Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 6 de março de 2014

nome próprio — o próprio nome

Diz o poeta que só o sonho é inevitável. Mas o nome que se tem, dito próprio, também. “Fiz uma breve avaliação de posses e cheguei à conclusão espantosa de que a única coisa que temos que ainda não nos foi tirada: o próprio nome.” (Clarice Lispector, Um sopro de vida). O marcador “ainda” sinaliza uma possibilidade perturbadora. Não somos donos do dia — é o que parece nos sugerir a noite.

Paulo Henriques Britto

CREDO

Se cada coisa dada a perceber
impõe a crença em sua forma e peso
e cor, e impinge a supersticiosa
aceitação da causa de ela estar
ali e não noutro lugar qualquer,
e ainda mais — a cega convicção
de que esse estar ali é tão real
quanto o se estar aqui a perceber
e elaborar para consumo próprio
(e momentâneo) uma religião inteira
de cores, formas, pesos, causas — tudo
isso que é necessário crer — então
como exigir de nós, que a cada instante
cremos em tanta coisa, ainda mais fé?

Paulo Henriques Britto. Mínima lírica. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p.51.