Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 16 de julho de 2011

Mário Faustino

CARPE DIEM

Que faço deste dia, que me adora?
Pegá-lo pela cauda, antes da hora
Vermelha de furtar-se ao meu festim?
Ou colocá-lo em música, em palavra,
Ou gravá-lo na pedra, que o sol lavra?
Força é guardá-lo em mim, que um dia assim
Tremenda noite deixa se ela ao leito
Da noite precedente o leva, feito
Escravo dessa fêmea a quem fugira
Por mim, por minha voz e minha lira.

(Mas já de sombras vejo que se cobre
Tão surdo ao sonho de ficar ― tão nobre.
Já nele a luz da lua ― a morte ― mora,
De traição foi feito: vai-se embora.)

FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009, p.195.

Guimarães Rosa

Na literatura, Dantas, há muito de penoso sacerdócio. É uma posição que se assume muito seriamente, importantemente perante o mundo. Persigo sempre as formas mais altas. Sou um homem de vida ascética. [...] Receio demais os lugares-comuns, as descrições muito exatas, os crepúsculos certinhos.
DANTAS, Paulo. Sagarana emotiva: cartas de João Guimarães Rosa. São Paulo: Duas Cidades, 1975, p. 28.

do lado de cá

Minha preguiça de sair de casa anda imbatível. Ocorre que liguei para uma amiga, buscando solução para fugir de um programa pouco convidativo. Ela disse que teria hoje um queijos e vinhos com um pessoal conhecido dela, e comentou en passant que se intitulam “do lado de cá”, me convidando. Basta morar no Rio de Janeiro para saber o que é este lado de cá. Então eu, que moro em Jacaresilvânia (homenagem ao belo Castelo dos Vinhos que abre minha rua), sou bem lado de cá, à esquerda da esquerda, quase já um outro lado do lado de cá, que é de lá. E se me conheço bem, embora tenha combinado quase cem por cento certeza, não vou ao queijos e vinhos. É que o canto que me calhou morar no Rio de Janeiro é tão bom (sequer lembra a cidade que vive aparecendo na televisão, nos seus extremos, Leblon e Alemão) que veio perfeitamente ao encontro de minha fome de ler e escrever, de simplesmente estar em casa, maior, certamente, que a vontade de sair, pelo menos por enquanto. Porque quando a pessoa se descobre de posse de alguma coisa muito boa é difícil trocá-la por outra, ainda que pessoas incríveis possam estar à espera. Dizer mais do que isso é desnecessário. Apenas isto, então: minha nova casa deu-me algo que já tive algumas vezes, sem saber que tinha, e que por isso voltava a perder: uma espécie de limite para a rua.

Anselm Kiefer, Book with Wings, 1992–94

Collection of the Modern Art Museum of Fort Worth. Imagem obtida AQUI.

blog alternativo

Estou em dúvida sobre o destino do meu (loucos a menos): está ficando parecido demais com  o lado de cá, como se lá pudesse ser um outro lá, um lá, uma margem, que não coubesse nas margens daqui... Sei vagamente porque o criei, mas isso anda me escapando. Talvez (é provável) que importe os posts para cá: o blogger oferece este recurso, testei e funciona. Administrar dois blogs também tem me deixado confusa. O motivo do mar já é bastante amplo por si, creio que um blog alternativo teria que se fundar em algo mais que o que tenho feito por lá. Há pouca coisa que não cabe no mar. 

Julio Cortázar: linguagem como não discursividade

Uma das notas aludia suzukianamente à linguagem como uma espécie de exclamação ou grito que vem diretamente da experiência interior. Seguiam-se vários exemplos de diálogos entre mestres e discípulos, completamente incompreensíveis para o ouvido nacional e para toda a lógica dualista e binária.

CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. Trad. Fernando de Castro Ferro. 15. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.491.

Julio Cortázar: página trinta e dois

85

As vidas que terminam como os artigos literários de jornais e revistas, tão portentosas no primeiro plano e acabando numa cauda desfeita, lá pela página trinta e dois, entre anúncios de liquidação e tubos de dentifrício.

(-150)

CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. Trad. Fernando de Castro Ferro. 15 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.469. 

sexta-feira, 15 de julho de 2011

a pontuação da vida

Em Fernando Pessoa para todas as ocasiões: "A vida é a hesitação entre uma exclamação e uma interrogação. Na dúvida, há um ponto final." Entre a perplexidade e o espanto, mal traduzindo. Não poderia ser mais apropriado para levar para o sono, ponto de hesitação do dia, intervalo, reticências duvidosas que se abrem para viagens que demandam outra linguagem, outra pontuação.

antes de dormir

Antes de dormir, percebo o silêncio. A partir de certo ponto, comecei a apreciá-lo. O que cabe aqui? Um Cortázar, decerto. Um poema, é mais do que certo. Mas dou uma passada de olho no texto que abre o blog e me incomoda a palavra comunicar: não é de comunicação que se trata, é de troca, entrega, doação, quando possível. Preciso trocar a palavra por outra, sem saber ao certo se o que faço aqui é troca de palavras (ou de silêncios), talvez porque perceba o quanto ando muda ultimamente, apesar da aparência de quem está muito falando. Nas palavras, nestas, esconde-se o negativo (tal como nas fotografias) da minha percepção do blog: não se sabe se é ilha ou mar, linguagem movente entre os sentidos dados e aqueles por construir. 

das muitas formas de se dirigir a uma empresa

"A incorreção nas informações cadastrais do cliente só mostra o quanto a empresa é desorganizada e incoerente. Naturalmente que assim mais erros são cometidos, e é o consumidor quem paga por isso. Uma empresa deveria apenas oferecer, em troca do valor pago, serviços de qualidade ao cliente, e não problemas. Os problemas que a empresa me deu em apenas dois meses recobrem a chateação mínima aceitável para umas três encarnações, de forma que, nos próximos 500 anos, não tenho a menor intenção de contratar novamente os serviços da empresa. Felizmente há concorrentes no mercado."

Beyond The Horizon: Bob Dylan

Beyond The Horizon é a segunda canção na sequência.  Aqui na interpretação de Bob Dylan, com cenas que remetem ao título do álbum, Modern Times.

James Laughlin

NO COMPARISON

A parrot
A talking parrot
a parrot in a cage
“pretty Polly”.

A poet
no fooling a poet
a poet in the USA
“Hyla Shakespeare”.


SEM QUERER COMPARAR

Um papagaio
um papagaio falante
um papagaio numa gaiola
“Rosa formosa”.

Um poeta
falando sério um poeta
um poeta nos EE.UU.
“Que-que-há Shakespeare”.

FAUSTINO, Mário. Poesia completa e traduzida. Org. Benedito Nunes. São Paulo: Max Limonard, 1985, p. 280-281. James Laughlin: The Poetry Foundation

THE HAND THAT SIGNED THE PAPER

The hand that signed the paper felled a city;   
Five sovereign fingers taxed the breath,   
Doubled the globe of dead and halved a country;   
These five kings did a king to death.

The mighty hand leads to a sloping shoulder,   
The finger joints are cramped with chalk;   
A goose’s quill has put an end to murder   
That put an end to talk.

The hand that signed the treaty bred a fever,   
And famine grew, and locusts came;
Great is the hand that holds dominion over   
Man by a scribbled name.

The five kings count the dead but do not soften   
The crusted wound nor stroke the brow;   
A hand rules pity as a hand rules heaven;   
Hands have no tears to flow.


A mão que assina o ato assassina a cidade.
Cinco dedos reais taxam o ar ― é a lei.
Cevam o morticínio e ceifam um país;
Os cinco reis que dão cabo de um rei.

A mão que manda mana de um ombro em declínio,
Cãibras deduram nós nos dedos que a cal cala.
Penas de ganso firmam o assassínio
Que pôs fim a uma fala.

A mão que assina o pacto traz a peste,
Praga e devastação, o gafanhoto e a fome;
Grande é a mão que pesa sobre o homem
Ao rabisco de um nome.

Os cinco reis contam os mortos mas não curam
A crosta da ferida e o rosto já sem cor.
A mão rege a clemência como a outra os céus.
Mãos não têm lágrimas a expor.

CAMPOS, Augusto de. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006, p.332-333.


A mão que assinou o papel derrubou uma cidade;
Cinco dedos soberanos tributaram a respiração,
Duplicaram a esfera dos mortos e reduziram um país à metade;
Esses cinco reis levaram um rei à morte.

A poderosa mão chega a um ombro arqueado,
As juntas dos dedos foram imobilizadas pelo gesso;
Uma pena de ganso pôs um fim ao crime
Que deu fim à troca de palavras.

A mão que assinou o tratado fez brotar a febre,
E cresceu a fome, e vieram os gafanhotos;
Grande é a mão que mantém o seu domínio
Sobre um homem por ele ter escrito um nome.

Os cinco reis contam os mortos, mas não aplacam
A ferida cicatrizada nem acariciam a fronte;
Há mãos que regem a piedade como outras o céu;
As mãos não têm lágrimas para derramar.

Dylan Thomas. Poemas reunidos. Trad. Ivan Junqueira. 2.ed. rev. Rio de Janeiro: José Olympio, p.105.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Dylan Thomas: trabalhar a partir das palavras

Com o perdão antecipado dos puristas, mais um Dylan Thomas traduzido. Não resisto.

DIR-SE-Á QUE OS DEUSES

Dir-se-á que os deuses esmurram as nuvens
Quando o trovão as amaldiçoa?
Dir-se-á que choram quando urra a atmosfera?
Serão os arco-íris a cor de suas túnicas?

Quando chove, onde estão os deuses?
Dir-se-á que fazem brotar a água
Dos vasos do jardim, ou que desatam as torrentes?

Dir-se-á que, à maneira de Vênus, as tetas
De um velho deus são ordenhadas e mordidas,
Ou que a úmida noite me censura como alguma ama-de-leite?

Dir-se-á que os deuses são pedra.
Ecoará sobre a terra uma pedra que caiu,
Ressoará o seixo arremessado? Deixa que as pedras falem
Com as línguas que falam todas as línguas.

Dylan Thomas. Poemas reunidos. Trad. Ivan Junqueira. 2.ed. rev. Rio de Janeiro: José Olympio, p.105.

Na introdução que faz à coletânea, Ivan Junqueira transcreve o trecho de uma carta enviada por Dylan Thomas a Pamela Hansford Johnson: “Meus versos, todos os meus versos, são de uma intensidade de décima ordem. As palavras que expresso não são as que desejo expressar; são apenas palavras que consigo encontrar para chegar à metade do que estou dizendo. E isso não é bom. Sou um excêntrico usuário de palavras, não um poeta. Essa é a única verdade. Nada de piedade para comigo mesmo. Um excêntrico usuário de palavras, não um poeta. Isso é terrivelmente verdadeiro.” (p.24). À parte o excesso de rigor e certa performance, esta concepção revela a poesia como tradução. E é claro que Dylan Thomas era um poeta, não um usuário de palavras. Tanto que tinha elevada consciência de seu ofício. Alguém que sabia que pedras podem falar conhecia por dentro a linguagem:  “It shall be said that gods are stone. / Shall a dropped stone drum on the ground, / Flung gravel chime? Let the stones speak / With tongues that talk all tongues.”

matéria vertente

Esta semana tive um sonho visguento ― noite mal dormida, e uma espécie de torpor que deixava o corpo à mercê de indefinições. No informe de tudo, eu fazia uma péssima escolha. Porque manter a disponibilidade para o risco é difícil, e o medo produz covardias, rendições. Eu me rendia ao que jamais poderia admitir, naquilo que tenho de coragem, e isso me jogava numa negação que não era interrogação, mas vazio, nulidade, frustração. A formulação de Torquato, em “Pessoal Intransferível”, continua gritando, fazendo bovinos seres inertes acordar diante do perigo: “E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi.” Esta tarde, ao dormir aquele sono metade sono das tardes, uma parte de mim parecia querer ir, sufocar, enquanto a outra resistia e mandava voltar. E se não parasse para escrever isso o soño da tarde estaria perdido. 

"Mas cá estou eu a colher palavras e isso me basta"

O que mais surpreende na blogosfera, e que justifica em última instância ter um blog, é o inesperado de uma fala, que ademais parece querer antes o enigmareviro suas páginas como se, ao fazê-lo, revirasse os dias de uma existência que não me alcança de fato, e ainda assim volto aqui e bato à porta e me pergunto. É possível pensar este verbo em sua intransitividade, quando pronominal: perguntar-se. Bato à porta do território adrede desarrumado da linguagem e me pergunto. E como um ritual já consagrado e incorporado, corto periodicamente os cabelos, como se daí pudesse advir alguma liberdade: os cabelos deixados para trás corporificam aquilo que pouco pertence a mim, de que preciso me desfazer para que possa mais livremente me perguntar.

My Back Pages (1992)

My Back Pages - The 30th Anniversary Concert - 1992 on VimeoNeste link é possível conferir a gravação com melhor qualidade. Aqui a versão original pelo The Byrds.

Alejandra Pizarnik

INFANCIA

Hora en que la yerba crece
en la memoria del caballo.
En viento pronuncia discursos ingenuos
en honor de las lilas,
y alguien entra en la muerte
con los ojos abiertos
como Alicia en el país de lo ya visto.

Alejandra Pizarnik. Poesía completa. Barcelona: Lumen, 2000, p.176.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Dylan Thomas: o inseto

"O inseto é decerto o flagelo das fábulas."

antologia: Knockin' On Heaven's Door

dia mundial do rock: aprecie sem moderação

Bon Dylan, The Man In Me, 1970.  

“O mais seguro nesta vida é o que jamais se conhece”

Este verso. O mais seguro na vida é o que jamais se conhece. Li o poema todo na sessão de análise. Não calculei. Abri o livro e li. Eis tudo. Um livro que se abre ― e um pouco mais se sabe, mesmo que seja saber que não sabe. Os românticos recriando Adão e Eva ― ler o livro do mundo.

terça-feira, 12 de julho de 2011

aos navegantes

Arrisco, numa enquete, meu singelo mar à vista... ¿QUÉ TE PARECE ESTE BLOG? É apenas minha vocação para a curiosidade. Está ali, na barra lateral, abaixo dos seguidores. Sem maiores expectativas, exceto a mais recôndita: saber um pouco mais deste espaço pelos passos de quem, com ou sem compasso, ou bússola, aporta seus barcos momentaneamente aqui.

Dylan Thomas: Was there a time...

É impossível ser indiferente a tanta beleza:

Houve um tempo em que os bailarinos com seus violinos
Esqueciam suas agruras nos circos da infância?
Houve um tempo em que choravam sobre os livros,
Mas o tempo engendrou uma larva em seus rastros.
Eles não estão a salvo sob o arco do céu.
O mais seguro nesta vida é o que jamais se conhece.
Sob os signos do céu, os que não possuem braços
Têm as mãos imaculadas, e, assim como o espectro sem coração
É o único intocado, assim o cego é quem melhor vê.

Dylan Thomas. Poemas reunidos. Trad. Ivan Junqueira. 2.ed. rev. Rio de Janeiro: José Olympio, p.109.

Agora a moldura: li este poema hoje, no ônibus, indo para a análise, enquanto a memória buscava, em vão, lembrar-se de qual teria sido o poema de Dylan Thomas traduzido para o português que havia lido alhures, na blogosfera, muito bonito. Li de relance as considerações do tradutor sobre os poemas que serviram de base, questão sempre complexa na edição de textos, e ao que consta mais complexa no caso de Dylan Thomas. Vai ficar para outro post. A tradução não é bilingue, o vírus da desconfiança falou mais alto que a beleza que arrebatou no momento da leitura, e a carne por fim foi fraca: uma rápida combinação de palavras no Google levou não só ao poema original como ao outro poema que referi acima, e que era este mesmo, vertido para o português por HMBF.

amanhã é dia mundial do rock

...mas nada impede que a comemoração comece hoje: YES!

Bob Dylan: Born In Time

In the hills of mystery
In the foggy web of destiny
You can have what’s left of me
Where we were born in time
[site oficial de Bob Dylan]

segunda-feira, 11 de julho de 2011

o ponto onde começa o silêncio: marguerite duras

Nas histórias de meus livros que remetem à minha infância, de repente não sei mais o que evitei dizer, o que disse, acho que falei do amor que sentíamos por nossa mãe, mas não sei se falei do ódio que também sentíamos por ela e o amor que sentíamos uns pelos outros, e o ódio também, terrível, nessa história de ruína e morte que era a dessa família em qualquer caso, de amor ou de ódio, e que ainda não consigo entender plenamente, ainda me é inacessível, oculta no mais fundo de minha carne, cega como um recém-nascido no primeiro dia de vida. Ela é o ponto onde começa o silêncio. O que acontece é justamente o silêncio, essa lenta labuta durante toda a minha vida. Ainda estou lá, diante daquelas crianças possessas, à mesma distância do mistério. Nunca escrevi, e pensei que escrevia, nunca amei, e pensei que amava, nunca fiz nada a não ser esperar diante da porta fechada.”

DURAS, Marguerite. O amante. Trad.Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p.23. 

William Carlos Williams e Pieter Brueghel

A Parábola dos Cegos, 1568, Pieter Brueghel

IX A PARÁBOLA DOS CEGOS

Esta horrível mas soberba tela
a parábola dos cegos
sem vermelho algum

na composição mostra um bando
de mendigos um a
guiar o outro atravessando

diagonalmente o quadro
desde um lado
para tropeçar enfim num charco

onde a pintura
e a composição terminam atrás
do qual nenhum homem vidente

é representado os rostos
sem barbear dos in-
digentes com seus poucos

e miseráveis pertences vê-se
uma bacia de lavar numa casinha
campônia e a ponta de uma torre de igreja

as faces estão erguidas
como que para a luz
não há nenhum detalhe estranho

à composição cada um
segue os outros bordão
na mão triunfante até o desastre


IX THE PARABLE OF THE BLIND

This horrible but superb painting
the parable of the blind
without a red

in the composition shows a group
of beggars leading
each other diagonally downward

across the canvas
from one side
to stumble finally into a bog

where the picture
and the composition ends back
of which no seeing man

is represented the unshaven
features of the des-
titute with their few

pitiful possessions a basin
to wash in a peasant
cottage is seen and a church spire

the faces are raised
as toward the light
there is no detail extraneous

to the composition one
follows the others stick in
hand triumphant to disaster


WILLIAMS, William Carlos. Poemas. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 252-253.

domingo, 10 de julho de 2011

Mário Faustino

E SONHOU A MULHER QUE SE CUMPRIRA

E sonhou a mulher que se cumprira.
E sonhou que no ventre da guitarra
Silente uma semente se partira
Em pranto, riso e música, fanfarra
De dor e glória por delfim nascido.
E sonhou a mulher que, enfim florido
Seu trato de terreno roxo, aberto,
Dormia sem sonhar sobre o deserto
Passado que em futuro então se abria
Frutificando em palmas de alegria.
Na lira umbilical Orfeu tocava
Acalanto ilusório à que dormia
E entre as árvores de sonho balançava
A rede filial inda vazia.

FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. Org. Maria Eugenia Boaventura. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009, p.190. Na edição organizada por Benedito Nunes, em nota é informado que este poema também recebeu o título-dedicatória de Sonnet to a childless mother.

matéria estranha

A vida não cabe na linguagem. A vida, pressentida na inocência, era só silêncio e voragem. Todo o enigma de uma vida desdobrando-se em camadas sutis que sabem mais ao silêncio, e que ainda assim conhece a urgência da linguagem. Se os físicos foram buscar em Joyce o contorno para um dos abismos da matéria ― os quarks ― é porque abismar-se na matéria é fazer o mesmo na linguagem: a complexidade da matéria pede a complexidade que a linguagem logrou alcançar. Há rumores sobre a matéria estranha, diferente da usual, e que poderia absorver e transformar completamente esta ― como se fosse uma dimensão que não comportasse o mundo que, bem ou mal, o homem esforçou-se por esquadrinhar e lotear, embora cada tarde possa trazer a suspeita de que o homem não se habituou a existir. Mas agora há a matéria estranha. A matéria estranha não cabe no pensamento, não cabe em nada: ela é o grande nada, o fim de toda ilusão, o fim da beleza a que se deu o nome de poesia. 

"Three Quarks for Muster Mark!" (James Joyce)

Ronan O'Neill, Three Quarks for Muster Mark! [strange]

a superfície das palavras

L deixou alguns barcos. Inútil pensar que foram os barcos que buscaram outros rumos. Num relance, na tarde ― tarde e noite são espaços privilegiados de irrupção do inesperado―, L manda uma mensagem aloprada de celular a quem pode ouvi-la. É ouvida. Fala coisas ininteligíveis, porque precisa. Fala em “fala roubada”, em coisas intensamente vividas, coisas que precisam encontrar ouvidos de gente. Corta para outra cena. L deixa desconcertado quem não esperava dar com ela tão de repente e não sabe o que fazer com o fato dela existir e estar simplesmente ali, parada, sozinha, diante da tarde, sem precisar de nada, sequer do olhar que lhe é dirigido. Recebe o desdém com a mesma expressão com que olha o nada. Sustenta o olhar. Seus olhos não dizem nada, e sabe que desconcerta. Vai continuar desconcertando. O que falava a mensagem? Falava ― ameaçava falar ― o que não quer calar. A conexão entre os fatos é a própria superfície com que eles se oferecem: o barco que deixou pareceu-lhe muito estreito para a largueza do que experimentou. Era o que tentava dizer a mensagem, em formulação compatível com o formato e a tarde. Está ecoando, às vezes grita, outras apenas sussurra. 

Dogville (ou a condição de órfão)


Para quem suporta levar Dogville até o final, então há uma sequência antológica ao som de Young Americans, de David Bowie. Neste filme todos são jovens e já muito velhos para pisar neste planeta: a crueldade é sua melhor vingança contra o outro indefeso, indefeso porque um pouco mais frágil, apenas isso. A condição de órfão é a de todos: todos caímos na humanidade, e os laços de sangue muitas vezes apenas constituem uma licença maior para o abuso, também conhecido como proteção. O amor recebe muitos nomes, o que não significa que se saiba o que é este sentimento ― ou que ele seja comum ou fácil de sentir. O amor também é o nome que se dá ao que não se sente, palavra vazia a encobrir escusos sentimentos, difíceis de nomear.  

cuidar das palavras

Cuidar das palavras ― e esperar ― paciente ― o retorno. Ainda que venha apenas nos momentos de descuido ― distração. 

João Cabral de Melo Neto

O ARTISTA INCONFESSÁVEL 

Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.

MELO NETO, João Cabral. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.58. 

William Carlos Williams: TO HAVE DONE NOTHING

NADA TER FEITO

Não não é isso
nada que eu tenho feito
nada
que eu tenho feito

é feito de
nada
e o ditongo

eu

seguido da
primeira pessoa
do singular
do indicativo

do verbo
auxiliar
ter

tudo
que tenho feito
dá no mesmo

se fazer
é capaz
de uma
infinidade de
combinações

envolvendo os
códigos

morais
físicos
e religiosos

pois tudo
e nada
são sinônimos
quando

a energia in vacuo
tem o poder
de confusão

que só
nada ter feito
pode fazer
perfeito


TO HAVE DONE NOTHING

No that is not it
nothing that I have done
nothing
I have done

is made up of
nothing
and the diphthong

ae

together with
the first person
singular
indicative

of the auxiliary
verb
to have

everything
I have done
is the same

if to do
is capable
of an
infinity of
combinations

involving the
moral
physical
and religious

codes

for everything
and nothing
are synonymous
when

energy in vacuo
has the power
of confusion

which only to
have done nothing
can make
perfect

William Carlos Williams. Poemas. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.58-61.