Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 4 de dezembro de 2010

"Na noite escura da alma" - acerca de James Joyce


Há um texto sobre James Joyce, escrito por Luís Gúsman, focalizando Finnegans Wake, de que transcrevo alguns trechos, nodais em relação à obra do escritor irlandês: "Na noite mais profunda, um homem sonha com um livro que nunca vai a escrever porque como Dante, sabe que se existe inferno, existe um só. Sonha com Dublin, a sétima cidade da cristandade, sonha com a noite desta cidade. (...) Na noite escura da alma alguém sonha com o redespertar (...) Na noite mais escura confia em que a linguagem o devolva a sua morada para explicar com a luz do dia por que a história é um pesadelo do qual não podemos despertar. Na noite mais escura este homem descobre que todas as línguas são uma só, busca a língua do redespertar. (...) No redespertar este homem confia em que a linguagem o leve de volta à morada, e une a linguagem a uma geografia. Na noite mais profunda o homem joga com as palavras e 'nigth/mare' se converteu em 'nigth/maze'. O pesadelo se converteu em labirinto. Mas no tratamento da noite o surpreende uma extranha dor no peito. (...) Esta pedra leve da cristandade se converteu em um peso. (...) Na noite mais escura redecora a carta de seu irmão Stanislaus: 'Fizeste o dia mais longo da literatura e agora estás conjurando a noite mais profunda.' Ele sabe que o mundo da noite não pode ser representado pela linguagem do dia; é nessa certeza que se baseia sua contra-argumentação. Todos crêem, até ele mesmo, que se trata de representar a linguagem do sonho. (...) A língua se retorce, explode, mas é necessário voltar à linguagem. Escreve em outra língua: 'Je suis au bout de l'anglais'. Por isso é que na noite mais profunda afirma a frase mais abismal: ‘I have put the language to sleep'. Colocar para dormir a língua, ninguém foi tão longe. (...) 'I'm at the end of English', estou no limite do inglês. Então suspende a língua, coloca-a para dormir. (...) Todos estão intrigados para ver até onde está disposto a chegar com a linguagem. Nesta travessia, vai perdendo amigos. Ele o disse: 'Coloquei para dormir a língua inglesa'. E fez para ver de que maneira sonha uma língua. Mas o espinho na carne não deixa de perturbá-lo, se trata de redespertar, trata-se de encontrar em vão a língua do pesadelo. À noite mais profunda segue o despertar. Toma café da manhã Bloomsday em um tapete que representa o Liffey correndo através de Dublin para desembocar no mar da Irlanda. A figura no tapete também leva seu próprio escudo de armas. É que pela manhã é preciso voltar à casa, transformar o Finnegans em um livro deste mundo." (Jornal do Brasil, Caderno de Idéias, 06/01/1991, p.9.)
Fonte da imagem: Fractarte.

John Lennon's parody of Bob Dylan

                           

divagações fortuitas, com selo europeu


“Então decidi que devo fechar os olhos na hora de por os selos nos envelopes feios, que é pra eu não magoar eu mesmo, sei lá. Mas enfim, os meus selos preferidos estão concorrendo a melhor não sei o que esse ano, acho que o mais bonito. Fiquei tão feliz!  Já mandei meu voto! Agora eu preciso arrumar mais cupons pra votar mais vezes (preciso arrumar uma forma de sabotar essa eleição) porque, como disse, as pessoas são insensíveis, sem coração, e vão votar nos selos com as bandas horrorosas do anos 70 (o Bob não se inclui, são só os terríveis finlandeses mesmo), vão votar nos selos com fotos de verduras e frutas, nos das fadas e NÃO vão votar nos  meus selinhos preto e branco com fotos de 70 anos atrás (...) Lindos!  Bom... sou muito materialista mesmo, né? Vou te escrever uma carta daí eu posso usar o selo bonitinho, mas não vou usar nesse envelope grande feio e amarelo (...) isso deveria ser crime. Acabei de recortar a coleção da página da revista, tô te mandando os selos pra que você veja! Lindos! Então, anos atrás eles lançaram uma coleção de selos só com mulheres famosas e já falecidas da Alemanha. Tinha Marlene Dietrich e tals (...) os selos eram lindos! Teve um que eu até mandei colocar numa camiseta a estampa, com a foto da atriz Hidelgard Knef! (anexo foto). Porque pra mim, o selo se tornou mais obra de arte. Eu acho que ainda devo ter algum por aqui nas minhas caixas... um dia te mostro.” 

Love Sick (Bob Dylan cover, CD I'm Not There)

Love Sick - Bob Dylan ("This kind of love I’m so sick of it")

Love Sick: um dos bons momentos do CD Time Out Of Mind. No vídeo, performance vigorosa e apaixonada, atravessada pela melancolia. I’m walking through streets that are dead / Walking, walking with you in my head / My feet are so tired, my brain is so wired / And the clouds are weeping. Letra no site oficial de Bob Dylan.

Snakecharmer: Ottmar Liebert

Rainer Maria Rilke: Sonetos a Orfeu

II. 10

A máquina ameaça a toda conquista
ao ousar ser no espírito e não na obediência.
Tanta inveja tem da mão do artista,
que corta mais duramente a obra na essência.

Nunca se atrasa, para que, uma vez, lhe escapemos
e, oleosa, na fábrica em silêncio se pertença.
Ela é a vida ― pensa saber mais do que sabemos;
ordena, cria e destrói, decidida e intensa.

Mas para nós o existir ainda é encantado.
Fontes, ainda, em cem lugares. Jogo de puras
forças e aquele que as toca se ajoelha admirado.

Suaves surgem palavras nunca ditas...
E a música, sempre nova, em vibrante arquitetura,
constrói sua casa, nas alturas infinitas.

RILKE, Rainer Maria. Os sonetos a Orfeu. Elegias de Duíno. Trad. Karlos Rischbieter e Paulo Garfunkel. Rio de Janeiro: Record, 2002, p.84-85.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

música

"... e não viver com música é trair a condição humana." Alguém que frequento disse isso.

All My Love - Led Zeppelin

[essa música me veio hoje como uma lembrança vaga, há tanto tempo não a ouvia]

Carreiras (Domingos Oliveira, Brasil, 2005)


O filme Carreiras é razoável no que se propõe: uma noite na vida de uma jornalista que alopra ao se ver na iminência de perder seu cargo de prestígio dentro da emissora em que trabalha há tempo (há bons comentários sobre o filme, como aqui). Interessa sobretudo apontar a duplicidade de sentido da palavra "carreiras": a carreira profissional e as carreiras de cocaína, consumidas de forma alucinada pela protagonista e seus pares. Isso não só mostra a intimidade entre o poder e o consumo de drogas quanto a fragilidade (vulnerabilidade) de quem precisa agradar sucessivas hierarquias para se conservar nos postos que conquistou. Um retrato cruel dos bastidores do jornalismo de uma grande emissora de televisão, que não é preciso muito esforço para deduzir qual seja. Por que me ocorreu este filme justo agora? Por dois motivos: o primeiro deles fala por si (a farsa da mídia, especialmente a televisão, em torno do suposto combate ao tráfico de drogas no Rio de Janeiro); o segundo por conta do trecho da Clarice: é que, a uma dada altura, dá a loucura da franqueza na protagonista, e isso a leva ao "inferno", do qual ela não sai ilesa.

Se desse a loucura da franqueza...

"O que é que uma pessoa diz a outra? Fora 'como vai'? Se desse a loucura da franqueza, que diriam as pessoas às outras? E o pior é o que se diria uma pessoa a si mesma, mas seria a salvação, embora a franqueza seja determinada no nível consciente, e o terror da franqueza vem da parte que tem no vastíssimo inconsciente que me liga ao mundo e à criadora inconsciência do mundo." 

Clarice Lispector. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.245.

Bob Dylan - Sweetheart Like You

[vídeo garimpado aqui]

Jokerman - Bob Dylan (completo)

"Freedom just around the corner for you  
But with the truth so far off, what good will it do?"

jornal hoje: o ibope do bope

Constrangedor. 88% dos moradores do Rio aprovam as medidas tomadas contra o tráfico, diz a simpática Sandra Annenberg na edição de hoje do jornal hoje, segundo "pesquisa " do ibope: ou será segundo (secundando, por medo) o bope? Entra em cena o outro apresentador, dizendo que a pesquisa saiu depois do 5º dia de ocupação do Complexo do Alemão, que começou assim: entra então em cena um vídeo amador feito por um dos policiais do bope (que está com o ibope alto) mostrando a tropa de elite comemorando a proximidade da invasão (para quem quiser conferir a reportagem, basta clicar aqui). Logicamente as piores partes do vídeo foram expurgadas (para quem quiser sentir náuseas, basta clicar aqui). Voltando ao noticiário, rapidamente muda-se de assunto, e uma das reportagens que vem a seguir é uma matéria especulando acerca de um comunicado da NASA, previsto para hoje, anunciando uma "importante descoberta científica" (a suposta vida fora da Terra, como se alguém ainda duvidasse disso). Já que a vida aqui está difícil, nada como adotar um ar blasé e falar da ciência como se fosse uma amenidade. Em tom ameno e sorridente, o repórter se dirige à correspondente em Nova York, que fala nos mesmos termos, no mesmo intento de tentar fazer graça: "Olha, os últimos informes são de que os homenzinhos ainda não foram encontrados" (aqui). Coincidência ou não, a correspondente emprega a palavra avalanche (avalanche de boatos), a mesma que o comandante do bope empregou para caracterizar a operação nas comunidades cariocas. Só não dá para entender por que estão indo tão longe buscar os homenzinhos... Patético. Enquanto a vida por aqui se dilacera, a imaginação sonha em encontrar vida em outras esferas. A surpresa será se os homenzinhos formos nós. 

Paulo Leminski (enviado pela R.)

crítica literária no Brasil

Qual é, a seu ver, a maior dificuldade da crítica no Brasil?

A falta de livros a criticar. Entenda-se: quando digo livros refiro-me aos que possuam um elevado teor espiritual.

Sérgio Buarque de Holanda (entrevista concedida ao jornal Tribuna da Imprensa, em 30/12/1951). Fonte: Encontros: Sérgio Buarque de Holanda. Org. Renato Martins. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p.51.

Slow Train - Bob Dylan

Letra no site oficial.

Mário Faustino

ODE

“Esta manhã o ar estava cheio de anjos”
e sua súbita beleza era quase invisível

A manhã era os mesmos e transparentes anjos
e seus frágeis caminhos eram quase visíveis

Agora é noite e um anjo desgarrado
debate-se impotente no pegajoso mar

Numa praia distante suas asas são algas
e misteriosamente a noite está deserta

Ouço o teu canto pobre anjo decaído
mas estou preso e o abutre me contempla

Por que amaldiçoas quem imortal te fez?
a manhã não tem culpa se não vem nunca mais

cheia de anjos indecisos caminhando
sem pés sobre os caminhos do ar

Por que o desespero alma esquecida?
É teu consolo o teres sido um anjo

FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009, p.205.

Nota: é sempre bom não perder de vista as observações que Sérgio Alcides fez acerca desta edição da poesia de Mário Faustino (aqui).

Vitória, Espírito Santo, março de 2002

Eu havia acabado de passar no mestrado em Estudos Literários na Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo). No dia em que recebi a notícia, comprei na banca em frente à universidade o livro Infância, de Graciliano Ramos, e registrei: Vitória, 27-03-02, após minha assinatura. Muita coisa estava ficando para trás. E muita coisa estava acontecendo naquele gesto simples de comprar o livro Infância e marcá-lo com a palavra Vitória, nome da capital do meu estado, Espírito Santo. Um rio subterrâneo fluindo, deixando-me finalmente na minha terceira margem, de onde se abriu em leque minha existência, com toda a dor e medo e sofrimento que tal abertura pode comportar. Mas também com uma alegria íntima de saber que eu estava conseguindo. Conseguindo o quê? Não sei. Apenas sei que estava conseguindo, como sabia de forma pouco palpável no momento, ao comprar o livro. 

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Emily Dickinson

Quem não achou o Céu na terra
Dele não vai dispor ―
Na Casa ao lado um Anjo mora,
Vá você onde for ―

Who has not found the Heaven ― below ―
Will fail of it above ―
For Angel rent the House next ours,
Wherever we remove ―

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.116-117.

Blowin' in the Wind - Bob Dylan (Bangladesh, 1971)

[a figura que se move ao fundo, no início, é George Harrison]

Esta música, não obstante ter sido colocada como "canção de protesto", é uma série de perguntas sem resposta, ou melhor, "the answer, my friend, is blowin’ in the wind / the answer is blowin’ in the wind". Há um interlocutor a quem se sinaliza que as respostas, se houver, estão aí, blowin’ in the wind, para quem puder pegar, ou mesmo elas vão e vêm com o vento, mudando com ele... Gosto especialmente, na última estrofe, da pergunta: "How many times must a man look up / Before he can see the sky?" Letra no site oficial de Bob Dylan.

Pink Floyd: Shine On You Crazy Diamond


[segue link da versão compacta]

"viver nos outros" (Sérgio Buarque de Holanda leitor de Nietzsche)

De repente, bateu-me um cansaço das pessoas, do ser humano. Há humanidades demais por aí, e seu adocicado viscoso forma uma espécie de liga que vai agrilhoando as pessoas umas às outras. O ser humano e seus terríveis carinhos: amor que vira ódio, amizade que vira tédio... O ser humano e sua incapacidade de viver consigo mesmo. O ser humano... Lembro-me, a propósito, de um trecho de Nietzsche, lido em Raízes do Brasil: "O vosso mau amor por vós próprios converte a vossa solidão num cativeiro." Sérgio Buarque cita a passagem acerca do polêmico "homem cordial": "No 'homem cordial', a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, periférica, que no brasileiro ― como bom americano ― tende a ser a que mais importa. Ela é antes um viver nos outros." (Raízes do Brasil, 26.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.147.) Esse "viver nos outros" já encontrou várias exegeses, sem dúvida interessantes e pertinentes, dispersas nas diferentes publicações dedicadas ao autor. A minha é simples: o aprendizado da solidão é tão importante quanto respirar, e inclusive ajuda a melhorar a respiração. 

hoje acordei com vontade de ciência, grandes imensidões, vazios

Além da beleza de tudo, me agradou deveras a introdução com a música do Pink Floyd, "Shine On You Crazy Diamond". 

terça-feira, 30 de novembro de 2010

notícia da morte de um compositor

Morreu, no dia 21 de novembro, aos 67 anos, o compositor José Antônio de Almeida Prado. 

75 anos da morte de Fernando Pessoa

[GATO QUE BRINCAS NA RUA]

Gato que brincas na rua  
Como se fosse na cama,  
Invejo a sorte que é tua  
Porque nem sorte se chama.
  
Bom servo das leis fatais  
Que regem pedras e gentes,  
Que tens instintos gerais  
E sentes só o que sentes.
  
És feliz porque és assim,  
Todo o nada que és é teu.  
Eu vejo-me e estou sem mim,  
Conheço-me e não sou eu.

O SOM DA FÚRIA (matéria da revista Cult sobre os 50 anos do rock)

O SOM DA FÚRIA
Roberto Muggiati
O rock foi a trilha sonora dos movimentos de protesto que varreram o mundo nos anos 1960


Apaguem as velinhas! O som da contracultura vai completar 50 anos. Em janeiro de 1961, Robert Allen Zimmerman, já investido do nome de guerra, Bob Dylan, deixou sua Minnesota natal e começou a cantar nos bares do Greenwich Village. Em Nova York, a primeira coisa que Dylan fez foi visitar seu ídolo, Woody Guthrie, cantor itinerante que sempre lutou pela causa social e entalhou com canivete no violão a frase “Esta máquina mata fascistas”. Já em 1963, o jovem Dylan estourava nas paradas com “Blowin’ in the Wind”, que seria interpretada por centenas de artistas. Marlene Dietrich a cantou em alemão; foi gravada em romeno, bengali, catalão e muitas outras línguas; virou hit como lado B do single de Stan Getz e Astrud Gilberto The Girl from Ipanema. “Quantas estradas deve um homem percorrer / Até que o considerem um homem? / (…) A resposta, meu amigo, está soprando ao vento, / A resposta está soprando ao vento”. Era uma canção de paz, de certo modo simplista, mas os sixties ainda estavam começando. À medida que a década escrevia sua história, o rock ia compondo sua trilha sonora. A resistência passiva cedeu lugar à indignação e, depois, à raiva. Mostrando que não eram de todo ignorantes em Shakespeare, os escribas do Novo Jornalismo criaram um chavão para o rock: o som e a fúria. Em Macbeth, o bardo concluía que a vida “é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando nada”. Prefiro uma variante do chavão, que afirma que o rock foi o som da fúria, do sentimento incontido de milhões que achavam chegada a hora de uma mudança radical e planetária.
Apesar (ou por causa) de todos os seus conflitos, os anos 1960 foram uma época fascinante. Parafraseando Dickens, na sua famosa descrição da Revolução Francesa: “Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a idade da razão, foi a idade da insensatez, foi a era da crença, foi a era da incredulidade, foi a era da luz, foi a era das trevas, foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero…”, os anos 1960 foram a década que definiu o século 20. Os anos 1920, batizados por Scott Fitzgerald de “a era do jazz”, não passaram de um trailer dos anos 1960, “a era do rock”.
Nos Estados Unidos, Dylan advertia o cidadão comum de que “alguma coisa está acontecendo / mas você não sabe o que é, / Sabe, Mr. Jones?”. John Kennedy, um líder aparentemente bem-intencionado, jogou seu país no poço sem fundo da Guerra do Vietnã. Foi assassinado no Texas em novembro de 1963, enquanto as jukeboxes, lojas de discos e sistemas de som do país inteiro tocavam hits de Bob Dylan. O ativista negro Malcolm X foi assassinado em 1965; o pastor Martin Luther King e o senador Robert Kennedy, em 1968. (Dez anos depois, surgiu na Califórnia uma banda punk chamada The Dead Kennedys – o rock absorve tudo, sem o menor pudor.)
A primeira metade da década corre descontraída (apesar da ameaça do apocalipse nuclear), com canções hedonistas dos dois lados do Atlântico. Na Califórnia, os Beach Boys exaltam as emoções do surf-rock; na Inglaterra, os Beatles cantam as delícias do amor adolescente. Um pouco mais inconformados, os Rolling Stones e The Who reclamam da chatice da vida sem futuro dos jovens. O folk-rock não satisfaz Dylan e ele troca o acústico pelo elétrico, o que provoca a ira de muitos de seus fãs. Não é só a guitarra elétrica que embala o novo Dylan, mas um discurso mais agressivo e letras mais trabalhadas. Seu hino de batalha é “Like a Rolling Stone”, de 1965: “How does it feel, how does it feel / To be on your own, without a home / Like a complete unkown, like a rolling stone?” (“Que tal é / Estar sozinho, sem casa alguma? / Um completo desconhecido, uma pedra que rola?”). Era uma espécie de O Estrangeiro, de Camus, vertido para a linguagem do rock. Em 2004, a revista Rolling Stone elegeu-a a melhor canção de todos os tempos: “Nenhuma outra música pop confrontou e transformou tão completamente as regras comerciais e as convenções artísticas de sua época”. O nome da revista  a Life dos rockófilos , bem como da banda de Mick Jagger e da canção de Dylan, foi inspirado na “rolling stone” de um velho blues de Muddy Waters: “pedras que rolam não criam musgo”. O rock branco nunca escondeu que sua grande influência foi o blues negro, assinando sua identificação com os oprimidos da terra.
A década adotou como lema “sexo, drogas e rock’n’roll”, um ideário hedonista como poucas épocas conheceram. O sexo fazia parte da explosão libertária conhecida como “revolução sexual”. Apesar da predominância do discurso amoroso e da noção de casais estáveis  as-duas-metades-da-maçã-etc.-e-tal; o best-seller da época foi A Arte de Amar, de Erich Fromm; o filme de maior bilheteria foi o açucarado Love Story , havia uma forte tendência para o sexo livre, desvinculado do amor, na base do “ninguém é de ninguém”, ou seja, a abolição da propriedade privada também nas relações físicas. As drogas, além do êxtase químico, representavam a busca do autoconhecimento. E o rock’n’roll eram as fanfarras de Dionísio, colorindo de som a vida desses novos epicuristas.
Aditivado pelo LSD, surge o acid rock da Califórnia, bandas de nomes surreais como Jefferson Airplane, New Riders of the Purple Sage, Blue Cheer e Grateful Dead, esta ligada a um grupo de “guerrilheiros lisérgicos”, os Merry Pranksters, que percorriam a Califórnia num velho ônibus escolar pintado de cores psicodélicas, espalhando a mensagem do LSD e a própria droga, deitando-a em jarras de ponche nas festas caretas ou nos bazares de igreja e até tentando colocá-la nos reservatórios de água – já imaginaram cidades inteiras viajando com LSD sem o saber? De repente, uma nova tribo surgia no cenário global da contracultura: os hippies. Brotaram de repente, nas ruas de São Francisco, e ganharam a reportagem de capa da revista Time, o barômetro da alma norte-americana. Eram “the flower children” – as crianças, ou os filhos da flor. Alardeavam o poder da flor sobre os fuzis, ilustrado graficamente pela foto genial de Marc Riboud durante a marcha sobre o Pentágono, em Washington, em outubro de 1967. No ano seguinte, no Brasil, Geraldo Vandré lançava “Caminhando (Pra Não Dizer que Não Falei das Flores)”: “Pelas ruas marchando indecisos cordões / Ainda fazem da flor seu mais forte refrão / E acreditam nas flores vencendo o canhão”. Foi um dos exemplos mais extremos da força da música atuando sobre a realidade. A canção de Vandré  e seu eco na juventude brasileira  levou a ditadura a um gesto de desespero: a decretação do AI-5, que levaria, por sua vez, ao acirramento do confronto entre a sociedade e os militares nos “anos de chumbo”.
Nos Estados Unidos ― o espelho da consciência mundial , 1967 foi um ano “cultural”. Já 1968 seria um ano essencialmente político, com a radicalização dos movimentos de resistência nos EUA (negros,chicanos, estudantes), a conflagração histórica nas ruas de Paris no mês de maio, e a Primavera de Praga no Leste Europeu. Cultura e política se juntariam numa só corrente em 1969, ano em que  mais do que nunca na história da humanidade  a utopia do “poder jovem” esteve perto de se concretizar, sob o lema dos estudantes de maio de 1968: “A imaginação no poder”. Tudo isso ao som de rock. Um evento sem maiores pretensões, o Monterey Pop, no verão de 1967, na Califórnia, inaugurou a era dos megafestivais. Ali se revelaram da noite para o dia dois superstars: Janis Joplin, em sua orgástica interpretação de “Ball and Chain”, e Jimi Hendrix, num ritual  xamânico, a queima de sua guitarra em pleno palco, enquanto tocava “Wild Thing”  era o blues eletrônico em plena explosão. (Naquele mesmo momento, uma banda de Los Angeles, The Doors, estourava nas paradas com “Light My Fire”, na voz de Jim Morrison, um croo-ner possesso que traduzia para o rock o “desregramento sistemático de todos os sentidos” proclamado um século antes pelo poeta francês Rimbaud).
No verão de 1969, o mundo surpreendeu-se com os megafestivais de rock. Em 5 de julho, os Rolling Stones reuniram 300 mil pessoas no Hyde Park de Londres, num concerto em homenagem a Brian Jones, o primeiro guitarrista da banda, encontrado morto dois dias antes em sua piscina. Em 15 de agosto, acontecia em Woodstock, estado de Nova York, o festival dos festivais, reunindo mais de meio milhão de pessoas. Os últimos sons dessa maratona de rock foram ouvidos ao amanhecer da segunda-feira, uma desconstrução da melodia do hino nacional norte-americano pela guitarra delirante de Jimi Hendrix. “O dia em que o homem pousou sobre a Terra” foi a manchete do The New York Times, comparando o evento à chegada do homem à Lua, um mês antes. A revista Time dissecou o “fenômeno” num ensaio intitulado “A Mensagem do Maior Happening da História”. Dez dias depois, Bob Dylan, que não se apresentou em Woodstock, sacudia o Festival da Ilha de Wight, na Inglaterra, que reuniu 250 mil pessoas.
Foi um agosto agourento. Para o rock, o sonho transformava-se em pesadelo. No dia 9 daquele mês, a atriz Sharon Tate, mulher do cineasta Roman Polanski, e quatro amigos foram assassinados em sua casa de Los Angeles. Os assassinos escreveram com sangue nas paredes slogans como “Death to pigs” e “Helter skelter”. As mesmas inscrições apareceram no local de assassinato do casal LaBianca, no dia seguinte. Somente em dezembro se revelaria que os crimes tinham sido cometidos pelo bando de Charles Manson, um músico frustrado, que se dizia incitado pela canção “Helter Skelter”, do “álbum branco” dos Beatles, a desencadear um apocalipse racial entre brancos e negros. Ao mesmo tempo, em 6 de dezembro, acontecia o sinistro concerto dos Rolling Stones no Festival de Altamont, um autódromo no meio do deserto da Califórnia, reunindo 350 mil pessoas e contabilizando quatro mortes – a mais dramática delas a de um negro apunhalado pelos Hell’s Angels, investidos pelos Stones no papel de seguranças, diante das câmeras do filme Gimme Shelter, que focalizava a turnê norte-americana da banda. Esses episódios revelaram ao mundo que os hippies não eram os anjos da contracultura louvados até pela grande mídia e que existiam, em seu meio, bolsões de ignorância e crueldade. E, também, que os festivais de rock não eram “essencialmente um fenômeno de inocência”, como o The New York Times se referiu a Woodstock. Separado dos Beatles, John Lennon proclamava, em entrevistas e numa canção: “O sonho acabou”. E a morte da Santíssima Trindade dos J do rock  Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison  entre o final de 1970 e meados de 1971, todos aos 27 anos  fechava simbolicamente a tampa do caixão do rock e da contracultura.
O rock continuou presente, nos festivais, nos megashows e nas paradas de sucessos, mas não mais como uma bandeira da revolução, mesmo porque a revolução também já havia perdido sua hora. Nos tempos neoconformistas de um mundo globalizado e informatizado, passou a imperar a lei do salve-se quem puder e não há mais lugar para a rebeldia. Resta apenas a figura singular de um Bob Dylan às vésperas dos 70 anos, misto de judeu errante e caubói solitário, arrastando pelos quatro cantos da Terra sua Never Ending Tour, iniciada em junho de 1988. Em mais de 2.200 shows, ao longo de 22 anos, ele ainda recita suas velhas profecias: “And the present now will soon be the past / The order is rapidly fading. / The first one now will later be last. / For the times, they are a-changing” (E o presente logo será passado. / A ordem rapidamente se desfaz. / O primeiro hoje será o último. / Pois os tempos estão mudando”).

Texto publicado em 24 de novembro de 2010. Link da matéria aqui. Bob Dylan é o fio condutor de um texto que ficaria ótimo se tivesse deixado o Brasil de fora: a alusão en passant, sem acrescentar nada, peca por superficialidade.

João Cabral de Melo Neto: Graciliano Ramos

Graciliano Ramos:

Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto de cicatriz clara.

*

Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordeste, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:

que reduz tudo ao espinhaço,
cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se a fraude.

*

Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:

e onde estão os solos inertes
de tantas condições caatinga
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua.

*

Falo somente para quem falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:

que é quando o sol é estridente
a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos.

MELO NETO, João Cabral de. Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.302-303.

Murilo Mendes: palavras em dispersão na planície deserta

O pastor pianista 

Soltaram os pianos na planície deserta 
Onde as sombras dos pássaros vêm beber. 
Eu sou o pastor pianista, 
Vejo ao longe com alegria meus pianos 
Recortarem os vultos monumentais 
Contra a lua. 

Acompanhado pelas rosas migradoras 
Apascento os pianos: gritam 
E transmitem o antigo clamor do homem 

Que reclamando a contemplação 
Sonha e provoca a harmonia, 
Trabalha mesmo à força, 
E pelo vento nas folhagens, 
Pelos planetas, pelo andar das mulheres, 
Pelo amor e seus contrastes, 
Comunica-se com os deuses. 

Fonte: CANDIDO, Antonio. Na sala de aula. 8.ed. São Paulo: Ática, 2000, p.82.

trecho de conversa: "novembro"

Deixando novembro para trás: "esses momentos difíceis, por mais que seja difícil acreditar, passam. Não sei se a vida fica mais simples ou o nosso olhar e nossa vivência abrandam as adversidades. Vivenciar a tese, em parte, muito nos consome." 

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

just like a woman - bob dylan (bangladesh, 1971)




[no meu entender, a performance mais bonita do dylan para esta música]

Emily Dickinson / Clarice Lispector

Tão tênues como o amanhã
Que nunca vem
Garantia e convicção 
Só nome têm.

As subtle as tomorrow
That never came,
A warrant, a conviction,
Yer but a name.

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.176-177.


A PERFEIÇÃO

O que me tranquiliza é que tudo o que existe, existe com uma precisão absoluta. O que for do tamanho da cabeça de um alfinete não transborda uma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete. Tudo o que existe é de uma grande exatidão. Pena é que a maior parte do que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível. Apesar da verdade ser exata e clara em si própria, quando chega até nós se torna vaga pois é tecnicamente invisível. O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.155.