Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 23 de novembro de 2013

Augusto dos Anjos

VERSOS ÍNTIMOS

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Augusto dos Anjos. Eu e outras poesias. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 2010, p.156.

aos espertos

O mundo é dos espertos. Deve ser por isso que está essa droga.

baby blue

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

voz e vez

Cheguei em casa quase sem voz, e as vicissitudes do dia de hoje — que talvez tenham contribuído para comprometê-la — fizeram-me pensar, de modo um tanto gratuito, se de fato minha voz me pertence, se eu tenho efetivamente voz. A resposta é não, parece-me. Mas isso não é definitivo.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

necessidade

Provavelmente está fazendo um calor de rachar lá fora. O sol imperioso e implacável faz concordar com Aluísio Azevedo. É feriado, e alguns poucos transeuntes se arriscam pela avenida, movidos por necessidades que o receio do calor e do sol não venceu — e afinal nem todos se importam com isso. Há obviamente os carros, incessantes, e as praias cariocas devem estar cheias. Felizmente não preciso sair de casa hoje, e mesmo a feira pode esperar. Nenhuma necessidade me assalta, a ponto de eu ter de sair sob esse sol tirânico. E em casa consigo me proteger do calor ligando o ar condicionado. Uma amiga ilustre concorda: “no Brasil ar-refrigerado não é um luxo, é uma necessidade.”

The Lonesome Death of Hattie Carroll

uma música antiga (de ivan lins e victor martins)

terça-feira, 19 de novembro de 2013

clarice lispector, trecho do conto "por enquanto"

“Nesse intervalo dei um telefonema e, para o meu gáudio, já são dez para as sete. Nunca na vida eu disse essa coisa de ‘para o meu gáudio’. É muito esquisito. De vez em quando eu fico meio machadiana. Por falar em Machado de Assis, estou com saudade dele. Parece mentira mas não tenho nenhum livro dele em minha estante. José de Alencar, eu nem me lembro se li alguma vez.

Clarice Lispector. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.47.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

esquecendo os sonhos

Tudo por nada, ou quase nada, aquele nada que sobrenada na matéria amorfa dos sonhos. Talvez os sonhos sejam a desintegração dos nadas... em matéria que vai desintoxicando a alma.