Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 1 de maio de 2010

Vento de Maio

Georges Wambach, Jardim Botânico I , s.d., aquarela sobre papel 

trecho final do conto "As margens da alegria"

De volta, não queria sair mais do terreirinho, lá era uma saudade abandonada, um incerto remorso. Nem ele sabia bem. Seu pensamentozinho estava ainda em fase hieroglífica. Mas foi, depois do jantar. E — a nem espetaculosa surpresa — viu-o, suave inesperado: o peru, ali estava! Oh, não. Não era o mesmo. Menor, menos muito. Tinha o coral, a arrecauda, a escova, o grugrulhar grufo, mas faltava em sua penosa elegância o recacho, o englobo, a beleza esticada do primeiro. Sua chegada e presença, em todo o caso, um pouco consolavam.
Tudo se amaciava na tristeza. Até o dia; isto era: já o vir da noite. Porém, o subir da noitinha é sempre sofrido assim, em toda a parte. O silêncio saía de seus guardados. O Menino, timorato, aquietava-se com o próprio quebranto: alguma força, nele, trabalhava para arraigar raízes, aumentar-lhe a alma.
Mas o peru se adiantava até a beira da mata. Ali adivinhara — o quê? Mal dava para se ver, no escurecendo. E era a cabeça degolada do outro, atirada ao monturo. O Menino se doía e se entusiasmava.
Mas: não. Não por simpatia companheira e sentida o peru até ali viera, certo, atraído. Movia-a um ódio. Pegava de bitucar, feroz, aquela outra cabeça. O Menino não entendia. A mata, as mais negras árvores, eram um montão demais; o mundo.
Trevava.
Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vaga-lume. Sim, o vaga-lume, sim, era lindo! — tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a alegria. 

ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p.11-12.

uma frase de Clarice Lispector

"Nós estamos tão longe de compreender o mundo  que nossa cabeça  não consegue raciocinar senão à base de finitos." 
(A descoberta do mundo, Rio de Janeiro, Rocco, 1999, p. 291)

quinta-feira, 29 de abril de 2010

"quem não se arrisca não pode berrar"


"E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi." (Torquato Neto, Os últimos dias de paupéria, 2.ed, 1982, p. 63 - publicado originalmente em 14/09/1971) Título da matéria: "Pessoal intransferível", que compõe um verso do poema mais famoso seu, "Cogito": "eu sou como eu sou/ pronome/ pessoal intransferível/ do homem que iniciei/ na medida do impossível." 

terça-feira, 27 de abril de 2010

o romance moderno segundo Walter Benjamin: a riqueza da vida escapando por entre os fios do texto

“Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites. Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem a vive.” (BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 7. ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, 201). 


Na tradução de Modesto Carone, esse trecho ganha mais densidade: “Escrever um romance significa levar o incomensurável ao auge na representação da vida humana. Em meio à plenitude da vida e através da representação dessa plenitude, o romance dá notícia da profunda desorientação de quem vive.” (BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 60).

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Trecho final do conto "O espelho", de Guimarães Rosa

Devia ou não devia contar-lhe, por motivos de talvez. Do que digo, descubro, deduzo. Será, se? Apalpo o evidente? Tresbusco. Será este nosso desengonço e mundo o plano — intersecção de planos — onde se completam de fazer as almas?
Se sim, a ‘vida’ consiste em experiência extrema e séria; sua técnica — ou pelo menos parte — exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? Depois, o “salto mortale”... — digo-o, do jeito, não porque os acrobatas italianos o aviventaram, mas por precisarem de toque e timbre novos as comuns expressões, amortecidas... E o julgamento-problema, podendo sobrevir com a simples pergunta: — “Você chegou a existir?”
Sim? Mas, então, está irremediavelmente destruída a concepção de vivermos em agradável acaso, sem razão nenhuma, num vale de bobagens? Disse. Se me permite, espero, agora, sua opinião, mesma, do senhor, sobre tanto assunto. Solicito os reparos que se digne dar-me, a mim, servo do senhor, recente amigo, mas companheiro no amor da ciência, de seus transviados acertos e de seus esbarros titubeados. Sim?

ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 72.

A experiência estética, segundo Luiz Costa Lima

“O próprio da experiência estética [...] é estabelecer uma suspensão de juízo [...] Se poderia dizer, com Coleridge, que o objeto estético exige de mim ‘uma suspensão amorosa da descrença’. Não há experiência estética sem uma suspensão amorosa da descrença. E é através dessa suspensão amorosa que eu não obrigo o meu objeto a ter características de verossimilhança; com o que eu acharia como ele deveria ser. Ou seja, a amorosa suspensão a que me refiro é a condição para que o receptor possa ser tocado por algo contrário ou diverso de suas expectativas. Contudo, ao aceitar o que antes da experiência estética não poderia sequer conceber, o receptor passa a incorporar o que antes não lhe era concebível. Esse novo produto torna-se objeto de crença sua, objeto a partir do qual legisla. [...] O problema consiste na legislação que o receptor-analista passa a fazer. (Este me parece, diga-se entre parênteses, o típico problema das vanguardas: legislar sobre o novo e, a partir dele, decretar o que seria perempto).” (COSTA LIMA, Luiz. Dispersa demanda. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981, p. 212)

a origem do termo vanguarda, segundo Antoine Compagnon

"Esse termo [vanguarda] é de origem militar; no sentido próprio, designa a parte do exército situada à frente do corpo principal, à frente do grosso de tropas. Tornou-se um termo político e, em seguida, estético. Seu emprego político era generalizado, desde a revolução de 1848 [...] e, nessa época, designava tanto a extrema esquerda quanto a extrema direita, aplicava-se ao mesmo tempo aos progressistas e aos revolucionários. Daí, passou ao vocabulário de crítica da arte. Mas o termo sofreu um deslocamento capital em sua metáfora estética de 1848 a 1870 [...]. Podemos resumir tudo isso dizendo que a arte de vanguarda foi primeiramente a arte a serviço do progresso social e que se tornou a arte esteticamente à frente de seu tempo. Esse deslocamento deve ser relacionado com a [busca da] autonomia para a obra de arte [...]: se a arte de vanguarda merece essa denominação antes de 1848, por seus temas, a arte de depois de 1870 a merecerá por suas formas." (Antoine Compagnon. Os cinco paradoxos da modernidade. Trad. Cleonice P. B. Mourão, Consuelo F. Santiago e Eunice D. Galéry. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996, p. 39)

Um poema de Guimarães Rosa (em diálogo com Édipo)

Iniciação

E nem mais existirá a esperança do trágico...
E no vazio,
em vão apelareis para as grandes catástrofes,
para a vaidade do ranger de dentes,
para o pavoroso das formas não de todo feitas
sob o terrível das forças verticais...
Sumirão as espadas suspensas de fios,
sumirá a mão que escreve nas paredes
do festim velho,
e a Esfinge dormirá nas areias eternas...
Somente o segredo, acordado, no caminho claro,
na encruzilhada de todos os caminhos,
andando na tua frente, desvendado,
mais difícil de crer do que de decifrar...
Teu pensamento, tua fé e teu desejo,
criando, à tua escolha, o teu destino...
E se fores forte,
olha bem para cima,
para ver como é sorrindo
que morre o teu Pai...

ROSA, João Guimarães. Magma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.77.