Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


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domingo, 1 de abril de 2012

nosso primeiro de abril

Advertência!

Quem avisa, amigo é: se o governo continuar deixando que certos jornalistas falem em eleições; se o governo continuar deixando que determinados jornais façam restrições à sua política financeira; se o governo continuar deixando que alguns políticos teimem em manter suas candidaturas; se o governo continuar deixando que algumas pessoas continuem pensando com a própria cabeça; e, sobretudo, se o governo continuar deixando que circule esta revista, com toda sua irreverência e crítica, dentro em breve estaremos caindo numa democracia.
Revista Pif-Paf, 1964.

Millôr Fernandes. 30 anos de mim mesmo. Rio de Janeiro: Desiderata, 2006, p.161.

terça-feira, 13 de março de 2012

“Nesta casa se vendem ovos frescos”

O texto que segue é uma das melhores recordações de meu tempo de escola. Achei que nunca mais iria colocar os olhos nele novamente, pois que tomei contato com ele num manual didático, circunstância única de que me recordo. Mesmo a lembrança dos detalhes era vaga, e no Google, até então, o máximo que conseguia era encontrar pessoas como eu, procurando o texto. Agora encontrei-o digitalizado, e resolvi transcrever. A autoria foi uma grata surpresa: Millôr Fernandes.

A MENSAGEM

Num mundo em que a comunicação é tudo e o dinheiro sempre pouco, conta-se aqui uma história altamente moral sobre a inutilidade da primeira enquanto se economiza o segundo:
E chamou o pintor e lhe encomendou a placa para anunciar a especialidade do seu negócio: “Nesta casa se vendem ovos frescos”. Além dos dizeres recomendou ao pintor que bolasse uma figura, uma alegoria referente ao ramo. E perguntou quanto era. O pintor disse que ficaria em 50.000. Cinquenta mil o quê?, indagou o comerciante, pensando, inutilmente, numa moeda mais desvalorizada do que o cruzeiro. Cinquenta mil cruzeiros, disse o pintor. Ah, não vale, disse então o comerciante. Como não vale?, retrucou o pintor, ofendido em sua arte mais do que atingido em sua economia. O senhor não poderia reduzir um pouco?, arriscou o comerciante. Claro que posso, disse o pintor, posso reduzir a figura e os dizeres. Como assim?, disse o negociante? Olha, explicou o pintor, pra começo de conversa não precisamos usar figura nenhuma. Se se diz que o senhor vende ovos não há necessidade de colocar nenhuma galinha pintada, não é mesmo? Se o normal são ovos de galinha, o fato de não ter nenhuma outra ave faz com que os ovos sejam, presumivelmente, de galinha. É certo, concordou o negociante. Então, fez o pintor, vinte mil cruzeiros de menos. Agora também não é necessário dizer nesta casa. Se o freguês passa por aqui e vê: “Se vendem ovos frescos”, já sabe que é nesta casa. Ele não vai pensar que é na casa ao lado, não é mesmo? Certíssimo!, exclamou o comerciante. Então, continuou o pintor, por que colocar “Se vendem”? Se o freguês potencial lê “Ovos Frescos”, já sabe que se vende. Ninguém pensaria que o senhor vai abrir uma casa comercial para alugar ovos ou apenas para expô-los, right? É mesmo!, espantou-se ainda mais o comerciante. Quanto ao “Frescos”, continuou impávido o pintor, refletindo melhor não é de boa psicologia usar essa palavra. “Frescos” lembra sempre a hipótese contrária, a de ovos “velhos”. Não deve nem ter passado pela cabeça do comprador a ideia de que seus ovos podem ser outra coisa senão frescos. Portanto, tiremos também o “frescos”! Certíssimo!, berrou o negociante, agora profundamente entusiasmado com a dialética do pintor. Façamos, portanto, apenas OVOS. Por favor, desenhe aí só essa palavra, bem bonita, bem clara: OVOS! Só ovos, ovos tout court, ovos em si mesmos, que se vendam pela sua pura e simples aparência de ovos, pelo seu inimitável oval! Então vamos lá, concordou o pintor. Mas antes de começar a usar o pincel voltou-se para o negociante e perguntou, preocupado: Mas, me diga aqui, amigo ― pensando bem, por que vender ovos?
Veja, 1970.

Millôr Fernandes. 30 anos de mim mesmo. São Paulo: Desiderata, 2006, p.218. Texto digitalizado aqui.

domingo, 11 de março de 2012

Millôr Fernandes

A VAGUIDÃO ESPECÍFICA

"As mulheres têm uma maneira de falar que eu chamo de vago-específica."
Richard Gehman

― Maria, ponha isso lá fora em qualquer parte.
― Junto com as outras?
― Não ponha junto com as outras, não. Senão pode vir alguém e querer fazer coisa com elas. Ponha no lugar do outro dia.
― Sim senhora. Olha, o homem está aí.
― Aquele de quando choveu?
― Não, o que a senhora foi lá e falou com ele no domingo.
― Que é que você disse a ele?
― Eu disse pra ele continuar.
― Ele já começou?
― Acho que já. Eu disse que podia principiar por onde quisesse.
― É bom?
― Mais ou menos. O outro parece mais capaz. 
― Você trouxe tudo pra cima?
― Não senhora, só trouxe as coisas. O resto não trouxe porque a senhora recomendou para deixar até a véspera.
― Mas traga, traga. Na ocasião nós descemos tudo de novo. É melhor, senão atravanca a entrada e ele reclama como na outra noite.
― Está bem, vou ver como.
O Pif-Paf / O Cruzeiro / 1956

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

millôr fernandes: fábulas fabulosas III

OS GASTOS DISPENSÁVEIS

Estava o homem dentro da mata, cortando a sua arvorezinha, quando ouviu o grito de socorro: “Au secours! Souvez-moi!” Imediatamente, com aquela humanidade de que todos somos feitos, pôs-se a correr. Evidentemente, com aquela humanidade de que todos somos feitos, na direção contrária ao grito do socorro. Mas, por isso ou por aquilo, foi dar exatamente no local de onde partiam os gritos de socorro. Numa pequena clareira se lhe deparou então um quadro horrível: um homem, ou melhor, um camponês, lutando braço a braço com uma fera. Sentada numa pedra, com um rifle na mão, uma mulher, aparentemente mulher do camponês, contemplava a luta, pitando o seu pito. Sem saber como agir o homem avançou para os dois que lutavam, logo recuou, logo tentou avançar de novo, recuou de novo e, sem ter o que fazer, atarantado, voltou-se para a mulher e berrou: “Que faz você aí, mulher dos infernos? Por que fica assim, sem fazer nada? Por que não atira? Vamos, atire!” E a mulher, pitando seu pito, respondeu então: “Calma. Calma, homem! Pode ser que a fera me economize uma bala.”

MORAL: Os nossos pontos de vista não são necessariamente os alheios.

 Millôr Fernandes. Fábulas fabulosas. 15.ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p.41-42.

millôr fernandes: fábulas fabulosas II

HIERARQUIA

Diz que um leão enorme ia andando chateado, não muito rei dos animais, porque tinha acabado de brigar com a mulher e esta lhe dissera poucas e boas. Ainda com as palavras da mulher o aborrecendo o leão subitamente se defrontou com um pequeno rato, o ratinho mais menos que ele já tinha visto. Pisou-lhe a cauda e, enquanto o rato forçava inutilmente pra escapar, o leão gritou: "Miserável criatura, estúpida, ínfima, vil, torpe: não conheço na criação nada mais insignificante e nojento. Vou te deixar com vida apenas para que você possa sofrer toda a humilhação do que lhe disse, você, desgraçado, inferior, mesquinho, rato!" E soltou-o. O rato correu o mais que pôde, mas, quando já estava a salvo, gritou pro leão: "Será que Vossa Excelência poderia escrever isso pra mim? Vou me encontrar com uma lesma que eu conheço e quero repetir isso pra ela com as mesmas palavras!"

MORAL: Afinal ninguém é tão inferior assim.
SUBMORAL: Nem tão superior, por falar nisso.

Millôr Fernandes. Fábulas fabulosas. 15.ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p.110.

millôr fernandes: fábulas fabulosas I

A MORTE DA COLIBRI

Morreu a colibri. Morreu rápido, fácil, sem dores ou aflições. Morreu como um passarinho. Sua única tristeza, ao partir, parecia ser a certeza de que, como todos os colibris, o esposo morreria assim que ela abandonasse o mundo. Pois é sabido que um colibri não pode viver sem a sua companheira. Jamais houve um colibri que conseguisse resistir à morte da fêmea, eis a suprema grandeza de um amor. Mas como a colibri sabia disso, isso também sabia o dono do colibri viúvo. E, assim que a colibri morreu, o esperto dono, rapidamente, colocou diante do colibri um espelho perfeitamente polido para que a avezinha não sentisse a falta da companheira. E como tal se buscava, tal se deu. O colibri, que era míope ou narcisista, vendo-se refletido no espelho, considerou duplicada a sua vida e, assim, continuou vivendo, contrariando a lenda e a ornitologia. Mas lá veio o dia fatal em que um moleque atirou uma pedra na gaiola, tentando acertar o colibri. Não acertou no colibri mas acertou no espelho. E logo, num minuto, olhando em volta, atônito, apalermado, o colibri entrou em pânico, em agonia, e sucumbiu. O médico chegou apenas a tempo de constatar a morte e declarar a causa: morreu de espelho partido.

MORAL: Ninguém pode viver sem o reflexo da própria imagem.


Millôr Fernandes. Fábulas fabulosas. 15.ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p.27-28.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

a quarta ponta do triângulo do tráfico de drogas


De tudo que se tem falado sobre a onda de violência que se intensificou na região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro, há uma espécie de silêncio em torno de um fator bem simples, mas fundamental: o usuário de drogas. É ele a meta final do tráfico. Faz bastante tempo, numa mesa da ABRALIC, alguém falava acerca do fenômeno da neofavela, hoje rebatizada de comunidade, por que em tese estaria recebendo investimentos/recursos do Estado. Esta fala caracterizou com bastante humor, e creio que com acerto, o traficante como um empresário: todas as ações dele visavam movimentar um negócio (que é lucrativo). Se há demanda na ponta do consumo, é ilusório achar que a repressão aos atuais donos do negócio vai resolver o problema. A polícia intervém na repressão a um comércio que não vai cessar. Novos chefes já estão a postos para ocupar os lugares deixados vagos. E a apologia da ação policial, promovida pela imprensa, enaltecendo os capitães nascimentos de plantão, é nefasta, na medida em que tende a transformar o que está acontecendo numa espécie de ficção que vai mudar a realidade, quando a "realidade" das pessoas que estão sofrendo com as ações da polícia (e dos traficantes e dos milicianos) talvez seja pior que as nossas piores ficções. Abaixo, um texto de Millôr Fernandes acerca das eventuais diferenças entre um banqueiro e um assaltante, que fala por si: 

Vi o milionário saltar da limusine, caminhar tranquilamente para dobrar a esquina e penetrar na mansão onde mora. Antes de dobrar, exatamente na dobra da esquina, e nas dobras da noite, lhe saiu um trintoitão na cara acompanhado da voz surda de um sujeito que ele mal viu por trás de galhos: "Passa tudo e não chia!" Homem do mundo, acostumado aos azares e venturas da economia da vida, o rico banqueiro não se deixa assustar. Apenas aconselha: “Calma, amigo. Passo tudo e não chio, que não sou besta. E vou te dizer uma coisa, reconheço o teu valor ― você faz o que pode para conseguir o que precisa. Como me assalta deve saber quem sou, um banqueiro, um capitalista. Mas, curiosamente, não sabe quem é, pois aceita o vergonhoso epíteto de assaltante. E, no entanto, você é um capitalista igualzinho a mim. Só que, até agora, conseguiu capital apenas pra se estabelecer com um trinta e oito. Boa noite. Posso ir?”

Millôr Fernandes. Disponível em: http://www2.uol.com.br/millor/economia/018.htm

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

"O importante não é a morte, é o que ela nos tira" - Millôr Fernandes

A MORTE DA TARTARUGA


O menininho foi ao quintal e voltou chorando: a tartaruga tinha morrido. A mãe foi ao quintal com ele, mexeu na tartaruga com um pau (tinha nojo daquele bicho) e constatou que a tartaruga tinha morrido mesmo. Diante da confirmação da mãe, o garoto pôs-se a chorar ainda com mais força. A mãe a princípio ficou penalizada, mas logo começou a ficar aborrecida com o choro do menino. “Cuidado, senão você acorda o seu pai”. Mas o menino não se conformava. Pegou a tartaruga no colo e pôs-se a acariciar-lhe o casco duro. A mãe disse que comprava outra, mas ele respondeu que não queria, queria aquela, viva! A mãe lhe prometeu um carrinho, um velocípede, lhe prometeu uma surra, mas o pobre menino parecia estar mesmo profundamente abalado com a morte do seu animalzinho de estimação.

Afinal, com tanto choro, o pai acordou lá dentro, e veio, estremunhado, ver de que se tratava. O menino mostrou-lhe a tartaruga morta. A mãe disse: ― “Está aí assim há meia hora, chorando que nem maluco. Não sei mais o que faço. Já lhe prometi tudo mas ele continua berrando desse jeito”. O pai examinou a situação e propôs: ― “Olha, Henriquinho. Se a tartaruga está morta não adianta mesmo você chorar. Deixa ela aí e vem cá com o pai”. O garoto depôs cuidadosamente a tartaruga junto do tanque e seguiu o pai, pela mão. O pai sentou-se na poltrona, botou o garoto no colo e disse: ― “Eu sei que você sente muito a morte da tartaruguinha. Eu também gostava muito dela. Mas nós vamos fazer pra ela um grande funeral.” (Empregou de propósito a palavra difícil). O menininho parou imediatamente de chorar. “Que é funeral?” O pai lhe explicou que era um enterro. “Olha, nós vamos à rua, compramos uma caixa bem bonita, bastante balas, bombons, doces e voltamos para casa. Depois botamos a tartaruga na caixa em cima da mesa da cozinha e rodeamos de velinhas de aniversário. Aí convidamos os meninos da vizinhança, acendemos as velinhas, cantamos o “Happy-Birth-Day-To-You” pra tartaruguinha morta e você assopra as velas. Depois pegamos a caixa, abrimos um buraco no fundo do quintal, enterramos a tartaruguinha e botamos uma pedra em cima com o nome dela e o dia em que ela morreu. Isso é que é funeral! Vamos fazer isso?” O garotinho estava com outra cara. “Vamos, papai, vamos! A tartaruguinha vai ficar contente lá no céu, não vai? Olha, eu vou apanhar ela”. Saiu correndo. Enquanto o pai se vestia, ouviu um grito no quintal. “Papai, papai, vem cá, ela está viva!” O pai correu pro quintal e constatou que era verdade. A tartaruga estava andando de novo, normalmente. “Que bom, hein?” ― disse ― “Ela está viva! Não vamos ter que fazer o funeral!” “Vamos sim, papai” ― disse o menino ansioso, pegando uma pedra bem grande ― “Eu mato ela.”

MORAL: O IMPORTANTE NÃO É A MORTE, É O QUE ELA NOS TIRA.


FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p.98-99. 

domingo, 14 de novembro de 2010

"A raposa e o bode": duas versões

A RAPOSA E O BODE

Uma raposa caiu em um poço e foi obrigada a permanecer ali. Um bode, levado pela sede, aproximou-se do mesmo poço e, vendo a raposa, perguntou-lhe se a água estava boa. E ela, regozijando-se pela circunstância, pôs-se a elogiar a água, dizendo que estava excelente e o aconselhou a descer. Depois que, sem pensar e levado pelo desejo, o bode desceu junto com a raposa e matou a sede, perguntou-lhe como sair. A raposa tomou a palavra e disse: “Conheço um jeito, desde que nos salvemos juntos. Apoia, pois, teus pés da frente contra a parede e deixa teus chifres retos. Eu subo por aí e te guindarei.” Tendo o bode se prestado de boa vontade à proposta dela, a raposa, subindo pelas pernas dele, por seus ombros e seus chifres, encontrou-se na boca do poço, saltou e se afastou. Como o bode a censurasse por não cumprir o combinado, a raposa voltou-se e disse ao bode: “Ó camarada, se tivesses tantas ideias como fios de barba no queixo, não terias descido sem antes verificar como sair.”

Assim também, é preciso que os homens sensatos primeiro verifiquem o resultado de uma ação antes de pô-la em prática.

ESOPO. Fábulas completas. Trad. Neide Smolka. São Paulo: Moderna, 1994. Disponível em não gosto de plágio.


FOPOS DE ESÁBULA
Uma tentativa B.N. (Bossa Nova) de escrever as fábulas de Esopo
 na linguagem do tempo em que os animais falavam.

A BAPOSA E O RODE

Por um asino do destar, uma rapiu caosa num pundo profoço, do quir não consegual saiu. Um rode, passi por alando, algois tum detempo e vosa a rapendo foi mordade pela curiosidido. "Comosa rapadre” — perguntou — “que ê que vocé esti fazá aendo?" "Voção entê são nabe?" respondosa a mapreira rateu. "Vaí em a mais terrêca sível de teste a histoda do nordória. Salti aquei no foço deste pundo e guardarar a ei que brotágua sim pra mó. Porér, se vocem quisê, como é mau compedre, per me fazia companhode.” Sem pensezes duas var, o bem saltode tambou no pundo do foço. A rapente, imediatamosa, trepostas nas cou-lhes, apoifre num dos xides do bou-se e salfoço tora do fou, enquava berranto: "Adadre, compeus!"

MORAL: JAMIE CONFAIS EM QUA ESTADE EM DIFICULDÉM.


FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p.76. 

terça-feira, 22 de junho de 2010

aonde vai a poupança popular?

Aonde vai a poupança popular?
Millôr Fernandes

O capitalistão americano entrou no Museu do Prado* e ficou besta diante de tanta arte. Que realidade, que vida, que grandiosidade! Os porretas desses pintores pintavam tão bem que as roupas até pareciam de vera fazenda. Depois de olhar e mais olhar, o capitalistão sentiu lá as suas limitações culturais**. Vendo que perto dele tinha um italiano fardado, à espera da gorjeta, o capitalistão botou a mão no bolso, puxou uma de cinco, deu pro homem*** e perguntou: “Quem foi que pintou isso?”. “Raffaello”, o italianão respondeu. “Bravo pittore.” “É vivo ainda?”, perguntou o capitalistão. “Não, já morreu”, respondeu o italianão. “Essa tela hoje deve estar valendo parecchi miliardi****, milhões de dólares”. “Milhões?”, boquiabriu-se o capitalistão. “E quem são esses personagens aí, pintados por um pintor tão caro?” “A virgem Maria, São José e o menino Jesus.” “Ah,” tornou o capitalistão, “e que é que estão fazendo ai?” “É a fuga pro Egito”, explicou o italianão. “Então é por isso que eles estão assim tão mal vestidos, é?” “Não. Eles sempre foram mesmo muito pobres”. “Ah,” exclamou de novo o capitalistão, “não eram nobres?” “Nobres, pô!”, respondeu o italianão. “Maria era uma mulher do povo, o marido era um carpinteiro.” “É o tal negócio,” concluiu então o capitalistão, “eu sempre digo que é por isso que a Espanha não vai pra frente: taí, vê? Uns proletários mortos de forme, gente que não tem nem o que comer, fugindo da polícia, e todo o dinheiro que têm, em vez de colocar na Bolsa, que é que eles fazem? Gastam tudo, mandando um pintor caríssimo fazer o retrato deles.”

MORAL: DESSA MANEIRA A ESPANHA JAMAIS PODERÁ ENFRENTAR O DESAFIO AMERICANO.

* Na verdade, quando ele entrou no Museu do Prado pensava que ia ver uma coleção de relíquias turísticas.
** É fatal. Qualquer coisa que a gente aprende só faz nos dar uma imensa impressão de estupidez.
*** Deu pro homem apenas economicamente, é bom esclarecer.
**** Esse italiano no Museu do Prado é uma tentativa minha de evitar qualquer forma de realismo.

Millôr Fernandes. Fábulas Fabulosas. 15. ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p. 111-112.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

"A raposa e as uvas" - Millôr Fernandes

De repente a raposa, esfomeada e gulosa, fome de quatro dias e gula de todos os tempos, saiu do areal do deserto e caiu na sombra deliciosa do parreiral que descia por um precipício a perder de vista. Olhou e viu, além de tudo, à altura de um salto, cachos de uvas maravilhosos, uvas grandes, tentadoras. Armou o salto, retesou o corpo, saltou, o focinho passou a um palmo das uvas. Caiu, tentou de novo, não conseguiu. Descansou, encolheu mais o corpo, deu tudo o que tinha, não conseguiu nem roçar as uvas gordas e redondas. Desistiu, dizendo entre dentes, com raiva: "Ah, também, não tem importância. Estão muito verdes." E foi descendo, com cuidado, quando viu à sua frente uma pedra enorme. Com esforço empurrou a pedra até o local em que estavam os cachos de uva, trepou na pedra, perigosamente, pois o terreno era irregular e havia o risco de despencar, esticou a pata e... conseguiu!  Com avidez colocou na boca quase o cacho inteiro. E cuspiu. Realmente as uvas estavam muito verdes!

MORAL: A frustração é uma forma de julgamento tão boa como outra qualquer.

FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas. 15. ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p. 116.

quarta-feira, 3 de março de 2010

uma historieta do millôr, cheia de humor

O SOCORRO
Millôr Fernandes

Ele foi cavando, cavando, cavando, pois sua profissão – coveiro – era cavar. Mas, de repente, na distração do ofício que amava, percebeu que cavara demais. Tentou sair da cova e não conseguiu. Levantou o olhar para cima e viu que, sozinho, não conseguiria sair. Gritou. Ninguém atendeu. Gritou mais forte. Ninguém veio. Enrouqueceu de gritar, cansou de esbravejar, desistiu com a noite. Sentou-se no fundo da cova, desesperado. A noite chegou, subiu, fez-se o silêncio das horas tardias. Bateu o frio da madrugada e, na noite escura, não se ouvia um som humano, embora o cemitério estivesse cheio de pipilos e coaxares naturais dos matos. Só pouco depois da meia noite é que lá vieram uns passos. Deitado no fundo da cova o coveiro gritou. Os passos se aproximaram. Uma cabeça ébria apareceu lá em cima, perguntou o que havia: “O que é que há”?
O coveiro então gritou, desesperado: “Tire-me daqui, por favor. Estou com um frio terrível!” “Mas, coitado!” – condoeu-se o bêbado – “Tem toda razão de estar com frio. Alguém tirou a terra de cima de você, meu pobre mortinho!” E, pegando a pá, encheu-a de terra e pôs-se a cobri-lo cuidadosamente.

MORAL: nos momentos de necessidade é preciso olhar muito bem pra quem se pede ajuda.

Fábulas fabulosas. São Paulo: Círculo do Livro, s/d, p. 13.