Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 11 de setembro de 2010

Clube da Esquina: o álbum

Não há adjetivos que cheguem para o álbum Clube da Esquina: uma torrente de surpresas e emoções e sensações e, por fim, algo parecido com o sublime: "San Vicente". Mas também "Um Girassol da Cor de Seu Cabelo", "Paisagem da Janela", "Cais", "O Trem Azul", "Tudo que Você Podia Ser", "Um Gosto de Sol", "Nada Será Como Antes" e, claro, "Clube da Esquina nº2", apenas melodia e a voz do Milton, mas já tão incorporada ao imaginário que é como se a letra estivesse ali, e fosse só cantar... e basta contar compasso, e basta contar consigo, que a chama não tem pavio, de tudo se faz canção e o coração na curva de um rio, rio, rio...

Paulo Leminski

podem ficar com a realidade
esse baixo astral
em que tudo entra pelo cano

eu quero viver de verdade
eu fico com o cinema americano

Os melhores poemas de Paulo Leminski. 6. ed. São Paulo: Global, 2002, p.123.

rodapé

"Valha-me Deus! É preciso explicar tudo." (Machado de Assis)1 


________________________
1. Escrevo isso no quadro, pondo logo em seguida: “não é para anotar”. 

trilha sonora da cena final de "O Céu de Suely" (belíssimo, tudo)

Jorge de Lima: Invenção de Orfeu

[Canto X, Missão e Promissão, X]

Não a vaga palavra, corrutela
vã, corrompida folha degradada,
de raiz deformada, abaixo dela,
e de vermes, além, sobre a ramada;

mas, a que é a própria flor arrebatada
pela fúria dos ventos: mas aquela
cujo pólen procura a chama iriada,
― flor de fogo a queimar-se como vela:

mas aquela dos sopros afligida,
mas ardente, mas lava, mas inferno,
mas céu, mas sempre extremos. Esta sim,

esta é que é a flor das flores mais ardida,
esta veio do início para o eterno,
para a árvore da vida que há em mim.

LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p. 194. 

Guimarães Rosa, em entrevista concedida pouco antes de falecer

[...] mas na mesma hora em que leio tenho de fato paixão por aquilo, gosto imenso, de maneira que entra, deve ter entrado muita coisa. Mas ao mesmo tempo, pobre de mim, entra outra coisa, entra tanta coisa, ficando tudo misturado. O que entra eu junto com... Júlio Dantas, Fernando Camacho, Walter Benjamin, Goethe, Rubem Braga, Magalhães Junior, Machado de Assis, Eça de Queiroz. Nada é alto demais. Nem baixo demais. Tudo é aproveitável. Agora, qualquer coisa que eu leio, se eu gosto, eu começo a colaborar com o que leio, mentalmente, eu estou mudando, aproveitando, vivendo, imaginando...”

CAMACHO, Fernando. Entrevista com João Guimarães Rosa. Humboldt, Rio de Janeiro, vol. 18, n. 37, p. 52, 1978.

"São Marcos" (a sub-estória inserta na estória)

Foi quase logo que eu cheguei ao Calango-Frito, foi logo que eu me cheguei aos bambus. Os grandes colmos jaldes, envernizados, lisíssimos, pediam autógrafo; e alguém já gravara, a canivete ou ponta de faca, letras enormes, enchendo um entrenó:
  
“Teus olho tão singular
Dessas trancinhas tão preta
Qero morer eim teus braço
Ai fermosa marieta”.

E eu, que vinha vivendo o visto mas vivando estrelas, e tinha um lápis na algibeira, escrevi também, logo abaixo:

Sargon
Assarhaddon
Assurbanipal
Teglattphalasar, Salmanassar
Nabonid, Nabopalassar, Nabucodonosor
Belsazar
Sanekherib.

E era para mim um poema esse rol de reis leoninos, agora despojados da vontade sanhuda e só representados na poesia. Não pelos cilindros de ouro e pedras, postos sobre as reais comas riçadas, nem pelas alargadas barbas, entremeadas de fios de ouro. Só, só por causa dos nomes.
Sim, que, à parte o sentido prisco, valia o ileso gume do vocábulo pouco visto e menos ainda ouvido, raramente usado, melhor fora se jamais usado (...). E não é sem assim que as palavras têm canto e plumagem.

ROSA, João Guimarães. São Marcos. ___. Sagarana. 13. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971, p. 236-238.

Fernando Pessoa: Intervalo doloroso (fragmento)

Entre mim e a vida há um vidro tênue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não posso lhe tocar.

PESSOA, Fernando. Quando fui outro. (Org. Luiz Ruffato). Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p. 75.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

um trecho de "Grande sertão"

"Desespero quieto às vezes é o melhor remédio que há. Que alarga o mundo e põe a criatura solta. Medo agarra a gente é pelo enraizado. Fui indo. De repente, de repente, tomei em mim o gole de um pensamento ― estralo de ouro: pedrinha de ouro. E conheci o que é socôrro." (ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.169).

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

um texto de Rildo Cosson sobre a experiência da literatura

A literatura e o mundo
"A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão de mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade."
Antonio Candido, O direito à literatura (1995).

Gosto da ideia de que nosso corpo é a soma de vários outros corpos. Ao corpo físico, somam-se um corpo linguagem, um corpo sentimento, um corpo imaginário, um corpo profissional e assim por diante. Somos a mistura de todos esses corpos, e é essa mistura que nos faz humanos. As diferenças que temos em relação aos outros devem-se à maneira como exercitamos esses diferentes corpos. Do mesmo modo que atrofiaremos o corpo físico se não o exercitarmos, também atrofiaremos nossos outros corpos por falta de atividade.
Nesse sentido, o nosso corpo linguagem funciona de uma maneira especial. Todos nós exercitamos a linguagem de muitos e variados modos em toda a nossa vida, de tal modo que o nosso mundo é aquilo que ela nos permite dizer, isto é, a matéria constitutiva do mundo é, antes de mais nada, a linguagem que o expressa. E constituímos o mundo basicamente por meio das palavras. No princípio e sempre é o verbo que faz o mundo ser mundo para todos nós, até porque a palavra é a mais definitiva e definidora das criações do homem. Como bem diz o pensamento popular, se uma imagem vale por mil palavras, mesmo assim é preciso usar a língua para traduzir as imagens e afirmar esse valor. É por isso também que as usamos para dizer que não temos palavras para expressar um pensamento ou um sentimento. Em síntese, nosso corpo linguagem é feito das palavras com que o exercitamos, quanto mais eu uso a língua, maior é o meu corpo linguagem e, por extensão, maior é o meu mundo.
E de onde vêm as palavras que alimentam e exercitam o corpo da linguagem?  Aqui outra particularidade do nosso corpo linguagem. As palavras vêm da sociedade de que faço parte e não são de ninguém. Para adquiri-las basta viver em uma sociedade humana. Ao usar as palavras, eu as faço minhas do mesmo modo que você, usando as mesmas palavras, as faz suas. É por esse uso, simultaneamente individual e coletivo, que as palavras se modificam, se dividem e se multiplicam, vestindo de sentido o fazer humano.
Em uma sociedade letrada como a nossa, as possibilidades de exercício do corpo linguagem pelo uso das palavras são inumeráveis. Há, entretanto, uma que ocupa lugar central. Trata-se da escrita. Praticamente todas as transações humanas de nossa sociedade letrada passam, de uma maneira ou de outra, pela escrita, mesmo aquelas que aparentemente são orais ou imagéticas. É assim com o jornal televisionado com o locutor que lê um texto escrito. É assim com práticas culturais de origem oral como a literatura de cordel, cujos versos são registrados nos folhetos para serem vendidos nas feiras. Também a tela do computador está repleta de palavras e os video games cheios de imagens não dispensam as instruções escritas. Essa primazia da escrita se dá porque é por meio dela que armazenamos nossos saberes, organizamos nossa sociedade e nos libertamos dos limites impostos pelo tempo e pelo espaço. A escrita é, assim, um dos mais poderosos instrumentos de libertação das limitações físicas do ser humano.
O corpo linguagem, o corpo palavra, o corpo escrita encontra na literatura seu mais perfeito exercício. A literatura não apenas tem a palavra em sua constituição material, como também a escrita é seu veículo predominante. A prática da literatura, seja pela leitura, seja pela escritura, consiste exatamente em uma exploração das potencialidades da linguagem, da palavra e da escrita, que não tem paralelo em outra atividade humana. Por essa exploração, o dizer o mundo (re)construído pela força da palavra, que é a literatura, revela-se como uma prática fundamental para a constituição de um sujeito da escrita. Em outras palavras, é no exercício da leitura e da escrita de textos literários que se desvela a arbitrariedade das regras impostas pelos discursos padronizados da sociedade letrada e se constrói um modo próprio de se fazer dono da linguagem que, sendo minha, é também de todos.
Isso ocorre porque a literatura é plena de saberes sobre o homem e sobre o mundo. [...] Na leitura e na escritura do texto literário encontramos o senso de nós mesmos e da comunidade a que pertencemos. A literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar expressar o mundo por nós mesmos. E isso se dá porque a literatura é uma experiência a ser realizada. É mais que um conhecimento a ser reelaborado, ela é a incorporação do outro em mim sem a renúncia da minha identidade. No exercício da literatura, podemos ser outros, podemos viver como os outros, podemos romper os limites do tempo e do espaço de nossa experiência e, ainda assim, sermos nós mesmos. É por isso que interiorizamos com mais intensidade as verdades dadas pela poesia e pela ficção.
A experiência literária não só nos permite saber da vida por meio da experiência do outro, como também vivenciar essa experiência. Ou seja, a ficção feita palavra na narrativa e a palavra feita matéria na poesia são processos formativos tanto da linguagem quanto do leitor e do escritor. Uma e outra permitem que se diga o que não sabemos expressar e nos falam de maneira mais precisa o que queremos dizer ao mundo, assim como nos dizer a nós mesmos. [...]

COSSON, Rildo. Letramento literário. São Paulo: Contexto, 2007, p. 15-17.

Walter Benjamin

Uma crônica de Manuel Bandeira dedicada a Sérgio Buarque de Holanda

Sérgio Buarque de Holanda acaba de regressar da Alemanha, onde passou dois anos preparando uma invasão à Rússia, que fracassou

É a segunda tentativa desse gênero que ele leva a efeito. A primeira, todos devem estar lembrados, foi dentro do país. Sérgio planejava tomar Vitória de assalto. Os fins da campanha eram nobilíssimos e prendiam-se a motivos filosóficos, posso dizê-lo sem medo de errar, embora desconheça ainda hoje, como desconhecia então, os princípios que constituíam naquela época a “mensagem” (é a palavra elegante agora) de Sérgio. Como quer que fosse, meu amigo não chegou nunca a atingir a capital do Espírito Santo. Conseguiu penetrar até Cachoeiro do Itapemirim (a invasão se fez pelo sul) e lá se defendeu com bravura pelo tempo de quase dois anos. É interessante notar que a capacidade de resistência de Sérgio vai sempre até dois anos, valor que podemos firmar como a “constante de resistência” de Sérgio. Afinal a sua situação em Cachoeiro do Itapemirim se tornou insustentável, sobretudo depois de um baile na sociedade recreativa local e de um ou dois passeios líricos no jardim da praça da matriz, Sérgio Buarque de Holanda bateu em retirada, abandonando uma mala, que lá ficou indevidamente retida durante mais de um ano, o que motivou uma intervenção diplomática da província do Curvelo (Distrito Federal), porquanto dentro daquela mala se continham dois volumes preciosos, o Up Stream de Ludwig Levinsohn e a Antologia Modernista de Língua Inglesa de Harriet Monroe com dedicatória de Constance Lindsay Skinner para um dos mais magros representantes sobreviventes da velha aristocracia rural pernambucana. Enfim tudo acabou bem, exceto para o Liceu de Vitória, que perdeu a única oportunidade talvez de arranjar para professor de filosofia um homem que se distingue notavelmente entre nós por sua cultura.
A invasão da Rússia também redundou em fracasso, embora organizada com um senso mais agudo das realidades haurido na experiência anterior. Desta vez o objetivo de Holanda era morrer de fome em Moscou. Não o conseguiu, porém. Os exércitos vermelhos o atacaram e o aprisionaram 25 quilômetros além da fronteira polaca. Expulso do território russo, Holanda coisou a nova Alemanha, entrevistou o comandante do Zeppelin e o romancista Mann, que descobriu ser neto de brasileira, assassinou o Dr. Pontes de Miranda, foi redator da revista Duco e tradutor da Ufa, conversou várias vezes com Brigitte Helm (pronunciem Briguite), Marlene Dietrich (protagonista de Anjo Azul, que Sérgio diz ser o maior filme do mundo) e outros colossos de Rhodes.
Entrevista com Sérgio num bonde da Gávea à 1h30m da madrugada:
― ?...
― O poeta de mais influência sobre a geração nova é Hölderlin, toda a poesia atual deriva dele, é na Alemanha o que é Rimbaud na França, mais profundo que Rimbaud.
― ?...
― Dos velhos? Goethe.
― ?...
― Heine não, se lê muito menos. Schiller também caiu também caiu muito. Schiller é o representante da poesia do idealismo kantiano. O idealismo perde terreno cada vez mais na Alemanha. A mocidade está voltada para Klages, um nome quase inteiramente desconhecido fora da Alemanha e que dentro dela no entanto goza de enorme prestígio.
― ?...
― A filosofia de Klages é a da libertação dos instintos.
― ?...
― Quando saí daqui eu tinha uma tendência para o comunismo. Hoje estou achando nele o mesmo excesso de racionalismo do catolicismo. Comunismo e catolicismo são soluções extremamente racionalistas.
Por aí assim foi o Sérgio e passou depois a falar da prática da liberação de um certo instinto na Alemanha. Brasileiros que viveis uma vida apertada, conversai com o Sérgio! Ele vos contará coisas de deixar água na boca e traz detalhes surpreendentes, como o da venda em caixas automáticas, que se encontram por toda parte (nos cafés, nos bares, nas ruas, ao lado das caixas de correio) de um certo artigo de caout-chouc, que aqui só se compra em farmácia e meio que encalistradamente. Desse mesmo artigo há uma casa especial na Wilhelm Strasse, em cuja vitrine se ostenta um modelo da mercadoria em tamanho aumentadíssimo, aí coisa de um metro.
Todas essas picantes notícias da Alemanha não me consolam do desapontamento que meu causou o fracasso da invasão da Rússia pelo meu amigo Sérgio Buarque de Holanda. Tudo que se lê sobre a República dos Sovietes inspira desconfiança aos espíritos imparciais. As notícias são as mais contraditórias, segundo as ideias políticas dos viajantes que as visitam. E ainda se a gente pudesse acreditar na boa fé que as ditam, Sérgio, com a sua inteligência, a sua cultura, o seu tino jornalístico, a sua probidade, estava nas condições de nos fornecer um depoimento de primeira ordem e inteiramente digno de confiança. Estou certo que ele escreveria um livro notável, que interessaria ao mundo inteiro. A mesma ausência de qualquer fé bem definida de sua parte, de adesão a qualquer sistema, era uma garantia da isenção com que ele nos informaria. A leve tendência que ele manifestava para a doutrina comunista, tendência que se dissipou ao contato da Alemanha nova, influenciada pela filosofia de Klages, era apenas o necessário e bastante para que ele tudo olhasse com a simpatia desapaixonada de que não são capazes nem os comunistas militantes nem os seus adversários. E agora acabou-se! Sérgio é da... libertação dos instintos...

O Jornal, RJ, 24.01.1931.

BARBOSA, Francisco de Assis (Org.). Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Rocco, 1989, p. 291-293.

Emily Dickinson: "A Fala é um sinal de afeto / E outro o Silêncio"

A Fala é um sinal de Afeto
E outro o Silêncio
A arte da comunicação perfeita
Ninguém possui

Existe e lá no íntimo se prova
A sua evidência ―
O Apóstolo disse “Vejam” ―
Porém não viu!


Speech is one symptom of Affection
And Silence one ―
The perfectest communication
Is heard of none ―

Exists and its indorsement
Is had within ―
Behold, said the Apostle,
Yet had not seen!

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p. 80-81.

Emily Dickinson

Não interessa à Abelha
Se o Mel tem Dinastia ―
Um Trevo, sempre, para ela,
É Aristocracia.


The Pedigree of Honey
Does not concern the Bee ―
A Clover, any time, to him,
Is Aristocracy.

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p. 256-257.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

"Que Fim Levaram Todas as Flores" - Secos & Molhados (Fantástico, 1978)

"Flores Astrais" - Secos & Molhados: "o verme passeia na lua cheia"

sonho

... sonho, pela primeira vez, com este espaço... no sonho aparecem pessoas, conhecidas ou não, comentando, dizendo coisas, elogiando, incentivando que seja... num desses comentários aparece, numa fala muito bem elaborada, que eu não consigo recuperar, a palavra insignificante... termo que postei faz algum tempo numa fala casual, mas que me custou horas de sentimentos confusos, difíceis e contraditórios ― o mais se deduz... a fala era: de tanto significar a coisa vai ficando insignificante... mas o mais bacana foi ter sonhado, e sonhado com uma interlocução desejada (já é manhã, mas o meu fuso horário do pacífico vai registrar isso como madrugada).

"Amor" - Secos & Molhados (TV Tupi, 1974): "simples e suave coisa / suave coisa nenhuma"

terça-feira, 7 de setembro de 2010

verso de hoje

"I ain’t looking for nothing in anyone’s eyes" 


(Bob Dylan - Not Dark Yet)

(Fonte: site oficial do compositor)

Alberto Magnelli, Clarice Lispector e o figurativo em arte

Visitando a exposição de Alberto Magnelli (CCBB-RJ), me ocorreu o seguinte trecho de Clarice Lispector, intitulado "Abstrato é o figurativo". Segue: "Tanto em pintura como em música e literatura, o que tantas vezes chamam de abstrato me parece apenas o figurativo de uma realidade mais delicada e mais difícil, menos visível a olho nu." (A descoberta do mundo, Rio de Janeiro, Rocco, 1999, p. 316). Trata-se de um artista que envereda pela via do abstrato, o que torna sua obra mais densa, mais difícil de ser percorrida pela hermenêutica da busca de sentidos. Demanda, certamente, um segundo olhar.

Alberto Magnelli, Linguagem Turbulenta, 1937

belo é o que agrada

post que segue é dos meus preferidos, pelo resgate de leituras feitas e, em alguns casos, refeitas, concernentes à noção de beleza. Como estava perdido num canto qualquer do mês de abril, resolvi trazê-lo para o momento presente, em que a leitura por aqui se tornou mais movimentada, e a questão voltou à baila, pelo poema do Manuel Bandeira e seu verso contundente: ― Era belo, áspero, intratável. Esta uma das vantagens da blogosfera  reordenar textos a partir de novos con-textos. Segue: um comentário anterior, sobre um trecho de um poema de Alberto Caeiro, remeteu-me ao conceito de beleza. O trecho do poema: "Às vezes, em dias de luz perfeita e exata,/ Em que as cousas têm toda a realidade que podem ter,/ Pergunto a mim próprio devagar/ Por que sequer atribuo eu/ Beleza às coisas.// Uma flor acaso tem beleza?/ Tem beleza acaso um fruto?/ Não: têm cor e forma/ E existência apenas.// A beleza é o nome de qualquer cousa que não existe/ Que eu dou às cousas em troca do agrado que me dão./ Não significa nada./ Então por que digo eu das cousas: são belas?" (Fernando Pessoa. O eu profundo e outros eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 153-154). Descobri depois, via Joyce, que a ideia é antiga, remonta a São Tomás de Aquino (pulcra sunt quae visa placent). Há um diálogo extenso, no Retrato do artista quando jovem, discutindo a questão. Uma hora, se animar, transcrevo na íntegra. Por ora, o cerne. Diz Stephen Dedalus: "(...) embora o mesmo objeto possa não ser bonito para toda a gente, toda gente pode admirar um objeto bonito, encontrar nele certas relações que satisfaçam e coincidam com os estágios próprios mesmos de toda a apreensão estética. Tais relações do sensível, visíveis para mim através de uma forma e para ti através de outras, devem ser, por conseguinte, as necessárias qualidades da beleza. Já agora podemos voltar ao nosso velho amigo São Tomás para outros dez vinténs de sabedoria." (James Joyce. Retrato do artista quando jovem. Trad. José Geraldo Vieira. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 235). Reparar na distinção sutil, mas fundamental, entre "toda a gente" e "toda gente". 

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

road movies

Segue um levantamento que Maurício Caleiro faz, em seu site Cinema & Outras Artes, dos filmes de estrada: Viajando nos road movies

Manuel Bandeira

versão do poema conforme publicado no terceiro e
último número da revista
Estética (abr./jun. 1925, p.256)

O cacto

Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.

Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
 
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas privou
                                      [a cidade de iluminação e energia:

― Era belo, áspero, intratável.
 Petrópolis, 1925

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.127-128. 

no tempo da delicadeza: chico buarque

domingo, 5 de setembro de 2010

Sérgio Buarque de Holanda: “os novos do Piauí” (1926)

Segue um trecho em que Francisco de Assis Barbosa relata a participação de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e outros intelectuais ligados à Revista do Brasil, fase Assis Chateaubriand, no episódio dos “novos do Piauí”. Em seguida, o depoimento do próprio Sérgio Buarque, em entrevista concedida em 1975:

“Assis Chateaubriand havia entregue a Rodrigo M. F. de Andrade a direção da Revista do Brasil, que aparece em formato diferente, bem mais flexível. Prudente [de Moraes, neto] é o secretário, Sérgio, colaborador. Gilberto Freyre, PhD pela Universidade de Columbia, EUA, fixa-se em Pernambuco. Para o Livro do Nordeste, que aparece para comemorar o primeiro centenário do Diário de Pernambuco (1825-1925), a pedido de Gilberto Freyre Manuel Bandeira havia escrito a ‘Evocação do Recife’, que marcou o reencontro do grande poeta com sua terra natal. Rodrigo, Sérgio e Prudente logo se irmanaram àquele novo companheiro que a todos fascinava pela autenticidade e ausência de pose. Na Revista do Brasil, começou a publicar crônicas ora com o pseudônimo de Esmeraldino Olímpio, ora com o de J. J. Gomes Sampaio. Um desses artiguetes chegou a despertar a atenção de alguns intelectuais, como Nestor Vítor, que fez questão de conhecer J. J. Gomes Sampaio, que escrevera sobre ‘Os novos do Piauí’, todos ou quase todos mais simbolistas que propriamente modernistas. Acontece que não existiam os ‘novos’ do Piauí, pura invenção lúdica aos que acreditavam demais no Modernismo.”

BARBOSA, Francisco de Assis (Org.). Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Rocco, 1989, p.21-22. OU: BARBOSA, Francisco de Assis. Verdes anos de Sérgio Buarque de Holanda. In: Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura; Universidade de São Paulo, 1988, p.39.


Maria Célia Leonel ― Os colaboradores faziam reuniões para a elaboração da revista [Estética]?

Sérgio Buarque de Holanda ― Não, mesmo porque tenho a impressão de que uma parte dos colaboradores estava em São Paulo, como o Couto de Barros. Ele era um sujeito sério que escrevia contos engraçados, como aquele da mulher que virou infinita, da Klaxon. Tem outro conto, mas não sei onde saiu. Talvez na Revista do Brasil, na segunda fase, que foi feita pelo Rodrigo, pelo Prudente e em que colaborei. Nela saiu um artigo sobre os “novos do Piauí” escrito pelo Gilberto, mas assinado J. J. Gomes Sampaio. Entre outros “novos” piauienses inventados lembro-me de um que se chamava Esmeraldino Olímpio. Esses e outros serviram depois de pseudônimos em artigos onde nós mesmos nos criticávamos e enaltecíamos, por exemplo, o Oswaldo Orico. O Gilberto mandou imprimir um cartão de J. J. Gomes Sampaio, com a indicação: literato. Pensamos então em um piauiense ilustre, e com ele foi posto o nome da rua: Marquês de Paranaguá, número 14. Não podia ser muito alto, ninguém sabia se a rua, caso existisse, era grande. Antônio de Alcântara Machado fez um artigo, se não me engano com o nome de Esmeraldino Olímpio. Gilberto Freyre estava no Rio e se deixou apresentar como sendo J. J. Gomes Sampaio a um crítico do Simbolismo, que o cumprimentou e o chamou de mestre. Creio que o homem desconfiou do negócio. [...]  

LEONEL, Maria Célia. Estética e Modernismo. Revista trimensal. São Paulo: Hucitec, 1984, p. 174. [Trecho de entrevista concedida por Sérgio Buarque à autora do estudo]

de uma questão da PUC (2003)

José Paulo Paes

auto-epitáfio nº 2

para quem pediu sempre tão pouco
o nada é positivamente um exagero

Os melhores poemas de José Paulo Paes. 3.ed. São Paulo: Global, 2000, p. 225.