Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Julio Cortázar

DISCURSO DO URSO

Eu sou o urso dos canos da casa, subo pelos canos nas horas de silêncio, pelos tubos de água quente, do aquecimento, do ar condicionado, vou pelos tubos de apartamento em apartamento, sou o urso que vai por todos os canos.
Acho que gostam de mim porque meu pelo conserva os condutos limpos, corro incessantemente pelos tubos e do que eu mais gosto é passar de andar em andar escorregando pelos canos. Às vezes puxo uma pata pela bica e a moça do terceiro andar berra que se queimou, ou grunho na altura do forro do segundo andar e a cozinheira Guillermina se queixa de que o gás anda ruim. De noite ando calado e é quando ando mais depressa, apareço no teto pela chaminé para ver se a lua está dançando lá em cima, e me deixo escorregar como o vento até as caldeiras do porão. E no verão nado à noite na cisterna salpicada de estrelas, lavo o rosto primeiro com uma mão, depois com as duas juntas, e isso me produz uma alegria muito grande.
Então escorrego por todos os canos da casa, grunhindo contente e os casais se agitam em seus leitos e reclamam contra a instalação dos encanamentos. Alguns acendem a luz e escrevem num papelzinho para lembrar-se de reclamar quando virem o porteiro. Eu procuro a bica que sempre fica aberta em algum andar, por ali meto o nariz e espio a escuridão dos quartos onde moram esses seres que não podem andar pelos canos, e fico com pena de vê-los tão desajeitados e grandes, de escutar como roncam e sonham em voz alta e estão tão sós. Quando eles lavam o rosto de manhã, eu lhes acaricio as faces, lambo-lhes o nariz e vou-me embora, vagamente convencido de ter feito um bem.

CORTÁZAR, Julio. Histórias de cronópios e de famas. Trad. Gloria Rodríguez. 12. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 81-82.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

inocência cruel

Já faz certo tempo que venho censurando em mim qualquer forma de inocência. Não é um processo consciente. Antes, é uma atenção muda e tensa aos movimentos ao meu redor. Mas certamente a inocência presente, aquela que ainda não se revelou como tal, deve escapar ao cerco. E então há a dor da incerteza em relação... em relação a quê? Pois é, não sei.