, erguendo-me nos calcanhares, voei ao longo de meu ser
E despenquei sonhando a contemplar o céu lá no alto.

O primeiro verso é um convite à noite, ao sonho, a essa outra vida que se vive dormindo, no soño. Evoquei o verso na lembrança que adormecia, e sonhei o que o poema prometia. Despenquei de um sonho urdido pelo dia. Sonhos traduzem o dia em águas turvas, ainda que o traje das personagens seja de um branco alvíssimo. Sonhos são também antecipações, e por isso o sono que beija o cérebro é amigo.

Dylan Thomas. Poemas reunidos. Trad. Ivan Junqueira. 2.ed. rev. Rio de Janeiro: José Olympio, p.89.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Dylan Thomas

CUIDEI DISTANCIAR-ME

Cuidei distanciar-me
Do silvo da mentira desgastada
E do incessante grito dos antigos terrores
Que crescem mais terríveis quando o dia
Tangencia a colina e adentra o mar profundo;
Cuidei distanciar-me
Das mesmas e enfadonhas saudações
Porque há fantasmas no ar
E ecos fantasmagóricos no papel
E um ribombo de apelos e de notas.

Cuidei distanciar-me, mas tenho medo;
Alguma vida, ainda louçã, poderia explodir
Da velha mentira que arde sobre o solo
E, crepitando no ar, deixar-me quase cego.
Nem pelo medo antigo da noite,
O chapéu que se separa dos cabelos
Ou os lábios crispados junto ao fone
Me farão cair ante a pluma da morte.
Não gostaria de morrer por nenhum deles,
Metade convenção, metade hipocrisia.


Dylan Thomas. Poemas reunidos. Trad. Ivan Junqueira. 2.ed. rev. Rio de Janeiro: José Olympio, p.118-119. 

é difícil enxergar

Apanhados os novos óculos, e ingressando, como mais uma fronteira avançada, na era do multifocal, tomei o metrô em direção à clínica oftalmológica para a conferência. Cerca de duas estações depois, entrou no metrô uma moça amparada por um fiscal: era cega, e se acomodou em pé perto de mim. Ainda assim, demorei um tempo para perceber o que se passava. Como é difícil!

Fernando Pessoa & Cia em São Paulo: Carlos Felipe Moisés

“Antes de partir para o Brasil, Fernando Pessoa insistiu com seu amigo Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros em Lisboa, para que o acompanhasse. Este refugou: ‘São Paulo? A cidade que não pode parar? Melhor não. Desassossego por desassossego, prefiro o de cá’.” AQUI.

A biblioteca particular de Fernando Pessoa

AQUI.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Mário Faustino

LEGENDA

No princípio
Houve treva bastante para o espírito
Mover-se livremente à flor do sol
Oculto em pleno dia.
No princípio
Houve silêncio até para escutar-se
O germinar atroz de uma desgraça
Maquinada no horror do meio-dia.
E havia, no princípio,
Tão vegetal quietude, tão severa
Que se entendia a queda de uma lágrima
Das frondes dos heróis de cada dia.

Havia então mais sombra em nossa via.
Menos fragor na farsa da agonia,
Mais êxtase no mito da alegria.

Agora o bandoleiro brada e atira
Jorros de luz na fuga de meu dia ―

E mudo sou para cantar-te, amigo,
O reino, a lenda, a glória desse dia.

FAUSTNO, Mário. Poesia completa e traduzida. Ed. Max Limonad, 1985, p.149-150.

ainda o rock

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Emily Dickinson

How destitute is he
Whose Gold is firm ―
Who finds it every time
The small stale Sum ―
When Love with but a Pence
Will so display
As is a disrespect
For India ―


Tão miserável é aquele
Firme em seu Ouro ―
Que avalia a todo tempo
Contar com Pouco ―
Quando o Amor com um só Centavo
Se mostraria
Como se fosse uma afronta
À Índia ―

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.94-95.

Eduardo Alves da Costa

No caminho com Maiakóvski

"[...]
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
[...]"

broken mirror

"breaking mirrors with a kitchen knife, 
a rock you found in your backyard, 
and your philosophy book will give 
you lasting scars. just so you know." 

Milton Nascimento: Outubro

ternura

O caos é uma questão de tempo, seu efeito. É o modo que as coisas encontram de obedecer ao princípio da conservação da energia. Resistir ao caos é conseguir manter, no struggle for life, a própria energia, sem perder a ternura. Porque não pode haver ternura, amor, bondade, criação onde não existe força.

domingo, 25 de setembro de 2011

conversa com o Guilherme, de 8 anos

conversa, conversa, conversa...
— Você sabe o segredo para ficar bom?
— Não, não sei, me conta o segredo para uma coisa ficar boa.
— É só colocar junto tudo o que a gente gosta.