Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Hölderlin

OUTRORA E HOJE

Meu dia outrora principiava alegre;
No entanto à noite eu chorava. Hoje, mais velho,
Nascem-me em dúvida os dias, mas
Findam sagrada, serenamente.

BANDEIRA, Manuel. Alguns poemas traduzidos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007, p. 61.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

sala de espelhos

Há milhares de _________s.
Um __________ acontece quando se vai longe demais.
A miragem que um sujeito cava pra si mesmo é a face escura do ___________.
A face clara do ________ é o _________.
O __________ é o lugar de se cultivar a sede.
Não há __________s quentes.
O Saara e o Pólo são _________s frios,
como tudo que a distância faz.
No _________ se anda em círculos.
Não se sabe o tamanho de um _________,
se ele vai mais fundo.
De dentro tem o tamanho do mundo.

Arnaldo Antunes. Psia

 lacunas preenchidas em poema alheio

Há milhares de mulheres.
Um desastre acontece quando se vai longe demais.
A miragem que um sujeito cava pra si mesmo é a face escura do desejo.
A face clara do poema é o comichão.
O bar é o lugar de se cultivar a sede.
Não há mortos quentes.
O Saara e o Pólo são paraísos frios,
como tudo que a distância faz.
No quarto se anda em círculos.
Não se sabe o tamanho de um beijo,
se ele vai mais fundo.
[Por dentro tudo tem alguma manha do mundo.]

Orlando Lopes. Nô.made.s

In: Wilberth Claython Ferreira Salgueiro [Bith]. Forças e formas: aspectos da poesia brasileira contemporânea (dos anos 70 aos 90). Vitória: EDUFES, 2002, p.155.

João Alphonsus

A pedra no caminho

No meio do caminho sem sentido
Em que a minha retina se cansava,
Em face ao meu espírito perdido
Naquela lassidão estranha e escrava,

No meio do caminho sem sentido,
Só uma pedra... Nada mais se achava!
Que tudo se perdeu no amortecido,
Morto marasmo de vulcão sem lava...

Que tudo se perdeu na estrada infinda...
Só a pedra ficou sob o meu passo
E na retina se conserva ainda!

Nem coração, furor, ódio, carinho,
Nada restou senão este cansaço,
A pedra, a pedra, a pedra no caminho!

Folha da manhã, 25/10/1942 (conforme Bith)

Murilo Mendes

Toda palavra é adâmica:
Nomeia o homem
Que nomeia a palavra

“Texto de consulta”. Os melhores poemas de Murilo Mendes. 3. ed. São Paulo: Global, 2000, p. 205. 

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Gallipoli (Peter Weir, Austrália, 1981)


Sinopse: Archie Hamilton (Mark Lee) é uma das maiores promessas das pistas de corrida da Austrália. Durante uma competição ele faz amizade com Frank Dunne (Mel Gibson). Unidos pelo idealismo, os dois se alistam no exército, em 1915, sem ter a mínima noção do horror que enfrentariam na luta contra os turcos, na trágica e lendária batalha de Gallipoli, durante a Primeira Guerra Mundial. (Fonte: Interfilmes).

like a rolling stone

A canção é posterior ao surgimento dos Stones; portanto, ninguém, aparentemente, homenageou ninguém. Há a reprodução de um diálogo ácido, supostamente entre os componentes dos Stones, no início do livro Like a Rolling Stone: Bob Dylan na encruzilhada, de Greil Marcus, que desmistifica isso. Diz alguém: "Chama-se Like a Rolling Stone. Dá pra acreditar? Like a Rolling Stone. Como se ele quisesse entrar na banda. Como se ele fosse um Rolling Stone." (São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 17-18). 

Rubem Braga

"MINHA FRASE CÉLEBRE - Até eu já posso posar como ladrão de frase. É que certa vez escrevi: Nasci, modéstia à parte, em Cachoeiro de Itapemirim - mas escrevi parodiando declaradamente uma letra de Noel Rosa sobre Vila Isabel. A letra de Noel foi esquecida por muita gente, e várias vezes, através dos anos, encabulei ao ganhar elogios pela 'minha' frase. O remédio é a gente silenciar, 'pondo a modéstia de parte', como dizia o bom Noel. Afinal ele escreveu tanta coisa bonita que com certeza não se importaria muito com este pequeno furto. Em todo caso, Noel, desculpe o mau jeito." (BRAGA, Rubem. Recado de primavera. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 94).

terça-feira, 3 de agosto de 2010

trecho do documentário sobre Vinicius de Moares (Miguel Faria Jr.)


Paisagem

Subi a alta colina
Para encontrar a tarde
Entre os rios cativos
A sombra sepultava o silêncio.

Assim entrei no pensamento
Da morte minha amiga
Ao pé da grande montanha
Do outro lado do poente.

Como tudo nesse momento
Me pareceu plácido e sem memória
Foi quando de repente uma menina
De vermelho surgiu no vale correndo, correndo…

MORAES, Vinicius. Nova antologia poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p.47.

Mário Quintana

Emergência

Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
– para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.

MORICONI, Ítalo (Org.) Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 117.

domingo, 1 de agosto de 2010

os argonautas: a lírica portuguesa na metáfora do mar e da viagem (Fernando Pessoa, Camões)

(versão em estúdio aqui , um perfeito "fado")

bovarismo

"Emma Bovary c'est moi". Esse dito célebre de Flaubert foi repetido à exaustão. A personagem de Emma Bovary foi tão bem pensada que deu origem a um substantivo, "bovarismo", assim definido pelo dicionário: "s.m. (1923) 1 tendência que certos indivíduos apresentam de fugir da realidade e imaginar para si uma personalidade e condições de vida que não possuem, passando a agir como se as possuíssem 1.1 p.ext. faculdade que tem o ser humano de se conceber diferente do que é. ETIM fr. bovarysme, orig. grafado bovarrisme (1865), de Madame Bovary, personagem de G. Flaubert (escritor francês, 1821-1880)." Bovarismo é o equivalente romântico de "quixotesco" (o que não tem nada a ver com a classificação de Madame Bovary como obra realista; em seu fundamento, o texto é romântico). Mas a conversa aqui é outra: numa roda recente, alguém saiu com uma pergunta assaz curiosa: "Você preferia ter sua vida contada por José de Alencar ou Machado de Assis?". Machado de Assis, evidente. Outras duplas equivalentes foram propostas, não me lembro mais quais, mas certamente, se me fosse concedido o luxo de escolher um romancista para contar minha vida, esse romancista seria Gustave Flaubert. Poucas obras me deram mais prazer que Madame Bovary. Fiquei com a impressão de que estava diante de uma dicção literária que beirava a perfeição. Tenho inclusive medo de reler e não confirmar essa impressão. E aqui retomo o dito que abre esse texto: "Emma Bovary c'est moi". Todos trazem, em algum momento da vida, uma Emma Bovary dentro de si, no sentido do inevitável conflito entre as leituras românticas, que impelem para a fantasia, e a realidade, que chama para o chão (na falta de termo melhor). Madame Bovary é uma obra no limiar entre o romantismo e o realismo, ela problematizou ambos. Infelizmente, não me sinto capaz de aprofundar essa discussão, mas isso pouco importa. O que quero frisar é o alcance da obra em termos da encenação de conflitos que transcendem o século XIX: a fantasia das leituras leva para um lado; o mundo, que precisa ser fantasiado, leva para outro. Nesse terreno resvaloso nos movemos. Nem é preciso lembrar o conto Fita Verde no cabelo, de Guimarães Rosa, que tem como subtítulo (nova velha estória), postado neste blog. E que agosto seja bem-vindo.