Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 26 de fevereiro de 2011

as flores do jardim da nossa casa (roberto carlos)

[alguém me falou algo sobre os bastidores dessa música, muito diferente do que sugere a letra dor-de-corno e a interpretação anos 70, música-para-tocar-na-rádio, do Roberto Carlos]

em território de Alice

Vi-me, em sonho, em território de Alice: pagando tributos em demasia, fazendo muitas reverências a Vossa Majestade. Os pronomes de tratamento não são aprendidos/ensinados impunemente: junto com eles apreende-se uma/a hierarquia. Mas, por outro lado, é uma maravilha poder aprender a língua, pois apreendem-se outras formas de dizer uma coisa, que é, quem sabe, dizer outra coisa. Então sonhei-me, confusamente, em território de Alice: havia reis e majestades, havia tirania, então entendi tratar-se do território de Alice. Mas dizer território de Alice é dizer de uma posse. Jamais posso me esquecer que ensinei isso aos alunos: “Vossa Onipotência ―” (assim, dessa forma, com um travessão em seguida) é o pronome de tratamento destinado a Deus, e não se usa, conforme a gramática que consultei, de Evanildo Bechara, abreviadamente, ao contrário dos demais, que admitem abreviatura. Deus seria tão vasto que não admitiria sequer ser sequestrado na/pela linguagem.

defesa

Da minha defesa quero guardar essa imagem, dos antecedentes (ou bastidores). Me distraía do que estava por vir testando, com a ajuda de uma amiga, qual a melhor configuração da máquina fotográfica para o ambiente. Trata-se, no caso, da cantina da faculdade de letras da ufmg, lugar de encontro com os amigos, de certa descontração, de um falar menos amarrado aos ditames acadêmicos (falo por mim, evidentemente). Da ufmg sentirei falta principalmente deste lugar, pois conversas importantes se deram aí, trocas muito ricas, a partir das quais decisões foram tomadas. A imagem, no entanto, trai a tensão do que se aproxima, meu modo entre o sério e o disciplinado de me colocar nesse lugar de enunciação, que é a universidade. É uma declaração de amor ao que escolhi estudar.


P.S. Assim como a máquina fotográfica, também eu estava me ensaiando para o ritual, o que justifica certa falta de nitidez da imagem.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

U2 - One


Bono Vox está lindo e mais alguma coisa difícil de ponderar nesta música, também linda, que aliás figura no ranking da Rolling Stone na 36ª posição, entre as 500 melhores... Alguns dados fornecidos pela revista: "Achtung Baby foi o álbum em que o U2 trocou uma década de seriedade pela ironia, mas a nova abordagem resultou no single mais comovente da história da banda. "One" surgiu de outra música, "Mysterious Ways", quando The Edge teve duas ideias para a ponte e Bono gostou tanto de uma delas que escreveu uma nova letra. Embora alguns a ouçam como uma canção de amor, as palavras são cheias de mágoa e ambiguidade. 'Teve gente que já me falou que a tocaram em seu casamento', The Edge conta. 'Penso: Você já prestou atenção na letra? Não é este tipo de música.'" Rolling Stone, edição especial de colecionador, 2010, p.36. 

à moda antiga

Um colega de trabalho volta-se para mim e diz, simulando um cumprimento: "Mariana, meus respeitos." Brincava, naturalmente, de cavalheiro à moda antiga. Caímos na risada.

o pão nosso de cada dia

Quem frequentou a Igreja Católica aprendeu a rezar o Padre-Nosso. Proferia-o mecanicamente, assim como mecanicamente cantava na escola o Hino Nacional. Quando descobri o que a oração do pai nosso me pedia, nunca mais consegui rezá-lo: perdoai as nossas ofensas assim como perdoamos a quem nos tenha ofendido. Não alcancei a bem-aventurança da capacidade do perdão, e tento não ofender meu próximo (de forma que, quando é o caso de perceber e me desculpar por isso, vou direto ao ofendido, sem precisar passar por Deus). Não me vejo depositária de crimes, ofensas, erros ou "pecados" que pressuponham a penitência de rezar o pai nosso, embora me veja depositária de crimes para os quais não sei se encontrarei qualquer forma de perdão, pois são crimes dos quais a consciência me acusa, são coisas pelas quais se passa vida afora, e se percebe o erro, a falha, o crime justamente porque a identidade é movente, porque não se é o mesmo o tempo todo, e quando se percebe já era, já foi, já se é outro, um outro que, justamente por ser outro, foi capaz de perceber o que nele mudou, e por isso a acusação: então, olhando-me à distância, a tendência é acusar-me. Numa aula recente, em que levei para os alunos esta frase do Paulo Mendes Campos, "Ruim, na infância é a incompreensão dos mais velhos" (que encontrou boa acolhida), disse, numa das turmas, que eu não sabia quando, no transcurso da infância, havia perdido minha inocência... Mas essa digressão é apenas um atalho: inocente, rezava o pai nosso sem pensar no que diziam suas palavras, sem pensar em nada; culpada, não consegui mais proferir suas palavras. Se posso, na oração, até mecanicamente pedir perdão por uma falta que não cometi (pelo menos não conscientemente: que ofensas? que crimes?), na segunda parte do enunciado, a que admite o perdão, eu sou um fiasco. Sempre que me percebo falhando ou errando com o próximo, sou a primeira a reconhecer e tentar me desculpar. Mas isso não me garante vida mais amena ou reciprocidade. Ofendo e peço desculpas. Sou ofendida e fica por isso mesmo? Às vezes tem ficado. Difícil. Li recentemente este livro do Moacyr Scliar, Enigmas da culpa, mas apesar da boa intenção da obra e da leitura, não ajudou muito, talvez porque essas coisas não se resolvam num piscar de olhos. Mas o que quero dizer é outra coisa: ao abrir mão do Padre-Nosso, essa oração impossível a uma criatura concomitantemente rebelde e cordata como eu, pude disccernir outras caminhos. Não é difícil perceber que a poesia, esse peculiar arranjo verbal em que tudo fica mais sofisticado e interessante, tornou-se meu pão nosso da cada dia. Ela me trouxe uma coisa muito boa: além de aguçar minha percepção/intuição, eu passei a dar menos importância às coisas, aos fatos, aos acontecimentos, às próprias pessoas. De forma que muitas vezes sequer percebo a ofensa a mim dirigida. Então, para que falar em perdão? 

Jorge de Lima: Invenção de Orfeu

[Canto III, Poemas Relativos, II]

Queres ler o que
tão só se entrelê
e o resto em ti está?

Flor no ar sem umbela
nem tua lapela;
flor que sem nós há.

Subitamente olhas:
nem lês nem desfolhas;
folha, flor, tiveste-as.

E nem as tocaste:
folha e flor. Tu ― haste,
elas reais, mas réstias.

LIMA, Jorge. Invenção de Orfeu. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p. 72.

Jorge de Lima: Invenção de Orfeu

[Canto VII, Audição do Orfeu, I]

A linguagem 
parece outra
mas é a mesma
tradução.

Mesma viagem
presa e fluente,
e a ansiedade
da canção.

Lede além
do que existe
na impressão.

E daquilo
que está aquém
da expressão.

LIMA, Jorge. Invenção de Orfeu. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p. 124.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

paciência

Paciência deveria ser um verbo, e não um nome, um substantivo. Emprega-se o verbo impacientar(-se), perder a paciência, mas nunca ouvi ninguém pronunciar o verbo pacientar (ter paciência): não colou, ou então as pessoas mais se impacientam que pacientam, tornando desnecessário o segundo verbo. E no entanto fala-se tanto em paciência, ou na falta dela, deseja-se tanto esse estado de espírito: talvez porque ela, a paciência, esteja em falta, então nem seria necessário o verbo impacientar-se: não se perde o que não se tem. Por isso paciência poderia ser um verbo, a ser conjugado sempre. 

João Cabral de Melo Neto: o cante a palo seco



“A PALO SECO”
A R. Santos Torroela

1.1.  
Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;

se diz a palo seco
a esse cante despido:
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino.

1.2.
O cante a palo seco
é o cante mais só:
é cantar num deserto
devassado de sol;

é o mesmo que cantar
num deserto sem sombra
em que a voz só dispõe
do que ela mesma ponha.

1.3.
O cante a palo seco
é um cante desarmado:
só a lâmina da voz
sem a arma do braço;

que o cante a palo seco
sem tempero ou ajuda
tem de abrir o silêncio
com sua chama nua.

1.4.
O cante a palo seco
não é um cante a esmo:
exige ser cantado
com todo o ser aberto;

é um cante que exige
o ser-se ao meio-dia,
que é quando a sombra foge
e não medra a magia.

2.1.
O silêncio é um metal
de epiderme gelada,
sempre incapaz das ondas
imediatas da água;

a pele do silêncio
pouca coisa arrepia:
o cante a palo seco
de diamante precisa.

2.2.
Ou o silêncio é pesado,
é um líquido denso,
que jamais colabora
nem ajuda com ecos;

mais bem, esmaga o cante
e afoga-o, se indefeso:
a palo seco é um cante
submarino ao silêncio.

2.3.
Ou o silêncio é levíssimo,
é líquido e sutil
que se ecoa nas frestas
que no cante sentiu;

o silêncio paciente
vagaroso se infiltra,
apodrecendo o cante
de dentro, pela espinha.

2.4.
Ou o silêncio é uma tela
que difícil se rasga
e que quando se rasga
não demora rasgada;

quando a voz cessa, a tela
se apressa em se emendar:
tela que fosse de água,
ou como tela de ar.

3.1.
A palo seco é o cante
de todos mais lacônico,
mesmo quando pareça
estirar-se um quilômetro:

enfrentar o silêncio
assim despido e pouco
tem de forçosamente
deixar mais curto o fôlego.

3.2.
A palo seco é o cante
de grito mais extremo:
tem de subir mais alto
que onde sobe o silêncio;

é cantar contra a queda,
é um cante para cima,
em que se há de subir
cortando, e contra a fibra.

3.3.
A palo seco é o cante
de caminhar mais lento:
por ser a contrapelo,
por ser a contravento;

é cante que caminha
com passo paciente:
o vento do silêncio
tem a fibra de dente.

3.4.
A palo seco é o cante
que mostra mais soberba;
e que não se oferece:
que se toma ou se deixa;

cante que não se enfeita,
que tanto se lhe dá;
é cante que não canta,
cante que aí está.

4.1.
A palo seco canta
o pássaro sem bosque,
por exemplo: pousado
sobre um fio de cobre;

a palo seco canta
ainda melhor esse fio
quando sem qualquer pássaro
dá o seu assovio.

4.2.
A palo seco cantam
a bigorna e o martelo,
o ferro sobre a pedra,
o ferro contra o ferro;

a palo seco canta
aquele outro ferreiro:
o pássaro araponga
que inventa o próprio ferro.

4.3.
A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,

as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.

4.4
Eis uns poucos exemplos
de ser a palo seco,
dos quais se retirar
higiene ou conselho:

não o de aceitar o seco
por resignadamente,
mas de empregar o seco
porque é mais contundente.


MELO NETO, João Cabral. Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.231-235.

a geração que pagou com a vida pelo HIV: Caio Fernando Abreu

Jacob's Ladder: Rush


The shifting shafts of shining weave the fabric of their dreams...

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

La Vie (VFS)

alegria

Amado e estimado blog: passo por aqui para dizer que hoje fui tomada por uma alegria tão inesperada na escola, na hora do intervalo, que de repente me peguei cantando... e com tal empolgação e desprendimento e vontade que um colega ao meu lado disse, em alto e bom som, que queria saber o que eu havia tomado... Ora, alegria. Alegria por quê? Não sei. Camadas profundas se revolvendo em meu ser. Alegria que vem de mim mesma, alegria de saber que daqui a três dias tudo terá outra liberdade, e que eu posso me permitir isso, sentir-me feliz por existir e saber-me num certo rumo (que foi, desde sempre, uma aposta, um risco), mesmo que seja um sensação momentânea. Mas também por isso ela me é tão cara. Indescritível. 

domingo, 20 de fevereiro de 2011

qualquer rumo...


debaixo dos caracóis dos seus cabelos


Música composta por Roberto e Erasmo Carlos em homenagem a Caetano Veloso quando este se encontrava exilado em Londres. Neste vídeo, Caetano situa o contexto da canção.

Há Tempos (Legião Urbana): parece cocaína, mas é só tristeza...


Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.

Manuel Bandeira, versos iniciais do poema "Não sei dançar", que abre Libertinagem (In: Estrela da vida inteira, 20. ed, Nova Fronteira, 1993, p.125).

with a little help from my friends

Ontem encontrei / almocei com / visitei dear friends. Para minha surpresa, uma hora me peguei até cantando, ao recordar uma música brega qualquer. Falou-se muito de música, de cinema sobretudo, da vida, do Rio de Janeiro e tal. E, maior surpresa: with a little help from my friends, passei um bom pedaço de tempo completamente esquecida da tese, da defesa, da ansiedade dos últimos dias. Me dei conta disso na hora de me despedir, de voltar para casa. Eu queria poder dizer que um dos pontos altos da visita foi este:


Mas lembrar de músicas bregas, a propósito do Roberto Carlos, é impagável:

The Doors - The End

[e no filme Apocalypse Now]