Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 18 de fevereiro de 2012

Alexei Bueno: livro de haicais

Sobre mim a lua.
Lá atrás das altas montanhas
Outro deve olhá-la.


BUENO, Alexei. Livro de haicais. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p.216.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Dora Ferreira da Silva

PÁGINA AVULSA

Esquece a palavra e mesmo a partitura
ouve a música inesperada desse caminho
em que ela andou e era manhã.
Outros caminhavam a seu lado
riam. Havia sempre uma flor desconhecida
cor e perfume diversos dos ramos de outros dias.
Uma ninfa de azul tudo olhava.
Tu sei una visuale”, alguém dizia.
Ela olhava absorta. Me piace il tuo silenzio
a voz prosseguia. Cantavam águas
passos ecoavam nas pedras que sempre por ali havia.
Isso foi ontem
              hoje é outro dia.
No mesmo caminho ela segue
vendo/ouvindo o fantasioso viver
mais um dia
             mais um dia.

Dora Ferreira da Silva. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p.394-395.

incursões recentes pela fotografia: paisagens e arredores

domingos martins-es, janeiro 2012

incursões recentes pela fotografia

domingos martins-es, janeiro de 2012

incursões recentes pela fotografia: passarinhos

domingos martins-es, janeiro de 2012

incursões recentes pela fotografia: bichos do mato

domingos martins-es, janeiro de 2012

masters of war: eles continuam (you that hide behind desks)

transbordamento



Todo mundo conhece o ritual de mudar(-se): embalar livros, pertences, coisas várias, enfim, a casa, em caixas de papelão. Para quem faz isso amadoristicamente, o ritual inclui fazer incursões ao supermercado mais próximo, várias vezes às vezes, e voltar para casa munido de boas caixas, limpas e novas, desmontadas, resistentes e prontas para acondicionar o lar, em migração para novo endereço. Não é que hoje, no supermercado, ao bater os olhos em uma caixa novinha em folha, me lembrei no átimo do ritual? Naturalmente porque, em função de escolhas e demandas profissionais, tive de fazê-lo um bom número de vezes. Então a singela caixa ― aberta, ainda por cima ― teima em me lembrar que minha condição, por mais assentada que agora pareça, guarda uma memória de itinerância?  Memória que parece querer transbordar das muitas caixas em que fiz caber... o que exatamente?

Parêntese: o editor de textos grifa em vermelho o termo “itinerância”, e o Houaiss não o registra. Também num texto há muita coisa que não quer caber, e dele transborda.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

incursões recentes pela fotografia: bichos caseiros (2)

domingos martins-es, janeiro de 2012

incursões recentes pela fotografia: bichos caseiros (1)

domingos martins-es, janeiro de 2012

Johnny Cash & Bob Dylan - One Too Many Mornings

uma frase cruel de Clarice Lispector

Ali não há nada a salvar.” Na sequência: “Nem tudo quer dizer alguma coisa (isso é tão importante como o oposto).” Me pareceu que a crônica de que retirei a frase é também cruel, mas dizer isso seria precipitado, numa leitura cujo principal impactado é sempre o leitor. Mas dizer que não há nada a salvar ― num destino, numa vida, seja lá em que for ― é sim cruel. Disso não há dúvida.
Para não esquecer, p.65.

Clarice Lispector: espelho é o espaço mais fundo que existe

OS ESPELHOS

“O que é um espelho? Não existe a palavra espelho ― só espelhos, pois um único é uma infinidade de espelhos. ― Em algum lugar do mundo deve haver uma mina de espelhos? Não são precisos muitos para se ter a mina faiscante e sonambúlica: bastam dois, e um reflete o reflexo do que o outro refletiu, num tremor que se transmite em mensagem intensa e insistente ad infinitum, liquidez em que se pode mergulhar a mão fascinada e retirá-la escorrendo de reflexos, os reflexos dessa dura água. ― O que é um espelho? Como a bola de cristal dos videntes, ele me arrasta para o vazio que no vidente é o seu campo de meditação, e em mim o campo de silêncios e silêncios. ― Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre em frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe. ― E é coisa mágica: quem tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. De onde também voltaria vazio, iluminado e translúcido, e com o mesmo silêncio vibrante de um espelho. ― A sua forma não importa: nenhuma forma consegue circunscrevê-lo e alterá-lo, não existe espelho quadrangular ou circular: um pedaço mínimo é sempre o espelho todo: tira-se a sua moldura e ele cresce assim como água se derrama. ― O que é um espelho? É o único material inventado que é natural.
Quem olha um espelho conseguindo ao mesmo tempo isenção de si mesmo, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade é ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestí­gio da própria imagem ― então percebeu o seu mistério. Para isso há-de se surpreendê-lo sozinho, quando pendurado num quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em simples imagem de uma agulha.
Devo ter precisado de minha própria delicadeza para não atravessá-lo com a própria imagem, pois espelho que eu me vejo sou eu, mas espelho vazio é que é espelho vivo. Só uma pessoa muito delicada pode entrar num quarto vazio onde há um espelho vazio, e com tal leveza, com tal ausência de si mesma, que a imagem não marca. Como prêmio, essa pessoa delicada terá então penetrado num dos segredos invioláveis das coisas: Vi o espelho propriamente dito.
E descobri os enormes espaços gelados que ele tem em si, apenas interrompidos por um ou outro alto bloco de gelo. Em outro instante, este muito raro ― e é preciso ficar de espreita dias e noites, em jejum de si mesmo, para poder captar esse instante ― nesse instante consegui surpreender a sucessão de escuridões que há dentro dele. Depois, apenas com preto e branco, recapturei sua luminosidade arco-irisada e trêmula. Com o mesmo preto e branco recapturei também, num arrepio de frio, uma de suas verdades mais difí­ceis: o seu gélido silêncio sem cor. É preciso entender a violenta ausência de cor de um espelho para poder recriá-lo, assim como se recriasse a violenta ausência de gosto da água.

Clarice Lispector. Para não esquecer: crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.12-13.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Dora Ferreira da Silva

NOITE EM ITATIAIA

O canto excede o pássaro
e se distende
             sopro
sibilando mais do que o saber sabe.
O silêncio (quando pousa)
ao distraído censura
não ver o muito do nada.

Sol posto.
A sinfonia adentra-se na mata.
No escuro da noite
faço de meu peito um ninho de aconchego
e canto de mim para comigo (sem que o ar se mova)
mais um dia de aprendizado.

Dora Ferreira da Silva. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p.291-292.

tecer

Uma blusa que comprei recentemente veio com alguns pontos levemente descosturados. Vi na hora de sair, já vestida, não havia tempo de trocar ou dar uns pontinhos. Quando voltasse faria isso. E então, esquecida de quase tudo, concentrada nos pontos que iam sendo cuidadosamente costurados à mão, senti, na distração do momento, uma grande calma de perceber outras tessituras, outras camadas tecidas disso que chamo minha vida, a vida que se tece enquanto manuseamos fios invisíveis.

1965 (duas tribos): nem sentiu se era falso ou fevereiro

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

prece cósmica: secos & molhados (cover)

a arte de andar pelas ruas do rio de janeiro

Copacabana, princesinha do mar. Andar pelas ruas de Copacabana, não sendo carioca mas morador(a) do Rio, é sentir-se um turista sem precisar das havaianas ― um turista acidental, para recordar o filme ― se bem que é fácil transmutar-se em turista em qualquer lugar que se esteja. A geografia, no Rio, mistura-se a um tempo, uma cidade, que não conheci, e que me chegou pela música, pela crônica. É estar num presente cheio de passado, passado agredido pelo presente. Então, atraída pelo mar, cheguei até o calçadão da Av. Atlântica e quase me apeteceu um chope. Em vez, mirei ao longe o Leme   e fui cuidar da vida.

Herberto Helder: o açoite dos versos

...
― E nada mais somos do que o Poema onde as crianças
se distanciam loucamente.
                                     Loucamente.

Herberto Helder. Ou o poema contínuo. São Paulo: A Girafa, 2006, p.69.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

"penso que deve existir para cada um / uma só palavra..."

O poema de Herberto Helder falava de uma palavra, para cada pessoa, intransferível, deixada virgem pela inspiração dos povos. Eu quero a palavra “orvalho”. Estava a ler isto, do mesmo Herberto: “Havia um homem que corria pelo orvalho dentro. / O orvalho da muita manhã.” Foi quando me dei conta de que moro na cidade, num apartamento situado num edifício-condomínio, cidade que me aconselha a voltar em segurança para casa, de preferência cedo, e que estas não são condições para se perceber o orvalho, nem mesmo para ele se manifestar ― tudo isso num instantâneo de pensamento, em que já lia também o outro poema e descobria a palavra "orvalho". O orvalho pede outra espécie de experiência com a noite. Migrei para antigas manhãs, noites silenciosas, o aviso para tomar cuidado com o sereno. A suprema leveza do orvalho, o frescor derramando sobre o dia findo um manto que ao espírito acalmava. Orvalho, palavra que tomei para mim.

começar de novo

 
 

mais Herberto Helder ― dormi melhor após ler isso:

Nesta laranja encontro aquele repouso frio
e intenso que conheço
como um dom impossuído.
...

Herberto Helder. Ou o poema contínuo. São Paulo: A Girafa, 2006, p.32.

deu saudade

não coincide...

No entrecruzar das imagens que consigo me lembrar desta noite, havia uma tentativa de fotografar, mas as imagens não coincidiam com a intenção: eu mirava uma coisa e fotografava outra. Era muito discrepante, como se houvesse um erro na hora de fotografar. Quem estava por perto, a ser fotografado junto com ouras pessoas (estranhas?) ― como naquelas fotografias antigas, em que cada um ocupava um lugar um tanto rígido, no caso do sonho como se cada um tivesse sendo fotografado isoladamente ―, quem estava junto era alguém dúbio, para dizer o mínimo, o que só agrega desconfiança à discrepância entre a intenção e as imagens. Depois pareceu que o problema era meu, que eu é que não estava sabendo usar a câmera. Pode ser. O cenário era-me bem familiar: os arredores da casa em que nasci, que já havia aparecido no sonho da noite anterior, sonho pra lá de Marrakech. Desta noite ficou a discrepância entre o olhar e o que é devolvido através dele. 

uptown (animação): que beleza!

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Herberto Helder

...
Penso que deve existir para cada um
uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse
virgem de sentido e que,
vinda de um ponto fogoso da treva, batesse
como um raio
nos telhados de uma vida, e o céu
com águas e astros
caísse sobre esse rosto dormente, essa fechada
exaltação.

Que palavra seria, ignoro. O nome talvez
de um instrumento antigo, um nome ligado
à morte ― veneno, punhal, rio
bárbaro onde
os afogados aparecem cegamente abraçados a enormes
luas impassíveis.
Um abstrato nome de mulher ou pássaro.
Quem sabe? ― Espelho, Cotovia, ou a desconhecida
palavra Amor.

Sei que minha vida estremeceria, que
os braços sonâmbulos
iriam para o alto e queimariam a ligeira
noite de junho, ou que o meu
coração ficaria profundamente louco. E nessa
loucura
cada coisa tomaria seu próprio nome e espírito,
e cada nome seria iluminado
por todos os outros nomes da terra, e tudo
arderia num só fogo, entre o espaço violento
do mês de primavera e a terra
baixa e magnífica.

Com grandes dedos eu tocaria as trêmulas
campânulas dos signos, e beijaria
as rodas excitadas do ar.
Ferveriam os pequenos vulcões dos frutos.
Dentro dos tanques tombaria a água
infantil da aurora. Comer ou sonhar ou estar à mesa
da fantasia nocturna
seria para um homem, sob a abóboda da cabeça, como
o espírito caído dentro da forma
e a forma incrustada, como uma lâmpada,
na inspiração da cabeça.

― Cada boca pousada sobre a terra
pousaria
sobre a voz universal de outra boca.

Herberto Helder. Ou o poema contínuo. São Paulo: A Girafa, 2006, p.30-31.

o chefe da polícia / pelo telefone manda me avisar...

outros tempos... hoje polícia não dá mais samba
[obrigada, helena]