Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 27 de agosto de 2011

maré

Felix Valloton, The Rising Tide, 1913 (AQUI)


... Então houve muitas coisas, há muitas estórias entrelaçadas, e uma necessidade de calmaria. Por isso o ritmo por aqui será sensivelmente diminuído ― já está, aliás, em compasso de conta-gotas. Na segunda, dia 29/08, este blog faz dois anos. De certa forma, cumpriu seu papel, aquilo a que se propunha. Se vou continuar é algo que depende muito mais de outros desdobramentos, envolvendo questões inadiáveis, do que de minha própria vontade. Esta anda um tanto afastada daqui, embora o impulso inicial ainda permaneça vivo. Viva também está a vida, e mostrando-se incrivelmente poderosa, exigente, tirânica até. Não subestimo a experiência de enunciação e interlocução que a maré levou e trouxe, bem como a sui generis experiência com a poesia que, a partir de certo ponto, passei a ter. Mas nesse interregno eu mudei muito, muitas vezes, mais do que poderia supor, prever ou imaginar, e sinto essas mudanças, no momento, me ultrapassando, junto com outras questões prementes. Conheci pessoas muito bacanas aqui, e algumas se tornaram amigas. Vou preservá-las. Vou preservar o que puder chamar de alegria, e acho que estou quase entendendo essas palavras. 

Em tempo: dada essa nova pequena revolução no meu microcosmo, meu outro blog deixou de ter sentido, já que nem aqui sei mais se vou continuar. Portanto suas poucas postagens foram incorporadas a este espaço, sinalizadas com um marcador único.  

noite e dia

Benditos sonhos que trazem o que o dia, em signos esparsos, não deixa entrever: porque no dia há uma censura, e os painéis, os grandes painéis do imaginário, não chegam a se configurar, exceto em situações muito particulares que se engendram na distração ― o dia é, por dever de sobrevivência, atenção. Mas no sonho, que liberdade! A atenção, tensão da vida acordada, cede às tensões que permaneceram, pela necessidade do dia, no limiar da percepção. Embora os sonhos sejam caóticos, nas poucas imagens que sobrevêm à memória quando se acorda ― ruínas do que intensamente se viveu à noite ― é possível entrever o que o dia negou, e continuará negando, exceto na arte, ou em momentos de aguda intuição, que não são mais que lampejos em meio ao caos da atenção presa no trânsito, na multidão, porque é preciso atravessar as ruas sem se deixar atropelar, assim como não se quer ser atropelado pela vida. 

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

"tudo sabe mesmo de longe a cinzas"

A bela frase de Clarice Lispector ― o verbo saber em regência e sentido pouco usuais ―, é motivo para algumas divagações de fim de feira, fim de sexta-feira, semana que me trouxe preocupações novas. Novas porque novos problemas podem deixar uma criatura atordoada. Então me lembrei, com carinho renovado, de minhas leituras de Walter Benjamin, seu ensaio talvez mais célebre, “O narrador”. Walter Benjamin foi um casamento no mestrado e o necessário divórcio no doutorado. Mas nunca consegui “esquecer Benjamin”. E quando alguma coisa nova me perturba, atordoa, eu volto àquela surrada noção de que tudo o que se precisa, às vezes, é uma narrativa que dê sentido ao que se está vivendo. São leituras antigas, e a memória não quer cometer deslizes teóricos. Pois hoje, por razões que não cabem expor, eu tive certeza deste postulado de Walter Benjamin. E não é que acredite que as narrativas de Clarice Lispector vão me acalmar. Pelo contrário: vão colocar ainda mais lenha na fogueira do espanto. Mas é que fiz descobertas deveras importantes, sem ter qualquer livro na mão, e isso tem a ver com tudo que li desses autores, embora uma citação civilizada pudesse salvar a aparência de mistificação. Já foi feita, no título da postagem. 

Rainer Maria Rilke: Livro de Horas

A cada um Deus fala, antes de criá-lo
e noite em fora vai com ele, em silêncio:
mas as palavras, ainda antes do início,
são palavras de nuvens.

Longe de teus sentidos
vou até à fímbria de tua saudade:
dá-me algo de vestir!

Atrás das coisas cresce uma espécie de incêndio
que de ti projeta sombras
cada vez mais, até que elas me cobrem todo.

Deixa que te aconteça tudo: a beleza e o medo.
É preciso ir em frente, sentimento nenhum é o derradeiro.
Não te deixes ficar longe de mim.
Bem perto está o país
a que dão o nome de vida.

Tu o reconhecerás pela seriedade dele.

Dá-me tua mão.

RILKE, Rainer Maria. Livro de horas. Trad. Geir Campos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993, p.76.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Milonga de Los Morenos (Jorge Luis Borges e Vitor Ramil)

AQUI na versão acústica, com participação de Caetano Veloso.

Em tempo: ontem Jorge Luis Borges foi homenageado por um doodle do googlefaria 112 anos. Já o dia de hoje marca, segundo o blog Fernando Pessoa para todas as ocasiões, 111 anos da morre de Nietzsche: no mar das efemérides, nascimento e morte parecem se equivaler, aliás como Borges encenou em muitos contos seus. Já Nietzsche preferiria ser lembrado pelo seu nascimento, salvo engano. 

Óssip Mandelstam

ESTE MEU CORPO

Este meu corpo, que alguém me deu,
Que fazer dele, tão um, tão meu?

Respirar, este quieto prazer
― Digam-me ― a quem devo agradecer?

Sou jardineiro ou só flor que fana?
Não estou só na prisão humana.

Sobre as vidraças do infinito
Eis meu calor, meu sopro inscrito.

Minha marca está ali impressa,
Mesmo que não se reconheça.

Que escoe a borra desta hora,
Ela está ali ― não vai embora.

CAMPOS, Augusto de. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006. p.112. AQUI uma pequena coletânea de poesia russa moderna traduzida por Boris Schnaiderman  e Nelson Ascher.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Catarina Pinto Leite: o que a luz oculta II

Dante Milano

MÚSICA SURDA

Como num louco mar, tudo naufraga.
A luz do mundo é como a de um farol
Na névoa. E a vida assim é coisa vaga.

O tempo se desfaz em cinza fria,
E da ampulheta milenar do sol
Escorre em poeira a luz de mais um dia.

Cego, surdo, mortal encantamento.
A luz do mundo é como a de um farol...
Oh, paisagem do imenso esquecimento.

MILANO, Dante. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p.43.

caixa de pandora

Também conhecida como caixinha de maldades, a caixa de Pandora está aberta a toda contra os trabalhadores no Brasil. A desculpa de sempre é a crise mundial. Está todo mundo vendo o que está acontecendo, mas o conformismo parece não ter oponentes: mesmo porque seu principal aliado é uma famosa emissora de comunicação, que todas as noites derrama nos lares (lar, o que será isso?) doses gigantescas de uma violência estilizada, tornando quase invisível a outra violência, que se vivencia no dia a dia. Uma novela que conta com mais de 20 assassinatos ao longo de cerca de seis meses de trama deve ter alguma coisa a dizer sobre o público que a prestigia ― foram 25 mortes ao longo dos 185 capítulos, uma a cada sete dias. Este país só não é mais ridículo por falta de espaço. 

Clarice Lispector: tudo sabe mesmo de longe a cinzas

APRENDER A VIVER

“Pudesse eu um dia escrever uma espécie de tratado sobre a culpa. Como descrevê-la, aquela que é irremissível, a que não se pode corrigir? Quando a sinto, ela é até fisicamente constrangedora: um punho fechando o peito, abaixo do pescoço: aí está ela, a culpa. A culpa? O erro, o pecado. Então o mundo passa a não ter refúgio possível. Aonde se vá e carrega-se a cruz pesada, de que não se pode falar.
Se se falar ― ela não será compreendida. Alguns dirão ― ‘mas todo o mundo...’ como forma de consolo. Outros negarão simplesmente que houve culpa. E os que entenderem abaixarão a cabeça também culpada. Ah, quisera eu ser dos entram numa igreja, aceitam a penitência e saem mais livres. Mas não sou dos que se libertam. A culpa em mim é algo tão vasto e tão enraizado que o melhor ainda é aprender a viver com ela, mesmo que tire o sabor do menor alimento: tudo sabe mesmo de longe a cinzas.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 206.

à sombra de árvores antigas

A culpa que me infundiram num passado distante, já nem sei de que, está sempre tão presente que sequer lhe noto a constância, a máscara que aderiu à pele imperceptivelmente ao longo dos anos, porque ser culpada é uma forma de viver na sombra. Acho que vivo melhor na sombra, o sol faz mal à minha pele. Mas ontem me surpreendi simplesmente almoçando, como quem cumpre um antigo ritual de alimentar-se porque o corpo precisa. O corpo e um imponderável qualquer, porque alimentar-se não é um movimento automático e vulgar que se cumpre ao sabor do instinto. E então, naquele instante fugaz, consegui perceber o quanto a culpa tem estado sempre comigo, paralisando, imobilizando, envenenando. Envenenando o alimento que como. Há outros venenos e envenenadores, mas a imagem do alimento é o bastante: comer sem culpa foi um difícil aprendizado, e não é casual que a percepção da culpa, tal qual uma iluminação epifânica, tenha se dado enquanto comia com muito gosto a comida boa que escolhi livremente comer. Estava nas imediações do Jardim Botânico, lugar cuja densidade é propícia para experimentar sensações contraditórias. Ir semanalmente ao bairro Jardim Botânico para sessões de análise que parecem não conhecer qualquer prazo de validade tornou-se, agora percebo, uma forma de condensar miríades de movimentos. Vou, entrevejo o Jardim Botânico, dou meia volta e retorno. Mas uma hora sei que tudo vai acabar, como aqueles grandes ciclos da vida que simplesmente chegam ao fim. 

travessia

Num dos blogs que frequento, a ilha do Zé, encontro hoje um trecho que vem ao encontro de coisas vagas e confusas, pois talvez ser pequeno é uma forma de suavizar a travessia. Entre parênteses: preciso voltar a Guimarães Rosa, cujos escritos tantas vezes me apaziguaram com o itinerário. Trata-se de uma citação de Agustina Bessa-Luis:

"Ninguém nasce para ser grande. Deixai que me lembre daquele poema anónimo, do sec. XIII, e que começa: ‘Toutes choses sont trop petites. Je suis sans limites’. Pequenos no querer e no não querer, pequenos no amar e no odiar, pequenos nas obras, nos pensamentos, no futurar, no conhecer ― e, no entanto, sem limites como portadores de bandeiras, como seres mortais e promessa do outro homem ainda mortal."

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Vladimir Maiakóvski

EU

Nas calçadas pisadas
                  de minha alma
       passadas de loucos estalam
calcâneos de frases ásperas
              Onde
                      forcas
                esganam cidades
e em nós de nuvens coagulam
           pescoços de torres
      oblíquas
   soluçando eu avanço por vias que se encruz-
                                                             ilham
à vista
de cruci-
fixos

       polícias

Poesia russa moderna. Trad. Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 2001, p.235.

a farsa dos transportes públicos no rio de janeiro

Hoje fui, de metrô, da Pavuna ao Leblon. Não era este o itinerário, mudado por força das circunstâncias. Tinha um médico marcado às 10h no Leblon, que me foi muito bem recomendado. Pensando a partir de Jacarepaguá, e ainda batendo cabeça quanto a esta estranha cidade, ocorreu-me que a forma mais rápida de chegar seria pegando o ônibus da integração até a estação de Del Castilho, onde pegaria a Linha 2, depois a Linha 1 em Botafogo e por fim a integração saindo de Ipanema. Chegando em Del Castilho, por volta das 8h, havia qualquer coisa de estranho: uma multidão de pessoas esperando o metrô, que já chegaria ali cheio. Impossível. Imediatamente fui para a outra plataforma pegar o carro voltando, na esperança de encontrar uma estação vazia e entrar de maneira confortável e segura no carro. Já dentro do veículo, enquanto se aguardava, como ouvi muitas vezes hoje, "a liberação do tráfego à frente", vi o carro em sentido contrário chegar lotado, abarrotado de pessoas, enquanto aquelas na estação tentavam, não sei como, entrar. À medida que ia voltando em direção à Pavuna o quadro ia se repetindo nas estações, cheias, pessoas arrumadas para trabalhar esperando o carro da Linha 2 em direção ao centro e à zona sul, que passava já lotado. Fui voltando. Então percebi, à medida que se aproximava a estação final, as pessoas fazendo o mesmo que eu tinha feito em Del Castilho, entrando e sentando. Uma moça me explicou: sofria de asma, era-lhe impossível entrar no carro superlotado. Preferia perder meia hora todo dia e pegar o carro voltando para garantir um lugar sentada. O resultado prático disso é que quando o metrô chega na estação terminal da Pavuna, pelo menos no horário da manhã, não há mais lugar para sentar. Perguntei se os seguranças iriam pedir as pessoas para descer. Não, não pediam, porque era muita gente para entrar, e as portas só abriam de um lado: não havia como fazer isso. Assim como não havia escolha: era seguir até a Pavuna ou entrar num carro lotado e viajar com muito desconforto. Perguntei se seria possível descer e tomar um ônibus: disseram que sim, mas que eu iria levar uma eternidade para chegar no meu destino (o que não deixa de ser um pensamento profundo). Imaginei como seria o retorno, o carro enchendo à medida que as estações avançassem de volta, e me assustei, inclusive pela falta de opção. Encheu, encheu bastante, mas não transbordou como vi pela manhã na altura de Del Castilho e enquanto via os carros passarem no sentido oposto à Pavuna. Algumas pessoas disseram que o metrô sempre foi assim, não muda, e contavam histórias, muitas: todo dia a mesma coisa. Por fim cheguei a Botafogo, após muitos atrasos e paradas, peguei o carro da Linha 1 que foi tartarugando até a estação de Ipanema, pois havia funcionários fazendo a manutenção dos trilhos. Na estação de Ipanema uma fila imensa aguardava os ônibus da integração. Cheguei atrasada, evidentemente, com a sensação de que há qualquer coisa de caos no modo como a vida se movimenta na cidade. Uma senhora com quem conversei disse tudo: há ônibus de integração espalhados pela cidade, mas todos levam para o mesmo lugar, os mesmos trilhos. Ao término da viagem, o condutor expede uma mensagem agradecendo a preferência e desejando a todos um excelente dia. Depois de sair do médico, pensei em muita coisa, no que ele disse, no que não disse, no que tinha ido fazer lá. Voltei para o metrô, havia outros compromissos. Difícil vai ser esquecer o que um pouco à revelia presenciei e vivi hoje. A maquiagem não convence, mas as pessoas, não se sabe bem por que, não encontram opção na escolha de seus representantes, assim como não encontram opção de transporte: é isso ou o caos, se isso não for o caos... Enquanto eu me sentia um pouco mais ridícula ao lembrar o que costumo falar em sala de aula, o alcance limitado de minha profissão. 

meus olhos agora veem um outro mar

A MAR: espetáculo da Companhia de Dança Amalgama inspirado em "Mensagem", de Fernando Pessoa. Do blog um fernando pessoa.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Murilo Mendes e Pablo Picasso

PICASSO

Quem pega a vida à unha como tu?
Só mesmo Espanha, tua mãe e mestra.
Paris formou o espaço de tua técnica,
Mas Espanha te deu o estilo de contrastes,
O gosto de regressar ao centro do problema,
De investigar a matéria da vida
E atingir o osso:
Construindo e destruindo ao mesmo tempo.

*

Situas o objeto inimigo,
Súbito assimilado.
As cores são de inventor, não de colorista.
A natureza morta
Retoma a lição espanhola:
Os elementos do quadro são “dramatis personae”
Que se cruzam no silêncio fértil.
Roma, Grécia ou África
Te servem de pretexto plástico:
O corpo extrai da vida
Sua força pessoal e polêmica.

*

Feito à imagem da Espanha, tu, Picasso,
Soube fundir a força e a contenção.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.616-617. Galeria Pablo Picasso AQUI.

Álvaro de Campos

Sim, é claro,
O Universo é negro, sobretudo de noite.
Mas eu sou como toda a gente,
Não tenha eu dores de dentes nem calos e as outras dores passam.
Com as outras dores fazem-se versos.
Com as que doem, grita-se.

A constituição íntima da poesia
Ajuda muito...
(Como analgésico serve para as dores da alma, que são fracas...)
Deixem-me dormir.

PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. Ed. Teresa Rita Lopes. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007, p.371.

Ando Hiroshige

Camellia and Bird
Date: 1832-34

um personagem chamado bob dylan

Avanço na leitura da biografia de Bob Dylan. Entrevi de viés a possibilidade de detestá-lo e quase afastei a leitura. Mas rápido outra coisa se insinuou, fisgou a atenção: sua estranha capacidade de se transformar em outro, constantemente, e como isso parece atrelado à fatalidade de alguma coisa que recebe o nome, na falta de termo mais adequado, de destino, sobre o qual Dylan assim se expressa nesta entrevista: “É aquela sensação que temos de conhecer qualquer coisa de nós que ninguém mais conhece e saber que se realizará, é qualquer coisa que tem que se manter no interior porque é frágil e se a tornarmos exterior qualquer um pode matá-la e então é melhor guardá-la no íntimo.” 

domingo, 21 de agosto de 2011

silêncio

Rápido, o silêncio avança
sobre a paisagem.
Revela um ar de visitante antigo,
chegando manso e impressentido,
como convém a senhores experimentados.
Diante dele as palavras, aves cautelosas,
movem-se com pudor e pouco rumor,
tateantes,
pois ele traz chaves que,
uma a uma,
em gaiolas vai trancá-las,
de onde sairão apenas
mediante acordo,
jamais todas de uma vez ―
em grupos e ordenação escolhidos
segundo aquilo que se pode dizer. 

Herberto Helder

Quero um erro de gramática que refaça
na metade luminosa o poema do mundo,
e que Deus mantenha oculto na metade nocturna
o erro do erro:
alta voltagem do ouro,
bafo no rosto.

Herberto Helder. Ou o poema contínuo. São Paulo: A Girafa, 2006, p.519.