Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 3 de março de 2012

Murilo Mendes

LAMENTAÇÃO

Nenhum homem tem mais saída:
Antes de nós o dilúvio.
Durante, o tédio no caos.
Depois, o épico escuro.
A esperança desespera,
Os olhos não são para ver
Nem os ouvidos para ouvir.

O diálogo virou monólogo,
Meio-dia é meia-noite.
Todos curvados constroem
Suas próprias algemas.
O longo ai das criaturas
Sobe para o céu
Forrado de espadas.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.386.

palavra vivida

Amar a poesia
como pão de que se necessita ―
sem precisar explicar ou entender
a fome que sacia.

fim

"Que é a morte? A extinção do livre arbítrio." (Murilo Mendes)

god bless you (curta)

geografia

Muita coisa passou pelo tablado dos meus sonhos esta noite. Eu era plateia? Coisas confusas, misturadas a conflitos afetivos e baratas (baratas mesmo, insetos, embora o adjetivo aqui se insinue através delas). Mas houve uma cena nítida, já no final, aquela que costuma ser a ponta do iceberg pela qual um sonho volta pela manhã como matéria difusa ― e também o acesso ao restante quase informe. Eu estava no Rio de Janeiro, numa casa situada nos limites da cidade, quase rarefeita, e quando olhei pela janela era como se tudo estivesse sobre um mapa, daqueles dos livros de escola, o mapa do Brasil. E a janela de onde eu olhava estava voltada para Belo Horizonte, concretamente, enquanto, no lado oposto, São Paulo (o estado) se insinuava como linhas abstratas. 

sexta-feira, 2 de março de 2012

um verso

"Às vezes Deus torna-me rápido." (Herberto Helder)

Vielimir Khlébnikov

O ÚNICO LIVRO

Vi que os negros Vedas,
o Evangelho e o Alcorão,
mais os livros dos mongóis
em suas tábuas de seda
― como as mulheres calmucas todas as manhãs ―
ergueram juntos uma pira
de poeira da estepe
e odoroso estrume seco
e sobre ela pousaram.
Viúvas brancas veladas numa nuvem de fumo,
apressavam o advento
do livro único,
cujas páginas maiores que o mar
tremem como asas de borboletas safira,
e há um marcador de seda
no ponto onde o leitor parou os olhos.
Os grandes rios com sua torrente azul:
― o Volga, onde à meia noite celebram Rázin;
― o Nilo amarelo, onde imprecam, ao Sol;
― o Yang-tze-kiang, onde há um denso lodo humano;
― e tu, Mississipi, onde os ianques
trajam calças de céu estrelado,
enrolando as pernas nas estrelas;
― e o Ganges, onde a gente escura são árvores de ciência;
― e o Danúbio, onde em branco homens brancos
de camisa branca pairam sobre a água;
― e o Zambeze, onde a gente é mais negra que uma bota;
― e o fogoso Óbi, onde espancam o deus
e o voltam de olhos para a parede
quando comem iguarias gordurosas;
― e o Tâmisa, no seu tédio cinza.
O gênero humano é o leitor do livro.
Na capa, o timbre do artífice ―
meu nome, em caracteres azuis.
Porém tu lês levianamente;
presta mais atenção:
és por demais aéreo, nada levas a sério.
Logo estarás lendo com fluência
― lições de uma lei divina ―
estas cadeias de montanhas, estes mares imensos,
este livro único,
em cujas folhas salta a baleia
quando a águia dobrando a página no canto
desce sobre as ondas, mamas do mar,
e repousa no leito do falcão marinho.

Poesia russa moderna. Trad. Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 2001, p.139-140.

Jaime Torres Bodet (em tradução de Manuel Bandeira)

DÉDALO

Enterrado, vivo
Em um infinito
Dédalo de espelhos
E me ouço, me sigo,
Me busco no liso
Muro do silêncio.

Porém não me encontro.

Olho, escuto, apalpo.
Por todos os ecos
O meu próprio acento
Está pretendendo
Chegar-me ao ouvido...

Porém não o advirto.

Alguém está preso
Aqui neste frio,
Lúcido recinto,
Dédalo de espelhos...
Alguém que eu imito.
Se parte, me afasto;
Se torna, regresso;
E se dorme, sonho...
― “És tu?” eu me digo.

Porém não respondo.

Cercado, ferido
Pelo mesmo acento
― Meu? Não sei dizê-lo ―
Contra o eco mesmo
Da mesma lembrança,
Eu nesta lembrança,
Eu neste infinito
Dédalo de espelhos
Enterrado vivo.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.362-363.

chico cuarque: o velho francisco ("vida veio e me levou")

quinta-feira, 1 de março de 2012

Manuel Bandeira

TESTAMENTO

O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros — perdi-os...
Tive amores — esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu menino,
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.181-182.

um excerto de "Tabacaria"

Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.

Rubem Braga

A PALAVRA

Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito como não imaginar que, sem querer, feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas. Imprudente ofício é este, de viver em voz alta.
Às vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de cada dia; a sonhar um pouco, a sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.
Agora sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que palavra foi; deve ter sido alguma frase espontânea e distraída que eu disse com naturalidade porque senti no momento e depois esqueci.
Tenho uma amiga que certa vez ganhou um canário, e o canário não cantava. Deram-lhe receitas para fazer o canário cantar; que falasse com ele, cantarolasse, batesse alguma coisa ao piano; que pusesse a gaiola perto quando trabalhasse em sua máquina de costura; que arranjasse para lhe fazer companhia, algum tempo, outro canário cantador; até mesmo que ligasse o rádio um pouco alto durante uma transmissão de jogo de futebol... mas o canário não cantava.
Um dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma pequena frase melódica de Beethoven e o canário começou a cantar alegremente. Haveria alguma secreta ligação entre a alma do velho artista morto e o pequeno pássaro cor de ouro?
Alguma coisa que eu disse distraído talvez palavras de algum poeta antigo foi despertar melodias esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente soubesse que de repente, num reino muito distante, uma princesa muito triste tivesse sorrido. E isso fizesse bem ao coração do povo; iluminasse um pouco as suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças.
Novembro, 1959

Rubem Braga. 200 crônicas escolhidas. 29.ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.377.

Beethoven: Moonlight Sonata

29 motivos para que 29 de fevereiro se torne feriado

Fico com este motivo, mas Santo Osvaldo bem que merecia, mais pelo nome que pela santidade.

Mário Faustino (o sol ardente do rio de janeiro fevereiro a pedir as águas de março)

AGONISTES

Dormia um redentor no sol que ardia
O louro e a cera, dons hipotecados
Da carne postulada pelo dia;
Dormia um redentor nos incensados
Lençóis que a lua póstuma cobria
De mirra e açafrões embalsamados;
Dormia um redentor no navegante
Das mortalhas de escuma que roia
O verme de seus sonhos abafados;
E até no atol do sexo triunfante
Do mar e da salsugem da agonia
Dormia um redentor: e era bastante
Para acordá-lo o verso que bramia
No cérebro do atleta e lá morria.

FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009, p.87.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

João Cabral de Melo Neto

ANÚNCIO PARA COSMÉTICO

Nada há contra o tempo.
O homem tudo o que pode
é fechar-se ao espaço
redondo que o envolve;
jogar fora o espaço,
o fora, ele sim pode,
assim numa Cartuxa
que do ao redor o isole.
Mas o tempo é de dentro;
dentro ele faz-se, escorre,
e esse escorrer interno
não há nada que o corte.
Às vezes o “........”
por certo tempo o encobre:
não o tempo ele próprio,
sim o corpo que ele morde,
já que o expressar do tempo
é roer o que percorre.

MELO NETO, João Cabral. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.84-85. 

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

diálogo entre clarice lispector e manuel bandeira

― Então você também veio para cá...
― Sim, caí como letra viva na página em branco ― e abri a porta. 

Vilém Flusser (em tradução de Dora Ferreira da Silva)

ORAÇÃO CORAÇÃO AÇÃO

Palavras-abelha, provo do vosso mel.
Em letras de ouro e terra
digo escrevo
oração
coração
ação.
A palavra parte (sem destino?)
levando pólen que emprestou-lhe a flor.
Voa com asas de oração; e outra, mais outra, enxames.
Operação tão limpa e delicada
abrindo celas oclusivas ―
alvéolos de transformação.
Que movimento é esse, que voo tão parado,
que decisiva ação?
Já não sou eu quem diz nem ouve e escreve
nem nossa é a dança alada
subindo o teto da manhã:
no alto vértice
o único a colhe
e dá sentido à ação.

Dora Ferreira da Silva. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p.318.

tipografia pessoana


segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

anedota doméstica

Sei que de qualquer jeito que eu contar o ocorrido um pouco da graça será perdida. A graça está no modo como certas coisas despretensiosas ganham um sabor (ou saber) novo. O episódio é simples: estando minha sobrinha comigo, levei-a a um shopping perto de casa, a que se vai a pé. No caminho, enquanto explicava-lhe sobre faixa de pedestres e simbologia do sinal vermelho e verde, comentei que a calçada, um tanto sofrível, não estava muito propícia para andar ― um buraco aqui, um cocô de cachorro ali, um fio solto de poste acolá. Ou seja: várias irregularidades das quais uma pessoa adulta se desvia com facilidade, e mesmo podem passar despercebidas, mas que com os passos tateantes e hesitantes de uma criança ganham mais proeminência e visibilidade. Disse-lhe então que a calçada estava cheia de armadilhas. Ela gostou da palavra, reteve-a, mas repetiu-a pronunciando “amardilha”, inclusive quando relatou a aventura para a mãe. Para escapar das amardilhas, optei por voltar de táxi para casa, aventura que minha sobrinha também apreciou. Há muita vida e encanto pela frente, está cedo para ela conhecer, fora do contexto lúdico e linguístico, qualquer coisa parecida com armadilha. E, protegida pelo amor, pode brincar bastante com as palavras, projetando, sem saber, a palavra amar na palavra armadilha. 

Manuel Bandeira

POUSA A MÃO NA MINHA TESTA

Não te doas do meu silêncio:
Estou cansado de todas as palavras.
Não sabes que te amo?
Pousa a mão na minha testa:
Captarás numa palpitação inefável
O sentido da única palavra essencial
― Amor.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.173.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

inutilidade pública

A fotografia é um exercício de imaginação. Se cada instantâneo é um registro único do fluxo do tempo, então fotografar é iludir o tempo com o inútil, e ao fazê-lo aceitar a existência. 

Álvaro de Campos

O mesmo Teucro duce et auspice Teucro 
É sempre cras — amanhã — que nos faremos ao mar. 
 
Sossega, coração inútil, sossega! 
Sossega, porque nada há que esperar, 
E por isso nada que desesperar também... 
Sossega... Por cima do muro da quinta 
Sobe longínquo o olival alheio. 
Assim na infância vi outro que não era este: 
Não sei se foram os mesmos olhos da mesma alma que o viram. 
Adiamos tudo, até que a morte chegue. 
Adiamos tudo e o entendimento de tudo, 
Com um cansaço antecipado de tudo, 
Com uma saudade prognóstica e vazia.

PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. Ed. Teresa Rita Lopes. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007, p.386.

não tem concorrência

Na Folha de 18/02, coluna Mônica Bergamo (daqui):

Depois de entregar a chave simbólica de Salvador para o Rei Momo e abrir o Carnaval, o prefeito João Henrique (PP-BA) falou com a coluna sobre a greve da PM, encerrada dias atrás:

Folha ― Foi uma surpresa?
João Henrique ― Sim. Tanto que eu tava fora [no Rio]. Mas, graças a Deus, deu tudo certo. E hoje nós estamos abrindo aí essa festa, que é a maior do planeta, né?

Que lição fica do episódio, que deixou 176 mortos?
A festa é de muita alegria. Hoje é dia de curtir o Carnaval da Bahia. É o maior do Brasil. Não adianta a concorrência. Este aqui é o maior Carnaval do mundo.

Foram 176 mortos.
Não tem concorrência. É o maior Carnaval do mundo.