Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 24 de julho de 2010

"Não Sonho Mais": Chico Buarque (Paulinho Schoffen)



A canção foi composta em 1979 para o filme A República dos Assassinos, de Miguel Faria Jr. (comentário aqui). A música vira pelo avesso, no sonho do amante do policial corrupto, a violência que este pratica, voltando-a contra ele próprio. É o submundo da ditadura que emerge do sonho. 

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Abstrato

Abstrato, Antonio Bandeira, Óleo sobre tela, 1962
Fonte: Arte e Pintura Brasileira - Galeria Virtual de Arte

"Os Filmes Que Não Fiz": lírico, comovente, irônico, divertido...


[Gilberto Scarpa, Brasil, 2008. Ficha completa no Porta-Curtas]

Forma e Conteúdo

“Fala-se da dificuldade entre a forma e o conteúdo, em matéria de escrever; até se diz: o conteúdo é bom, mas a forma não, etc. Mas, por Deus, o problema é que não há de um lado um conteúdo, e de outro a forma. Assim seria fácil: seria como relatar através de uma forma o que já existisse livre, o conteúdo. Mas a luta entre a forma e o conteúdo está no próprio pensamento: o conteúdo luta por se formar. Pra falar a verdade, não se pode pensar num conteúdo sem sua forma. Só a intuição toca na verdade sem precisar nem de conteúdo nem de forma. A intuição é a funda reflexão inconsciente que prescinde de forma enquanto ela própria, antes de subir à tona, se trabalha. Parece-me que a forma já aparece quando o ser todo está com o conteúdo maduro, já que se quer dividir o pensar e o escrever em duas fases. A dificuldade de forma está no próprio constituir-se do conteúdo, no próprio pensar ou sentir, que não saberiam existir sem sua forma adequada e às vezes única.” (Clarice Lispector, A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 254-255).

"Catando a poesia / Que entornas no chão"

Dante Milano

Vazio

Este céu que me leva ao fim de tudo,
Eternidade vista num momento,
Olhar imenso de consolo mudo,
Aparência que lembra o esquecimento...

MILANO, Dante. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: Núcleo Editorial da UERJ, 1979, p. 47.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Uma Noite em 67

projeto 365

Informações sobre o Projeto 365 (aqui)

"Cais": show em comemoração aos 35 anos do Clube da Esquina


Cais
Milton Nascimento e Ronaldo Bastos  
  
Para quem quer se soltar 
Invento o cais 
Invento mais que a solidão me dá 
Invento lua nova a clarear 
Invento o amor 
E sei a dor de encontrar 

Eu queria ser feliz 
Invento o mar 
Invento em mim o sonhador 

Para quem quer me seguir 
Eu quero mais 
Tenho o caminho do que sempre quis 
E um saveiro pronto pra partir 
Invento o cais 
E sei a vez de me lançar  

segunda-feira, 19 de julho de 2010

"Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo"



"Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo", de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz (seguem algumas críticas do longa: Pipoca Moderna, Época, Fred Burle no Cinema), é um filme sobre a solidão humana. A viagem funciona como recurso de que dispõe o personagem, o geólogo José Renato, para fazer o trabalho de luto pelo fim de uma relação de amor, seu casamento com uma botânica que ele refere o tempo todo como "galega". Aos poucos, fica-se sabendo que a história acabou, e que a viagem é uma tentativa de elaborar o fim. A desolação da paisagem natural confunde-se com o abandono e o sofrimento do personagem. Isso fica claro nas falas sobre geologia: a referência às fissuras das rochas nunca é isenta de uma confluência com as fissuras que atravessam o personagem. Melhor dizendo: a insistência nas fissuras é signo de que, o tempo todo, o geólogo está falando de si, de seu sofrimento, de suas fraturas. No melhor estilo road movie, o personagem, entre a ficção e o documentário, vai ao encontro de outras histórias de desamparo e solidão, o que lhe permite redimensionar o sofrimento. A viagem sequer parece comportar um retorno, e talvez não haja mesmo qualquer possibilidade de retorno, quando o tempo entra como elemento da paisagem. À dada altura ele diz: "viajo porque preciso, não volto porque ainda te amo". O ponto culminante do filme, não da viagem, é uma verdadeira pérola que faz significar o tempo no contexto da viagem: uma placa no alto de uma espécie de torre, numa cidade prestes a desaparecer pela inundação de uma barragem a ser construída: "HOMENAGEM DO POVO DO SÉCULO XIX AO POVO DO SÉCULO XX". Impossível não rir da ironia que atravessa a singeleza de um gesto que, destinado a ser mais que o tempo, é também por ele devorado.

domingo, 18 de julho de 2010

Julio Cortázar

Trabalhos de escritório

Minha fiel secretária é das que tomam sua função ao pé da letra, e já se sabe que isso significa passar para o outro lado, invadir territórios, enfiar os cinco dedos no copo de leite para tirar um pobre cabelinho.
Minha fiel secretária se ocupa ou pretenderia ocupar-se de tudo em meu escritório. Passamos o dia travando uma cordial batalha de jurisdições, um intercâmbio sorridente de minas e contraminas, de saídas e retiradas, de prisões e resgates. Mas ela tem tempo para tudo, não só procura apropriar-se do escritório como cumpre escrupulosamente suas funções. Por exemplo, as palavras, não há dia que não as encere, as escove, as coloque na prateleira exata, as prepare e as enfeite para suas obrigações cotidianas. Se me vem à boca um adjetivo prescindível porque todos eles nascem fora da órbita de minha secretária ― e de certa maneira de mim mesmo ―, já está ela de lápis na mão agarrando-o e o matando sem lhe dar tempo de colocar-se ao restante da frase e sobreviver por descuido ou por hábito. Se eu deixasse, se neste mesmo instante eu deixasse, ela jogaria estas folhas na cesta, enfurecida. Está tão decidida a que eu viva uma vida condenada, que qualquer movimento imprevisto a leva a erguer-se, toda orelhas, toda rabo em pé, tremendo como um arame ao vento. Tenho que disfarçar, e a pretexto de que estou redigindo um relatório, encher algumas folhinhas de papel cor-de-rosa ou verde com as palavras que eu gosto, com as suas brincadeiras, os seus saltos e as suas brigas raivosas. Enquanto isso, minha fiel secretária arruma o escritório, aparentemente distraída mas pronta para dar o bote. Na metade de um verso que nascia tão contente, pobrezinho, eu a ouço começar seu horrível guincho de censura, e então meu lápis volta a galope às palavras proibidas, risca-as correndo, ordena a desordem, fixa, limpa, dá esplendor ― e o que sobra é provavelmente muito bom, mas essa tristeza, esse gosto de traição na língua, essa cara de chefe com sua secretária.

CORTÁZAR, Julio. Histórias de cronópios e de famas. Trad. Gloria Rodríguez. 12. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 47-48.