Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 20 de agosto de 2011

chove... nada além da poesia tece: fernando pessoa

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser renego...

Tão calma é a chuva que se solta do ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...

memória

A memória é um poço do qual emergem nomes, pessoas, cenas antigas. Não temos uma memória: somos o que a memória vai deixando brotar à superfície em cada instante em que a vida se divide. O percurso precursor alavancando intuições que levam ao momento seguinte: quanta paciência neste ruminar da vida! A memória não seria a mesma se, num hipotético instante remoto, outro tivesse sido o rumo. Como sabê-lo?

Este texto é uma homenagem a um amigo de escola que tive na antiga 5ª série, Sandro, de quem recordo, além do belo nome, apenas o sorriso largo de criança, uma alegria irradiada. Por algum obscuro motivo éramos amigos, havia uma constância naquele companheirismo de infância. Eu tinha por volta de 11 anos, e estudávamos numa escola pública. Havia também um namoradinho, mas a lembrança deste só vem por contraste e acidente ― vi-o muito tempo depois, e já então pertencia àquela vasta galeria de pessoas que crescem e se tornam quase irreconhecíveis. Já o Sandro eu nunca mais vi, mas alguns traços dele, o bastante para compor uma persona, ficaram cravados para sempre na minha memória, algo que só pude saber há bem pouco tempo.

Toda vez que me interrogo sobre aquele ser, de que me recordo apenas dois ou três traços, o que terá lhe acontecido, eu tenho a estranha sensação de que eu vivia num mundo de sonho, do qual não imaginava que fosse um dia despertar. Quando interrogo a minha memória, percebo que meu próprio estado de origem, o Espírito Santo, padece de certo apagamento na geografia do país, e que a década em que me iniciei na escola e na vida, os anos 70, também é página mal resolvida. História e geografia: no delineamento de uma vida, pisa-se por vezes em terrenos irregulares, enquanto há um concerto maior que escapa a quem está vivendo.

A memória que tenho de tudo é singularíssima. As escolhas, as intuições... O que vou dizer pode contrariar aquele lugar mais do que comum acerca dos sentimentos, mas eu não rezo pela cartilha do óbvio e seus cumes de insignificância: eu prestei mais atenção ao amigo que ao suposto namorado. Por que era então uma criança? Não sei se é só isso. O fato é que, depois de muito tempo, no ano passado, quando num lance inesperado eu fui lecionar para o 6º ano, eu me lembrei subitamente daquele menino que era então meu amigo, de seu nome e daquela alegria rara, incomum. Sei que nenhuma internet, facebook ou afim vai trazer de volta esse tempo, aquele amigo. E, entre todas as minhas angústias, perplexidades e indagações, eu me pergunto, não sem um travo de tristeza, se a vida preservou ou levou de enxurrada a alegria do meu efêmero amigo quando ele se fez Homem.

Prefiro não me perguntar outras coisas, e acreditar que ele continua vivo por aí, respirando aquela intensa vivacidade que captei enquanto convivemos. No ano seguinte meus pais me mudaram de escola. De mudança em mudança, instalei-me por fim numa geografia oscilante: o pronome eu é apenas um modo confortável e econômico de me poupar explicações sem sentido. Estarei revendo o Sandro em algum dos meus alunos do 6º ano? De todo modo, eu sempre tive pouco, e desse pouco fiz a minha história singular.

palavra

Palavra ― resisto em cada letra, fonema, sílaba. A separação das palavras é um efeito da escrita, não da fala.

Alexei Bueno: livro de haicais

Mesmo esse macaco
Ridente, é incrível, um dia
Ficará calado.

BUENO, Alexei. Livro de haicais. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p.218.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Dora Ferreira da Silva

A RECLUSA

Entre as irmãs
és tu ― Emily ―
que vejo no jardim:
cachos de cobre
rosto concentrado
um pouco velho e sóbrio
fronte silenciosa
mesmo quando falamos
de irreais amores
como de nossas flores.

Entre nós um girassol equilibra
luas diurnas
nebulosas e primroses
(tua preceptora noturna
poderia quem
sabe colhê-las mais tarde
a foice oculta nos refolhos.)

Pássaro magro
vens de algodãozinho verde
com rendas cor de creme
(pobre com ar de nobre).
Prendo-te violetas à cintura
rimos contentes
e corremos para escapar
à chuva de verão.

Dora Ferreira da Silva. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p.138-139.

uma pergunta

Mas será que as pessoas, essas mesmas que se aboletam nos shoppings ou nas filas de consumo, já se fizeram a pergunta: o que estou fazendo (ou deixando que façam) com meu corpo? Antes de saber o que era corpo eu já intuía que me faria muitas vezes essa pergunta. E quando me distraí dela a vida pareceu tomar o aspecto de um grande erro, erro no sentido mais nocivo do termo. Nada contra os erros, é com eles que se aprende ― diz-se amiúde. Mas alguns erros parecem padecer de uma estranha exterioridade, resistindo a serem assimilados pelo ego que perdoa. Nesses erros que gritam o corpo está falando, pedindo para ser ouvido. Não importa a escolha que se faça, cedo ou tarde ela chegará ao corpo. Este corpo que escreve, respira, faz compras, ama, odeia, vai à praia, cria. A única fortaleza que se possui.

Gates of Eden (Gandalf Murphy): interpretação magistral

hoje uma maçã amanheceu podre na fruteira

John Koerner, Garden of Eden series

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

W. H. Auden: "how wrong they are in being always right"


NOSSO PENDOR

A ampulheta sussurra ao rugido do leão.
Diz o relógio da torre ao jardim ali perto,
Que, sendo o Tempo paciente com os erros, quão
Errados eles estão de estarem sempre certos.

O Tempo, no entanto, quer badale grave ou alto,
Por veloz que se despenque em torrente raivosa,
Nunca de leão algum logrou deter o salto
Nem abalar jamais a firmeza de uma rosa.

Para ambos, só o sucesso importa, pelo jeito:
Enquanto escolhemos palavras pelo som
E julgamos um problema pelo seu desajeito.

O Tempo sempre nos traz divertimento, e bom:
Quem não prefere dar umas voltas, fazer hora,
Em vez de vir direto para onde está agora?

OUR BIAS

The hour-glass whispers to the lion's roar,
The clock-towers tell the gardens day and night
How many errors Time has patience for,
How wrong they are in being always right.

Yet Time, however loud its chimes or deep,
However fast its falling torrent flows,
Has never put the lion off his leap
Nor shaken the assurance of the rose.

For they, it seems, care only for success:
While we choose words according to their sound
And judge a problem by its awkwardness;

And Time with us was always popular.
When have we not preferred some going round
To going straight to where we are?

W. H. Auden. Poemas. Trad. José Paulo Paes. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p.92-93.

I Shall Be Released - Bob Dylan (cover by Paul Weller)

Endereço e convite com prazo sem fim de validade

Querida, estamos aqui na Rua.................. O telefone você já tem.  É fácil de chegar de metrô; só saltar na estação....................., sair no acesso que dá para a rua............ e seguir a calçada do comércio na direção do Centro.  O prédio fica na esquina ao fim do segundo quarteirão, em frente a uma agência bancária (do Bradesco ou outro, vermelho). É um prédio grande, que tem três frentes, uma para a rua.................., outra para a................  e outra para que rua não sei.  Ele tem um grande letreiro em cima, da LG.  Bem, estas indicações são bem femininas, segundo...............  As mulheres, dizia uma pesquisa que ele leu não sei em que revista, não trabalham com mapas, mas com referências concretas, sociais, para suas indicações de itinerário.  Todos esses detalhes são para você conseguir, quando quiser, chegar aqui.  Será muito bem-vinda.  Prometo um belo panorama da janela para fora. Quanto à conversa, janela para dentro, nós duas veremos que tempo está fazendo no dia, né?

Deixemos de brincadeira que eu vou trabalhar agora.  O convite é sério!

Espero que esteja tudo correndo bem.

Um beijo,

send me a key

"if you're going to send me something, send me a key ― i shall find the door to where it fits, if it takes me the rest of my life..." Bob Dylan.
[por Dylanesco no twitter]

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

o mar

Tenho frequentado o silêncio, por coisas que cabem mais ao silêncio expressar. Mas toda vez que penso no mar que me promete este espaço (mar que eu mesma me prometi), eu viajo longe, e a palavra literatura volta com toda a força que me transformou no que hoje razoavelmente me suponho, quando o silêncio era a música que mais se fazia ouvir. Quando penso no mar, na imagem do mar, eu vejo num relance os muitos momentos e movimentos que respondem por este aqui (espaço por excelência sem geografia), sem saber muito bem aonde este rumo vai levar. Porque o que eu menos sei é de mim, e por isso é grande a tentação de silenciar, enquanto, feito um ímã, palavras insistem em continuar a trafegar, vir à tona, não sei para que rumo ou mar. 

cordas da liberdade

Lendo isto, não pude deixar de pensar nas palavras com outro devotado carinho, as cordas que cada um possui, embora possa não se dar conta disso: "Por fim, com medo de perder o prazo para trocas, Bob levou para casa um violão barato, que acariciava como se fosse uma relíquia espanhola. Acompanhando as instruções, ele correu os dedos suavemente pelas seis cordas, apertando os dedos nas casas. Aquilo quase soava como música. Ele ficou horas sentado com o violão no colo, explorando e experimentando. Os dedos ficaram doloridos. O Manoloff’s Basic Spanish Guitar Manual deu algumas dicas. Mas os ouvidos e os dedos do rapaz logo tomaram a frente. Ele dominou uma posição atrás da outra. Identificou as escalas e descobriu a chave para os tons certos. Mandem-me uma chave ― eu encontrarei a porta onde ela se encaixa, nem que procure até o resto da vida.”

Robert Shelton. No direction home: a vida e a música de Bob Dylan. Trad. Gustavo Mesquita. São Paulo: Larousse, 2001, p.67. Aqui o comentário do Dylanesco sobre este trabalho monumental de Robert Shelton, perceptível já nas páginas iniciais. A fala destacada de Dylan é de 1966.

Alexei Bueno: livro de haicais

Pelos labirintos
Irei até perguntarem
Se eu estou perdido.

BUENO, Alexei. Livro de haicais. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p.212.

Quem perguntará?

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

ouro de tolo

É assim: numa visita casual à Livraria da Travessa (aquela filial linda e enorme do Barra Shopping), percebo, pelo menos, 15 títulos que deveriam vir comigo para casa hoje, right away ― entre eles alguns que já estão aqui, na fila da leitura, algo de que só me dava conta ao mirar o livro. Quase trouxe um, Lira dos vinte anos, em edição caprichada, e só não o fiz porque já havia passado antes na Fnac e comprado um livro em oferta imperdível (era pegar ou largar): Henry Miller, Nexus. Mas nada como uma livraria apinhada de livros tentadores para lembrar a qualquer um sua condição de mortal. 

Boris Pasternak: contra a fama

Ser famoso não é bonito.
Não nos torna mais criativos.
São dispensáveis os arquivos.
Um manuscrito é só um escrito.

O fim da arte é doar somente.
Não são os louros nem as loas.
Constrange a nós, pobres pessoas,
Estar na boca de toda a gente.

Cumpre viver sem impostura.
Viver até os últimos passos.
Aprender a amar os espaços
E a ouvir o som da voz futura.

Convém deixar brancos à beira
Não do papel, mas do destino,
E nesses vãos deixar inscritos
Capítulos da vida inteira.

Apagar-se no anonimato,
Ocultando nossa passagem
Pela vida, como à paisagem
Oculta a nuvem com recato.

Alguns seguirão, passo a passo,
As pegadas do teu passar,
Porém não deves separar
Teu sucesso de teu fracasso.

Não deves renunciar a um mín-
Imo pedaço do teu ser,
Só estar vivo e permanecer
Vivo, e viver até o fim.

CAMPOS, Augusto de. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006. p.103-104. O original russo não tem título.

Augusto de Campos - intradução: asa de akhmátova

Eu vivo como um cuco no relógio.
Não invejo os pássaros livres.
Se me dão corda, canto.

Só aos inimigos
Se deseja
Tanto.

CAMPOS, Augusto de. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006, p.99.

domingo, 14 de agosto de 2011

Wim Mertens: Often A Bird

Rubem Braga: O Mistério da Poesia

“Não sei o nome desse poeta, acho que boliviano; apenas lhe conheço o poema, ensinado por um amigo. E só guardei os primeiros versos: Trabajar era Bueno em el Sur... Cortar los árboles, hacer canoas de los troncos.
E tendo guardado esses dois versos tão simples, aqui me debruço ainda uma vez sobre o mistério da poesia.
O poema era grande, mas foram essas palavras que me emocionaram. Lembro-me delas às vezes, numa viagem; quando estou aborrecido, tenho notado que as murmuro para mim mesmo, de vez em quando, nesses momentos de tédio urbano. E elas produzem em mim uma espécie de consolo e de saudade não sei de quê.
Lembrei-me agora mesmo, no instante em que abria a máquina para trabalhar nessa coisa vã e cansativa que é fazer crônica.
De onde vem o efeito poético? É fácil dizer que vem do sentido dos versos; mas não apenas do sentido. Se ele dissesse: Era bueno trabajar en el Sur não creio que o poema pudesse me impressionar. Se no lugar de usar o infinitivo do verbo cortar e do verbo hacer usasse o passado, creio que isso enfraqueceria tudo. Penso no ritmo; ele sozinho não dá para explicar nada. Além disso, as palavras usadas são, rigorosamente, das mais banais da língua. Reparem que tudo está dito como os elementos mais simples: trabajarera bueno, Surcortarárboleshacer canoas, troncos.
Isso me lembra um dos maiores versos de Camões, todo ele também com as palavras mais corriqueiras de nossa língua:
"A grande dor das coisas que passaram."
Talvez o que mais me impressione seja mesmo isso: essa faculdade de dar um sentido solene e alto às palavras de todo dia. Nesse poema sul-americano a ideia da canoa é também motivo de emoção.
Não há coisa mais simples e primitiva que uma canoa feita de tronco de árvore; e acontece que muitas vezes a canoa é de grande beleza plástica. E de repente me ocorre que talvez esses versos me emocionem particularmente por causa de uma infância de beira-rio e de beira-mar. Mas não pode ser: o principal sentido dos versos é o do trabalho; um trabalho que era bom, não essa "necessidade aborrecida" de hoje. Desejo de fazer alguma coisa simples, honrada e bela, e imaginar que já se fez.
Fala-se muito em mistério poético; e não faltam poetas que procurem esse mistério enunciando coisas obscuras, o que dá margem a muito equívoco e muita bobagem. Se na verdade existe muita poesia e muita carga de emoção em certos versos sem um sentido claro, isso não quer dizer que, turvando um pouco as águas, elas fiquem profundas...
Fevereiro, 1949

Rubem Braga. 200 crônicas escolhidas. 29.ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.391-392.

Álvaro de Campos

Gostava de gostar de gostar.
Um momento... Dá-me de ali um cigarro,
Do maço em cima da mesa da cabeceira.
Continua... Dizias
Que no desenvolvimento da metafísica
De Kant a Hegel
Alguma coisa se perdeu.
Concordo em absoluto.
Estive realmente a ouvir.
Nondum amabam et amare amabam (Santo Agostinho).
Que coisa curiosa estas associações de ideias!
Estou fatigado de estar pensando em sentir outra coisa.
Obrigado. Deixe-me acender. Continua. Hegel...

PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. Ed. Teresa Rita Lopes. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007, p.374

baco e dionísio

vontade de virar 
esta taça de vinho
na cara do destino!

A Hard Rain's A Gonna Fall (Rhythms del Mundo Revival)


Dizer que esta música me encanta é pouco: com delicadeza, ela anuncia o apocalipse.