Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sexta-feira, 23 de abril de 2010

filmes, vídeos, canções: "Knockin' On Heaven's Door"


Esta música foi composta para um filme sobre o lendário pistoleiro Billy The Kid, do qual Bob Dylan participa ― Pat Garrett And Billy The Kid, de 1973 (conferir Cine Reporter). A interpretação de Dylan para a canção, no filme, tornou-se clássica, mas a que ele faz ao vivo, no vídeo acima, é empolgante e apaixonada. Segue um trecho da referida resenha: "Talvez a cena que exprima melhor essa sensação de morte iminente é a sequência em que a obscura canção (na época) ‘Knockin’ on Heaven’s Door’ é apresentada, na voz do seu autor, Bob Dylan, que compôs toda a trilha sonora e atua no filme como o misterioso Alias, integrante do bando de Billy. A cena, belíssima, casa perfeitamente com a letra fúnebre da canção." Há uma canção de Bon Jovi, "Blaze of Glory", num vídeo plasticamente muito bonito, cujas cenas são de outro filme sobre Billy The Kid e seu bando, Young Guns (1988). O ator que interpreta o pistoleiro, Emilio Estevez, é de uma beleza pouco convencional.


quinta-feira, 22 de abril de 2010

o macho adulto branco sempre no comando: "O Estrangeiro" - Caetano Veloso


(a fala final, dizem, é do Bob Dylan)

O pintor Paul Gauguin amou a luz da Baía de Guanabara
O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela
A Baía de Guanabara
O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a Baía de Guanabara
Pareceu-lhe uma boca banguela
E eu, menos a conhecera, mais a amara?
Sou cego de tanto vê-la, de tanto tê-la estrela
O que é uma coisa bela?
O amor é cego
Ray Charles é cego
Stevie Wonder é cego
E o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem
Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem?
Uma arara?
Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara
Em que se passara passa passará um raro pesadelo
Que aqui começo a contruir sempre buscando o belo e o Amaro
Eu não sonhei:
A praia de Botafogo era uma esteira rolante de areia branca e óleo diesel
Sob meus tênis
E o Pão de Açúcar menos óbvio possível
À minha frente
Um Pão de Açúcar com umas arestas insuspeitadas
À áspera luz laranja contra a quase não luz, quase não púrpura
Do branco das areias e das espumas
Que era tudo quanto havia então de aurora
Estão às minhas costas um velho com cabelos nas narinas
E uma menina ainda adolescente e muito linda
Não olho pra trás mas sei de tudo
Cego às avessas, como nos sonhos, vejo o que desejo
Mas eu não desejo ver o terno negro do velho
Nem os dentes quase-não-púrpura da menina
(Pense Seurat e pense impressionista
Essa coisa da luz nos brancos dente e onda
Mas não pense surrealista que é outra onda)
E ouço as vozes
Os dois me dizem
Num duplo som
Como que sampleados num Sinclavier:
"É chegada a hora da reeducação de alguém
Do Pai, do Filho, do Espírito Santo, amém
O certo é louco tomar eletrochoque
O certo é saber que o certo é certo
O macho adulto branco sempre no comando
E o resto ao resto, o sexo é o corte, o sexo
Reconhecer o valor necessário do ato hipócrita
Riscar os índios, nada esperar dos pretos"
E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento
Sigo mais sozinho caminhando contra o vento
E entendo o centro do que estão dizendo
Aquele cara e aquela:
É um desmascaro
Singelo grito:
"O rei está nu"
Mas eu desperto porque tudo cala frente ao fato de que 

o rei é mais bonito nu
E eu vou e amo o azul, o púrpura e o amarelo
E entre o meu ir e o do sol, um aro, um elo
("Some may like a soft brazilian singer
But I've given up all attempts at perfection")

Fonte: site oficial de Caetano Veloso

terça-feira, 20 de abril de 2010

um trecho de "Grande sertão"

Para os momentos difíceis, Guimarães Rosa: "As razões de não ser. O que foi que eu pensei? Nas terríveis dificuldades; certamente, meiamente. (...) Acho que eu não tinha conciso medo dos perigos: o que eu descosturava era medo de errar ― de ir cair na boca dos perigos por minha culpa. Hoje sei: medo meditado  ― foi isto. Medo de errar. Sempre tive. Medo de errar é que é a minha paciência. Mal. O senhor fia? Pudesse tirar de si esse medo-de-errar, a gente estava salva. O senhor tece? Entenda meu figurado." 

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001, p. 201.

um quadro, um olhar, uma surpresa

Ainda quando morava em BH, num domingo à tarde modorrento, ao gastar o tempo em busca de qualquer coisa que prestasse na televisão, deparei-me, num canal pago, com um programa assaz interessante. Um assuntado em arte, um crítico, creio, escolhia uma pessoa leiga para analisar uma obra qualquer, de sua preferência. A pessoa escolhida foi um funcionário da Pinacoteca do estado de São Paulo, daqueles que moram longe e acabam usufruindo arte por dever do ofício. Achei a proposta interessante, o crítico buscava exatamente isso, a apreciação da obra por um olhar desarmado. Como a Pinacoteca tem um link para visita virtual, e como eu me lembrava do primeiro nome do artista, não foi muito difícil localizar o quadro que o funcionário escolheu. Segue:
Antonio Parreiras, Paisagem (Ventania), 1888
(fonte: aqui)

O interessante é como o funcionário tirava leite de pedra ao analisar o quadro, de um artista tipicamente acadêmico. Mas é justamente esse olhar desarmado que pode surpreender. Aqui tento reproduzir, conforme recordo, a fala dele, entremeada já à minha leitura. Há um vento forte, sugerindo tempestade, que sopra contra as árvores, situadas num terreno em declive (ou aclive), onde há um caminho meio pedregoso, esburacado, com rachaduras. Bem abaixo, no canto inferior esquerdo da tela, e no limite inferior desse caminho, há uma mulher, uma personagem feminina, que aparentemente se esconde, se protege dessa tempestade, a posição é toda de quem está com medo: sentada no chão, corpo dobrado contra si mesma, de costas para a tempestade, rosto encoberto pelas mãos, ou seja, toda ela é proteção, e talvez algo mais, haja vista que as mãos escondendo o rosto podem estar encobrindo, metonimicamente, outras coisas, da mesma forma que o corpo que se dobra sobre si próprio. A mulher encontra-se no limite inferior do quadro, na parte mais pedegrosa, rachada, danificada do terreno, e a direção da tempestade que sopra nas árvores aponta para onde ela se encontra. Aí a surpresa: se se reparar bem, a tempestade não ocupa toda a tela. Bem no meio da tela, no horizonte, há uma espécie de ar limpo, calmo, sem vento, e o caminho, embaixo tão resvaloso, mais acima parece que vai ganhando um contorno mais suave. Então, a sacada do funcionário é que a personagem está oposta, na tela, ao ponto onde a tempestade acalma, seus sentidos não logram alcançá-lo, e portanto o movimento dela é de proteção (sem contar que há o aclive). Ela não vê o ponto onde a tempestade cessa. Quer dizer, há um "sentimento de solidão e de angústia", conforme li num blog que explora essa imagem. Mas há um ponto em que tudo serena, e que a personagem não vê. Uma leitura despretensiosa, mas que apontava para uma circularidade na tela: o movimento da tempestade joga o espectador na direção da figura que ocupa o primeiro plano, que está no ponto inferior de um caminho ascendente, que leva de novo para a direção do vento. Isolado, mais ou menos no centro da tela, compondo seu horizonte, um céu mais calmo, uma paisagem mais amena, como um contraponto ao conjunto. Eu achei deveras pertinente a proposta, investigar o impacto que a obra de arte tem sobre pessoas comuns, aquelas que não são versadas em teorias ou correntes estéticas e artísticas. Sair do campo da crítica para perceber as sensações despertadas pela obra.

o mistério dos tempos verbais

Um dos livros mais interessantes que já li, Crônica de uma morte anunciada, do Garcia Marquez, começa assim: "No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30m da manhã." Uma das mortes mais estúpidas da literatura, permeada por uma história de amor não menos inacreditável. 

"Desvio para o vermelho" - Cildo Meireles - Inhotim

De todas as obras que vi quando fui a Brumadinho, a mais difícil foi Desvio para o vermelho, de Cildo Meireles. A galeria Cildo Meireles, com três instalações do artista, faz parte do acervo permanente do museu, onde se encontra uma variedade muito grande de propostas estéticas, e o próprio lugar, com o paisagismo e os jardins de Burle Marx, esteticamente funciona como arte. Ao adentrar-se a instalação Desvio, percebe-se de imediato a saturação pela cor vermelha, nos três ambientes, em diferentes tonalidades. Segue um release fornecido pelo site: "Desvio para o Vermelho é um de seus trabalhos mais complexos e ambiciosos – concebido em 1967, montado em diferentes versões desde 1984 e exibido em Inhotim desde 2006. Formado por três ambientes articulados entre si, no primeiro deles (Impregnação) nos deparamos com uma exaustiva coleção monocromática de móveis, objetos e obras de arte em diferentes tons, reunidos 'de maneira plausível mas improvável' por alguma idiossincrasia doméstica. Nos ambientes seguintes, Entorno e Desvio, tem lugar o que o artista chama de explicações anedóticas para o mesmo fenômeno da primeira sala, em que a cor satura a matéria, se transformando em matéria. Aberta a uma série de simbolismos e metáforas, desde a violência do sangue até conotações ideológicas, o que interessa ao artista nesta obra é oferecer uma seqüência de impactos sensoriais e psicológicos ao espectador: uma série de falsas lógicas que nos devolvem sempre a um mesmo ponto de partida." Só me lembro que, sensorialmente, o espectador vai sendo impregnado pela cor, até saturar, e naturalmente as ressonâncias vão se produzindo. O terceiro ambiente, Desvio, é uma espécie de câmara escura que vai derivando do segundo, escurecendo aos poucos, e aí se começa a ouvir um barulho de algo pingando, e no final tem-se um lavatório branco onde uma torneira aberta deixa escoar um líquido vermelho. Claro que apenas entrevi isso, não cheguei a adentrar a câmara toda, meus amigos sim, chegaram bem perto. Havia também um espécie de líquido derramado pelo chão, no percurso até a pia. Segue uma análise que encontrei, feita por Tiago Macedo: Voltando à instalação 'Desvio’, deixando a primeira parte ‘Entorno’, vamos nos ater à segunda fase da instalação chamada ‘Impregnação’, na qual nos deparamos com um frasco caído no chão: uma estrutura vinílica sugere o derramamento de líquido superior ao valor de volume possível dentro do frasco, essa estrutura desemboca, depois de andarmos, numa penumbra em direção a uma pia que derrama água vermelha de sua torneira. O liquido vermelho que sai pela pia entra pelo vidro ou vice-versa. Seria esta a causa disso tudo? Podemos chegar a um raciocínio no qual o líquido vermelho derramado impregna o entorno da obra. Mas viria da pia ou do vidro? Cildo completa em entrevista que: 'você tem uma garrafa de onde sai uma quantidade enorme de líquido vermelho, que parece ser a explicação para a sala pintada de vermelho, mas o que ela introduz é a noção de horizonte perfeito que é a superfície de qualquer líquido sem movimento. E na terceira fase tem um líquido em movimento saindo de uma torneira. A pia está inclinada, o que contradiz a relação da queda d’água, mas o líquido é vermelho, o que nos conduz à primeira sala. (...) Enfim a idéia era criar uma circularidade onde uma coisa fosse jogando para outra, uma fase jogasse para outra, mas não explicasse nada.’” (link). Claro que não experenciei nada disso dessa forma, pela via intelectual, mas sim pelo sensorial mesmo, daí a fuga do terceiro ambiente, em que o contraste entre a penumbra e a cor vermelha termina por acentuá-la, até fazê-la insuportável, sem contar o isolamento de cada um desses elementos em relação ao conjunto saturado que se viu no primeiro ambiente.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Inhotim, Brumadinho, 2007


Excelente passeio! Inhotim é o nome do Museu de Arte Contemporânea localizado em Brumadinho-MG, próximo a BH. Segue o link do site oficial. O único porém é a alimentação - na época, o único lugar que se podia chamar de restaurante estava muito além de nosso poder aquisitivo, e a gente (a turminha do doutorado, quer dizer, a turminha do doutorado que eu invadi, a de 2007, pois a minha, de 2006, se desintegrou) se distraiu com uns lanches. Mas também um dia só não mata, né? Foto da turminha? Ficou tremida... Imagens de Inhotim? Aos montes na net. Claro que me deitei numa das redes da instalação abaixo, e fiquei sentindo, ou curtindo, o ambiente e sua estranha sonoridade: 

Hélio Oiticica e Neville D’Almeida, Cosmococa 5 Hendrix War, 1973

Jardins

domingo, 18 de abril de 2010

No Direction Home: Bob Dylan

Assisti ao documentário "No Direction Home", de Martin Scorsese, sobre Bob Dylan, abarcando suas origens como garoto de classe média e as primeiras influências musicais até o momento em que estoura, e faz uma mudança radical de trajetória, ao abandonar a "canção de protesto" para explorar a sonoridade de suas próprias criações. Preciso assistir novamente para apreender melhor aquela riqueza toda, os detalhes. Trata-se de um documentário i-m-p-e-r-d-í-v-e-l para aqueles que têm curiosidade e interesse em saber como se forjou um dos maiores ícones do rock. Segue uma pequena resenha pelo UOL cinema.