Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 23 de julho de 2011

Gates of Eden: Bob Dylan (performance inspirada)

[letra no site oficial]

histórias antigas

Não havia histórias de fadas na minha infância. Por isso cresci sedenta de histórias que pudessem dar sentido à minha infância sem fadas. 

Emily Dickinson: The Loneliness One dare not sound ―

A Solidão que Ninguém sonda ―
E o tamanho imagina
Enquanto põe o fio a prumo
Para a Cova medir ―

A Solidão que o maior medo
É de ver a si própria ―
E ante si própria destruir-se
Numa mirada só ―

Não o Horror de nos vigiarem ―
Mas no Escuro manter-nos ―
A consciência interceptada ―
E na Prisão o Ser ―

Sinto que a Solidão ― é isto ―
O Criador da alma
As Cavernas e os Corredores
Clarear ― ou lacrar ―


The Loneliness One dare not sound
And would as soon surmise
As in its Grave go plumbing
To ascertain the size


The Loneliness whose worst alarm
Is lest itself should see

And perish from before itself
For just a scrutiny


The Horror not to be surveyed

But skirted in the Dark

With Consciousness suspended

And Being under Lock


I fear me this
is Loneliness
The Maker of the soul
Its Caverns and its Corridors
Illuminate
or seal

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.158-159.

É sempre bom retornar à poesia insubmissa de Emily Dickinson

Ela se submeteu ― desfez-se
Dos Brinquedos de Moça
Para assumir o digno Encargo
De Mulher e de Esposa ―

Se algo perdeu seu novo Dia
De Encanto ou Plenitude
Ou Perspectivas, ou se o Ouro
Estragou-se com o uso ―

Não se falou ― como o Oceano
Faz a Pérola e as Algas
Só para Ele ― e a ninguém mostra
No Fundo a sua Casa ―


She rose to His Requirement ― dropt
The Playthings of Her Life
To take the honorable Work
Of Woman and of Wife ―

If ought She missed in Her new Day
Of Amplitude, or Awe ―
Or first Prospective ― Or the Gold
In using, wear away,

It lay unmentioned ― as the Sea
Develop Pearl, and Weed
But only to Himself ― be known
The Fathoms they abide ―

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.52-53.

ratos

Diz um funcionário a outro do supermercado, em tom de humor, enquanto repunham o estoque, arrumando prateleiras que novos consumidores, no dia seguinte, iriam bagunçar (já passava das dez da noite):
― Fui criado no esgoto. Vou lá ter medo de rato?
Falavam de questões relativas ao lugar onde moram, pelo visto difíceis. Como a enfatizar sua convicção, o rapaz repetiu a sentença que lhe dava súbita força: “Fui criado no esgoto”. Mais não ouvi, ia em direção ao caixa. Nunca imaginei um dia ouvir alguém se referindo a si nestes termos, não obstante ter frequentado certos becos e subsolos literários  necessário citar Graciliano Ramos e Luiz Ruffato? É preciso, aqui, tomar cuidado com o que se diz, há o risco de melindrar suscetibilidades muito aferradas ao texto literário: presenciar é diferente de ler, traz uma estranha confirmação. Alguma coisa sempre me deteve de avançar na leitura de Os ratos, de Dyonélio Machado (ou será que li e me esqueci?). O rapaz que proferiu esta frase pertence a uma nova categoria de pobreza, aquela que se imuniza (pelo antídoto dado pelo esgoto) contra os ratos. Enquanto isso, a propaganda oficial faz voo panorâmico sobre a cidade, maquiando-a às pressas para os mega eventos esportivos que irá abrigar em 2014 e 2016, a par do surto da vertiginosa valorização imobiliária. A imagem de união, limpeza e organização não resiste à explosão dos bueiros ― há coisas demais sendo abafadas pelo discurso ordeiro. 

Álvaro de Campos

Depus a máscara e vi-me ao espelho...
Era a criança de há quantos anos...
Não tinha mudado nada...

É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que fica,
A criança.

Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor.
Assim sou a máscara.

E volto à normalidade como a um términus de linha.

PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. Ed. Teresa Rita Lopes. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007, p.462.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

a matéria-prima de um verso

Tem se repetido: não consigo dormir sem escrever, sem passar por aqui e deixar algo da minha caligrafia. Recebi hoje a poesia completa de Álvaro de Campos, meu preferido na confusão (ou concerto) de vozes pessoana, à parte O banqueiro anarquista. Então, ocupando toda uma página, um único verso, sem título ou qualquer outra indicação, exceto o número que dá sequência aos poemas (42):

Vou atirar uma bomba ao destino.

O poeta não diz que quer atirar: diz que vai. E se o gesto de atirar a bomba estiver inscrito no destino? Não há, tal como se concebe tradicionalmente o destino, como não estar, de forma que Álvaro de Campos voou longe aqui, pilhando séculos de construção metafísica em torno da noção de destino, que é o que ele efetivamente tem sob mira. Ou seja, ele não está falando apenas de seu destino, está falando do destino, da construção que mistura superstição e intelecção para erigir uma das noções mais tirânicas de que se tem notícia, o grande procurador dos negócios humanos, no dizer de Machado de Assis. Atirar uma bomba ao destino: eu queria ter fôlego para alcançar a revolução proposta neste verso. 

Capítulo LXVI: das distorções e abusos

HA!MADNESS!

Birds / Sea (videoarte)

Videoarte segundo a Enciclopédia Itaú Cultural da Artes Visuais.

Anselm Kiefer, The Milky Way, 1985-87

[clique na imagem para ampliar]

Alejandra Pizarnik

Escribes poemas
porque necesitas
un lugar
en donde sea lo que no es

Alejandra Pizarnik. Poesía completa. Barcelona: Lumen, 2000, p.318.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Clarice Lispector: fios de seda

Enorme prazer em postar este texto de Clarice Lispector, "Fios de seda", verdadeira pérola de rara honestidade, dos que sabem que não há medo em arriscar-se pelas palavras, pois "as palavras não se podem evitar". É com fios muito delicados, de seda, que Clarice traduz, em duplo sentido, Henry James para seus leitores:

“Quase não li Henry James, que parece que é maravilhoso, segundo um amigo meu. Ele, Henry James, é hermético e claro. Citando Henry James estarei me tornando hermética para os meus leitores? Lamento muito. Eu tenho que dizer as coisas, e as coisas não são fáceis. Leiam e releiam a citação. Aí está ela, traduzida por mim do inglês:
“Que espécie de experiência é necessária, e onde ela começa e acaba? A experiência nunca é limitada e nunca é completa; é uma imensa sensibilidade, uma espécie de enorme teia de aranha, feita dos fios mais delicados de seda suspensos na câmara do consciente, e que apanha no seu tecido cada partícula trazida pelo ar. É a própria atmosfera da mente; e quando a mente é imaginativa ― muito mais quando se trata da de um homem de gênio ― ela apenha para si as mais leves sugestões, abriga os próprios pulsos do ar em revelações.”
Sem nem de longe ser de gênio, quantas revelações. Quantos pulsos apanhados no fino do ar. Os delicados fios suspensos na câmara do consciente. E no inconsciente a própria enorme aranha. Ah, a vida é maravilhosa com suas teias captantes.
Avisem-me se eu começar a me tornar eu mesma demais. É minha tendência. Mas sou objetiva também. Tanto que consigo tornar o subjetivo dos fios de aranha em palavras objetivas. Qualquer palavra, aliás, é objeto, é objetiva. Além do mais, fiquem certos, não é preciso ser inteligente: a aranha não é, e as palavras, as palavras não se podem evitar. Vocês estão entendendo? Nem precisam. Recebam apenas, como eu estou dando. Recebam-me com fios de seda.

Clarice Lispector. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.194.

Blue Morpho Butterfly, 1864-5, Martin Johnson Heade

Imagem obtida aqui.

sutilezas

Pensar sutilezas é assim: há qualquer coisa de opresso, desagradável, que se quer esquecer. A sutileza vem em forma de desconfiança: mas e se em algum ponto da vida, não importa quão remoto, o rumo tivesse sido outro? E se lá atrás houve certa captura pelo sentido, e essa captura produziu uma vida, esta vida? Como alguém chega a se tornar o que é, o que pensa ser? É dessas possibilidades remotas (outrora e devir) que as sutilezas são tecidas, coisas esvoaçantes em grande silêncio de escuta.

NO DIRECTION HOME: a vida e a música de Bob Dylan

Comecei a leitura do calhamaço que é a nova biografia de Bob Dylan, numa edição bem cuidada. Já de saída, um substantivo: dylantante. E o modo ácido de Bob Dylan se relacionar com a imprensa: “É muito difícil arrumar o cabelo desse jeito?”, perguntou um jornalista australiano. “Não, você só precisa dormir em cima dele por uns 20 anos.” (p.9) 

Idiot Wind: letra no site oficial

quarta-feira, 20 de julho de 2011

aos amigos (sem o possessivo)

Hoje (mas já quase deixando de ser, pelo avançado da hora) é dia do amigo. Ontem me encontrei com minha queridíssima Maria Fernanda, sem adjetivos que cheguem, e muita coisa conversamos no café da Travessa. A nenhuma de nós duas, durante toda a tarde e a conversa, ocorreu que o dia seguinte seria dedicado ao amigo. As efemérides atendem a coisas muito distintas da imagem que projetam, e por isso o dia do amigo não vende, não se transformou em anúncio de perfume, roupa ou celular. Amizade, arte, cinema, música, literatura, Clarice Lispector, minha paixão por Bob Dylan... muitas coisas tomaram corpo nas palavras com que íamos tecendo a tarde. No entanto, um dos primeiros temas da tarde, enquanto as esquinas do Centro iam mostrando suas possibilidades de um lugar para sentar sem muita agitação, foi o Clube da Esquina. Também falei deste espaço, do inusitado de me comunicar com pessoas que, em boa parte, não conheço pessoalmente, mas que despertam minha simpatia, algo que parece ser recíproco. Por seu turno, são poucos os amigos do mundo real que frequentam este meu outro lado, simplesmente porque não lhes parece dizer respeito, e está tudo bem que seja assim. Estão em outra vibe. Nas projeções da linguagem que este espaço faculta, novas vibes vão se produzindo. A tarde com a Maria Fernanda é insubstituível, porque a própria Maria Fernanda o é. Mas também não posso mais prescindir de escrever, esse ecoar da voz sem rumo certo. Então com a linguagem é possível entreter uma relação de amizade, que permeia as próprias relações. Fiquei particularmente sensibilizada ao revisitar, via sessão de análise e Clarice Lispector, a questão do simbólico. Foi tão forte que chorei na sessão e, na minha sensação de impotência, a analista percebeu a delicadeza de tudo e silenciou. Quando me encontrei com Maria Fernanda, a primeira coisa que disse é que havia chorado na sessão. Sem isso, esse poder falar, não haveria a leveza da tarde que se seguiu, o muito que coube no encontro. Os encontros e suas esquinas. As esquinas dos encontros. Nas esquinas, o encontro.

Arshile Gorky


Landscape, 1927-1928 (aqui e aqui). 

Arshile Gorky é uma das personagens centrais do filme Ararat, embora no filme ele não tenha necessariamente o estatuto corrente de personagem, já que o enredo espraia-se em muitas direções. Ararat é um filme difícil de transpor em palavras, a que se deve assistir com paciência. Como vulcões latentes e sofisticados, as personagens vão dando consistência à trama: ao fundo, além do monte Ararat, paira a obra de Arshile Gorky e sua figura atormentada.

William Carlos Williams: Seafarer

Vernon Lee Kerr, Convergence, 1970

NAVEGANTE

O mar virá escavar
mas as rochas ― arestas dentadas
a cavaleiro da toalha de espuma
ou uma corcova ou então pináculos
                      com mergulhões ―
são o homem pertinaz.

Ele provoca a tempestade, ele
vive por ela! repassado
de temores que não são temores
mas aguilhões de êxtase,
um álcool secreto, um fogo
que lhe inflama o sangue até
a frieza pelo que as rochas
mais parecem lançar-se
sobre o mar do que o mar
envolvê-las. Estiram-se
no esforço de agarrar navios
ou até o próprio céu que
se debruça para ser despedaçado
sobre elas. Ao que ele diz,
Sou eu! Eu é que sou as rochas!
Sem mim nada se ri.

SEAFARER

The sea will wash in
but the rocks ― jagged ribs
riding the cloth of foam
or a knob or pinnacles
  with gannets ―
are the stubborn man.

He invites the storm, he
lives by it! instinct
with fears that are not fears
but prickles of ecstacy,
a secret liquor, a fire
that inflames his blood to
coldness so that the rocks
seem rather to leap
at the sea than the sea
to envelope them. They strain
forward to grasp ships
or even the sky itself that
bends down to be torn
upon them. To which he says,
It is I! I who am the rocks!
Without me nothing laughs.

WILLIAMS, William Carlos. Poemas. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.180-181.

uma cena

A Arca de Fernando Pessoa

sea (música: Ottmar Liebert)

Ottmar Liebert: Snakecharmer (uma música para hoje)

[também aqui, em bela performance ao vivo]

terça-feira, 19 de julho de 2011

o concerto do mundo

Com quantos hojes se faz um blog? Uma vida? Hoje foi um dia em que seria bom des-existir, o que não é o mesmo que desistir, porque mesmo no desejo de desexistir há uma presença, uma insistência, alguém que deseja desinvestir um pouco a carga das certezas. Hoje todos os poemas de Alberto Caeiro me serviriam, porque estou cansada de pensar, tenho pensado demais, pensado sempre, pensado já como um vício adquirido. E nesse excesso de pensar uma vida se gasta. Um jeito de pensar menos ― esquecer. Isso, o des-existir. Porque há um concerto maior, enquanto o meu pensamento é tão mesquinho. Eu quero a arte que cura do pensamento. Des-existir na automação da existência para, quem sabe, conseguir um modo de existir. As crianças que brincam em mim trazem notícias remotas de que toda palavra guarda uma cilada. A partir de certo ponto qualquer um está se comprometendo com o que diz, no sentido de que é impossível recuar ao estado originário em que a linguagem era, era o quê? Era a suspeita, apenas, de que um dia eu poderia pertencer ao mundo, e o mundo me pertencer. Todo mundo foi à festa. A frase mais antiga de que me recordo ter lido, num jornal de embrulho. Todo mundo? Mas cabia todo mundo numa festa? ― perguntava-se então a criança incauta, mas já, na frase, indo à festa com todo mundo. Porque esta frase, desde então, eu tomei para mim: a festa do mundo eu não poderia perder. Não posso. 

Fernando Pessoa

...
Uma gaivota que passa,
E a minha ternura é maior.

Álvaro de Campos. Ode marítima. Fernando Pessoa. O eu profundo e outros eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d, p.224.

Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrado no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.

A recordação é uma traição à Natureza,
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.

Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!

Alberto Caeiro. O guardador de rebanhos. Fernando Pessoa. O eu profundo e outros eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d, p.161-162.

Lebenswege (curta baseado em "Ein Traum", de Franz Kafka)

Nada como os sonhos de uma noite para revelar a instabilidade do dia. E ainda há as gaivotas, a não deixar mentir a noite, enquanto o dia...

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Masters of War (Eddie Vedder and Mike McCready)

A interpretação de Eddie Vedder (Pearl Jam) para Masters of War, no concerto em celebração aos 30 anos de música de Bob Dylan (1992), é simplesmente magistral, o vozeirão e a presença de Eddie Vedder hipnotizando. Mas... vídeo bloqueado no youtube. 

Clarice Lispector: Menino a bico de pena (trecho)

"Enquanto isso ― lá está ele sentado no chão, de um real que tenho de chamar de vegetativo para poder entender. Trinta mil desses meninos sentados no chão, teriam eles a chance de construir um mundo outro, um que levasse em conta a memória da atualidade absoluta a que um dia já pertencemos? A união faria a força. Lá está ele sentado, iniciando tudo de novo mas para a própria proteção futura dele, sem nenhuma chance verdadeira de realmente iniciar.

Não sei como desenhar o menino. Sei que é impossível desenhá-lo a carvão, pois até o bico de pena mancha o papel para além da finíssima linha de extrema atualidade em que ele vive. Um dia o domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo. Pois assim fizemos conosco e com Deus. O próprio menino ajudará sua domesticação: ele é esforçado e coopera. Coopera sem saber que essa ajuda que lhe pedimos é para o seu auto-sacrifício. Ultimamente ele até tem treinado muito. E assim continuará progredindo até que, pouco a pouco ― pela bondade necessária com que nos salvamos ― ele passará do tempo atual ao tempo cotidiano, da meditação à expressão, da existência à vida. Fazendo o grande sacrifício de não ser louco. Eu não sou louco por solidariedade com os milhares de nós que, para construir o possível, também sacrificaram a verdade que seria uma loucura.

Clarice Lispector. Menino a bico de penaFelicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.136-137. Este conto encena ― na falta de verbo melhor ― com extrema delicadeza ― a bico de pena ― a passagem para o simbólico.

o real e o simbólico

Há imagens (ou seriam passagens?) da infância, antiquíssimas, que não se sabe se foram sonhadas ou imaginadas ou de fato vividas: encontram-se na vaga nebulosa do despertar para o mundo, aquela indefinição que configura a própria entrada no simbólico, para falar com a psicanálise. Mas a força delas é tal que podem decidir para sempre o que uma pessoa entende como amor, por exemplo. E sempre precisam de moldura.

Alexei Bueno

 A LUZ

Se nunca a um cego nato alguém falasse
As palavras cegueira, ou vista, ou cor,
E do mundo a feição falsificasse
De um modo em que normal fosse o negror,

E das artes do ser só lhe ensinasse
As que as trevas têm forças de compor,
De forma que o universo aparentasse
Ser lógico no escuro esmagador,

Este cego, educado em outra história
Sem pintores, sem astros e sem glória,
Forjada em mãos e sons, mesquinha, aqui,

Um dia, a colher ervas, preso à estrada,
Sentiria em seus olhos mais que o nada,
E o horror de algo que falta. Igual a ti.

BUENO, Alexei. As escadas da torre. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p.143-144.

morelliana: Cortázar

"Por que escrevo isto? Não tenho ideias claras, sequer tenho ideias. Há trapos, impulsos, bloqueios. E tudo procura uma forma, então entra em jogo o ritmo e eu escrevo dentro desse ritmo, escrevo por ele, movido por ele e não pelo que chamam de pensamento e que faz a prosa, a literatura ou outra coisa. Há primeiro uma situação confusa, que mal se pode definir pela palavra; é dessa penumbra que eu parto e, se aquilo que quero (se aquilo que quer dizer-se) tiver força suficiente, o swing começa imediatamente, um oscilar rítmico que me traz para a superfície, que ilumina tudo, que conjuga esta matéria confusa e o que a castiga numa terceira instância, clara e como que fatal: a frase, o parágrafo, a página, o capítulo, o livro. Esse oscilar, esse swing no qual se vai informando a matéria confusa, é a única certeza, para mim, da sua própria necessidade, pois, tão logo cessa, compreendo que já nada mais tenho para dizer. É também a única recompensa do meu trabalho: sentir que aquilo que escrevi é como o dorso de um gato sob a carícia, com fagulhas e um arquear cadencioso. Assim, ao escrever, desço ao vulcão, aproximo-me das Mães, entro em contato com o Centro, seja o que for. Escrever é desenhar o meu mandala e, ao mesmo tempo, guardá-lo para mim, inventar a purificação, purificando-se; tarefa que compete a um pobre xamã branco com meias de náilon.


CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. Trad. Fernando de Castro Ferro. 15 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.461. ¿Por qué escribo esto? No tengo ideas claras, ni siquiera tengo ideas.

domingo, 17 de julho de 2011

a título de P.S.

No post anterior, ao citar o texto de João César de Castro Rocha, percebi que o autor empregou sem qualquer constrangimento o termo favela. Hoje já não se daria mais assim: uma pátina deliberadamente conduzida pelo Estado introduziu o termo comunidade, o que só vem mostrar que João César estava certo, não totalmente certo, mas estava, ao chamar atenção para a dialética da marginalidade, num artigo, em diálogo com a dialética da malandragem de Antonio Candido, publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, em 29 de fevereiro de 2004, mesmo dia em que Cidade de Deus poderia trazer um Oscar inédito para o Brasil.

o mundo-enigma


Blindness, de Fernando Meirelles, segue de perto o livro de José Saramago. Contudo, ele é a radicalização metafórica do livro, já em si problemática, pois a multidão de cegos, no livro, potencializa o grotesco, não como monstruosidade, mas como contingência. No filme, Fernando Meirelles faz algo análogo ao que tinha feito em Cidade de Deus, conforme a análise de João César de Castro Rocha: na escolha do ponto de vista, teria ocorrido uma mudança drástica, e dificilmente inócua, do foco narrativo na transposição do romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, para as telas:

“Ora, qual o ponto de vista narrativo do filme Cidade de Deus? Em lugar de um narrador difuso e deliberadamente ambíguo, optou-se pela determinação do foco narrativo em primeira pessoa, atribuído ao adolescente Buscapé. No filme, ele parece ter dois problemas principais: perder a virgindade e deixar a favela graças a um possível emprego como fotógrafo. Essa extraordinária simplificação da personagem corresponde a um propósito duplo: tanto torna o horror da história mais palatável, por acrescentar uma dose de comédia, quanto associa o desejo do espectador de distanciar-se da realidade ao objetivo do rapaz de abandonar a Cidade de Deus. Ao mesmo tempo, no tocante à audiência internacional, a história da ‘primeira noite de um homem’ permite uma rápida associação com um clichê narrativo explorado à exaustão pelo cinema holywoodiano. Portanto, a escolha do foco narrativo é reveladora. A perspectiva de Buscapé estabelece uma série de mediações entre o espectador e as causas da violência: o ponto de vista do fotógrafo, a própria câmera; o desejo de Buscapé de escapar da verdadeira favela da Cidade de Deus. Esses vários filtros tornam a insuportável realidade da comunidade dominada pelo tráfico de drogas em material para um espetáculo dinâmico, inegavelmente divertido e muito bem feito. Assim, o voyeurismo de Buscapé, fotógrafo da própria comunidade, legitima nosso papel de voyeurs da miséria alheia. Se o foco narrativo do filme tivesse sido o de Zé Pequeno, o público teria louvado o filme Cidade de Deus? Como poderíamos, audiências de outras classes sociais, identificarmo-nos com o ponto de vista do criminoso ‘impiedoso’? A brutalidade sem mediações de Zé Pequeno relembra o ódio do ‘cobrador’, o personagem homônimo do conto merecidamente célebre de Rubem Fonseca." (AQUI)

No caso da transposição para o cinema do romance de Saramago, ocorreu um processo similar: apenas no final há a ilusão de uma voz narrativa em 3ª pessoa. Durante toda a epidemia o ponto de vista implícito, conspícuo e predominante é o da mulher que enxerga, portanto o da visão, o que atenua em parte o impacto do grotesco apresentado (e sublimado, diga-se). Tem-se uma visão sobre a cegueira, e não da cegueira, por mais paradoxal que isso possa soar. Com isso, o filme não consegue sair da metáfora (o que por seu turno é confortável), mas o espectador sai do cinema. Uma estudiosa já disse que a narrativa ficcional é “visão e cegueira”, sugerindo as limitações do ponto de vista da narrativa. No entanto, no plano metafórico, é de outra cegueira que se trata, muito provavelmente associada a questões de percepção, com muitas possibilidades a explorar. O filme Blindness coloca efetivamente os limites da percepção em foco? Não, porque o espectador confia na luz que está ali à mão, e que pode guiar. Nenhuma angústia, nenhuma possibilidade aberta em relação à opacidade do mundo.

um épico, sem dúvida, a mostrar a pequenez dos séculos

Ebstorf Mappamundi, 1236


ORIGEM E FORMAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA
Amini Boainain Hauy
 [Segismundo Spina. História da língua portuguesa. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2008, p. 22-33]

A origem e o desenvolvimento de tão diferentes e numerosas línguas no mundo são um problema tão complexo e discutido quanto o da gênese humana. É possível que a linguagem se tenha desenvolvido de forma independente em vários centros, ou, única, se tenha ramificado em evoluções divergentes, na história dos povos.
A monogênese linguística é, todavia, bíblica, e a ciência moderna ainda não renunciou à pretensão de descobrir se houve uma língua primitiva , da qual teriam derivado todas as línguas atuais. O fato é que, pela falta de documentos que permitam uma base sólida à indução pré-histórica, as doutrinas do poligenismo e do monogenismo, racial e linguístico, atravessam os tempos, deixando sempre respostas hipotéticas e divergentes.
Sabe-se, com certeza, que a língua portuguesa e os demais idiomas românicos são o resultado de uma lenta e conturbada transformação, através dos séculos, de uma outra língua, o latim, que por sua vez era transformação de outra, o indo-europeu, falado por um povo quase sem história, ao qual se convencionou chamar ariano ou ária.
Muitas são as hipóteses sobre o berço dos árias. Supõe-se, entre outras teses, que seu habitat era a região compreendida entre certa parte do centro da Europa e a leste, estendendo-se até o Turquestão e as estepes russo-siberianas. Em época muito remota (pelo menos de quinze a vinte mil anos antes de Cristo, na estimativa do geólogo Montélius), saíram desse território diferentes tribos, as quais, disseminando-se pela Europa, levaram consigo sua língua: o indo-europeu, também chamado indo-germânico ou ariano.
Nunca se conseguiu reconstruir este idioma, que não foi fixado pela escrita [...] embora não se tenha chegado a uma recomposição dessa língua primitiva, da qual provêm quase todas as atualmente faladas na Europa e Ásia, pesquisas realizadas no começo do século XIX pelo filólogo alemão Franz Bopp demonstraram, pelo método da gramática comparada, o parentesco linguístico das línguas indo-europeias e provaram [...] a existência do indo-europeu.
Nas sucessivas e seculares migrações do povo ariano, o indo-europeu, em contato com outros falares, fracionou-se em diversos ramos, como, por exemplo, o germânico, o itálico, o báltico, o eslavo, o celta, o albanês, o grego, o indo-irânico e o armênio (ao grupo germânico pertencem o inglês, o alemão, o sueco, o dinamarquês, o holandês, o islandês e o norueguês). Desses, o que mais interessa à história do português é o ramo itálico, ao qual pertencem, entre outros, o umbro, o latim e o osco, línguas respectivamente do Noroeste, do Centro e do Sul da Península Itálica. Provavelmente por volta do segundo milênio antes de Cristo é que começou a penetração ariana na Itália.
O latim era o língua dos latinos, povo de costumes simples e rudes que habitava o Lácio, região da Itália Central. Roma, fundada hipoteticamente em 753 a.C., a princípio não passava de uma simples cidadela; porém, dada a sua localização estratégica, não tardou a exercer uma suserania efetiva sobre algumas das cidades mais importantes, e os romanos, dotados de grande tino político e guerreiro, no século III a.C. já tinham dominado toda a Itália, com exceção do Vale do Pó, onde os gauleses permaneciam independentes.
Com o aumento crescente de poder, aumentava a ambição da conquista, e os exércitos romanos espalharam-se, durante séculos, por quase todo o mundo conhecido, numa ânsia desmedida de domínio, subjugando os povos e a todos impondo seus costumes e sua língua: o latim vulgar. De tal forma os povos conquistados assimilaram a influência do conquistador que, mais tarde, o que se denominou de “os romanos” foi, na verdade, o amálgama dos povos conquistados, romanizados. A todos os habitantes do Império foi concedida pelo imperador Caracala, no ano 212, a cidadania romana.
As conquistas romanas começaram em fins do século IV a.C. e continuaram até pouco depois do século I da Era Cristã. Roma, que vivera uma lendária monarquia e uma áurea república, tornou-se a capital do mundo e implantou, oficialmente, em 27 a.C., o Império.
Terminadas as conquistas, tal era a vastidão do Império, tantas as dificuldades de transporte e de locomoção e tantas as vicissitudes internas que o controle de Roma se distanciava cada vez mais de seus domínios e se enfraquecia nas mãos de um só imperador, muitas vezes inepto. Além disso, uma séria crise, iniciada a partir do século III, levou o sistema econômico, social e político do Império Romano a uma completa desintegração no século V. A diminuição da produção nos latifúndios, provocada pela escassez de mão-de-obra escrava, foi uma das várias causas dessa crise. A doutrina cristã, legalizada pelo imperador Constantino em 313, com a publicação do Édito de Milão, e transformada em religião oficial do Império em 391, quando o imperador Teodósio aboliu definitivamente o paganismo, proibia a escravidão. Além disso, desastrosas foram as pestes de origem asiática que assolaram a Europa nos séculos II e III.
Assim, à medida que o Império se enfraquecia, aumentavam suas dificuldades militares e cresciam, nas fronteiras, as investidas dos povos germânicos (bárbaros). A partir de meados do século III, a história cultural de Roma entrou também na Era do Obscurantismo.
Em 395, o imperador Teodósio, numa divisão mais administrativa do que política, dividiu o Império Romano em dois: o do Ocidente, com capital em Roma, e o do Oriente, que abrangia a Península Balcânica, a Ásia Menor, a Síria, a Palestina, o Norte da Mesopotâmia e o Nordeste da África, com capital em Constantinopla. Constantinopla (hoje Istambul), fundada em 330 pelo imperador Constantino, na antiga colônia grega de Bizâncio, tornou-se, por sua localização geográfica privilegiada e pela proteção das altas muralhas que a circundavam, a capital ideal numa época de convulsões militares.
O Império do Ocidente já estava, então, em plena decadência, esfacelado pelas invasões sucessivas dos bárbaros, quando em 476 caiu em mãos do bárbaro romanizado Odoacro, um alto oficial do exército romano, germano da tribo dos hérulos. Odoacro derrubou o último imperador do Ocidente (Rômulo Augústulo) e se fez proclamar rei da Itália, aliado do Imperador do Oriente. O Império parecia, então, reunificado, mas, na realidade, o Imperador mandava apenas no Oriente, pois, no Ocidente, reconhecidos como aliados, dominavam os bárbaros.
Depois da queda do Império Romano do Ocidente, as regiões se isolaram e cada uma teve um desenvolvimento peculiar; formaram-se, então, numerosos reinos bárbaros (franco, suevo, visigótico) que se desenvolveram durante toda a Idade Média e, a partir do século IX, transformaram-se, cada um com sua história e romanço, nos países europeus da Época Moderna.
O Império Romano do Oriente, entretanto, teve uma política mais de estabilização do que de expansão de domínio e, embora ameaçado desde o século VI pelas invasões eslavas, conseguiu sobreviver como unidade política até 1453, quando o Islamismo alcançou seus territórios e os turcos, com os poderosos canhões de Maomé II, destruíram as grossas muralhas que protegiam Constantinopla.
Formado já sob o prestígio da mais rica e bela civilização da Antiguidade, a civilização grega, o Império Romano do Oriente, embora inicialmente se tivesse submetido à administração romana, continuava profundamente helenizado e exercia grande influência sobre a civilização dos conquistadores romanos, sobretudo na língua. O próprio Cristianismo italiano, até o século II, usava a língua grega na liturgia.

É claro que a Grécia, que, no dizer de Horácio, de avassalada se tronou avassaladora, contribuiu mais que nenhuma outra das nações com que os Romanos se tinham posto em contato para esta tamanha revolução; a leitura de seus poetas inspirou naturalmente o desejo de imitação, e o conhecimento, cada vez mais difundido, do grego, foi um auxiliar valioso para o aperfeiçoamento da língua; de tal maneira aquele influiu nesta, que por fim o seu léxico, a sua versificação e sintaxe eram em grande parte gregos. [José Joaquim Nunes, Compêndio de Gramática Histórica Portuguesa, 7.ed, Lisboa, Clássica Ed., 1969, p.6.]

 A língua literária, no contato com civilizações mais adiantadas, como a grega, vicejou extraordinariamente na vasta e rica literatura latina, até que, com a invasão dos bárbaros, desaparecendo a nobreza, passou a ser cultivada apenas nos mosteiros. Como herdeiro do latim clássico, esse latim de Igreja, também chamado latim eclesiástico, medieval ou baixo latim, escrito gramaticalmente, mas eivado de palavras novas, tomadas das línguas faladas e da contribuição grega, foi o latim literário do declínio do Império do Ocidente e a língua oficial das ciências na Idade Média. Ao lado deste surgiu um latim sem regra, também misturado com o léxico de outras línguas, empregado pelos tabeliães; foi o latim bárbaro que os cartórios documentaram em contratos, testamentos, doações e outros escritos de ordem jurídica.
Enquanto a língua literária assim se transformava, o sermo vulgaris, levado pelos soldados e pela plebe às mais longínquas regiões do Império Romano, também se modificava. Das alterações desse rude latim falado resultaram, mais ou menos a partir de 600 da Era Cristã, os romanços (ou romances) medievais e, posteriormente, as línguas românicas ou neolatinas.
Como se explica que o latim vulgar, que, até o terceiro século da Era Cristã, conservara suas características fundamentais, se tenha diferenciado tanto, nas diversas regiões, a ponto de se transformar, a partir do século IX, nas línguas neolatinas: francês, italiano, espanhol, romeno, rético, dalmático, sardo, galego e português?
Vários fatores concorreram para essa ebulição linguística, para a dialetação românica, para o aparecimento das línguas neolatinas: o tempo, a política de dominação dos romanos, a vastíssima extensão geográfica do Império e sua fragmentação política e, principalmente, a ação do substrato e do superestrato.
Como língua falada, o latim vulgar evidentemente se transformou com o tempo; entre uma conquista e outra muitas vezes decorriam séculos, e a língua imposta nas diversas regiões se apresentava, com certeza, distinta. Assim, o latim levado para a Península Ibérica, por exemplo, em 197 a.C mais ou menos, deve ter sido mais arcaico que o levado para a Dácia em 107 d.C.
Além disso, dos povos que o latim encontrou nas regiões conquistadas, alguns eram de raças e civilizações diferentes, cada qual com sua expressão idiomática, e, apesar de seu triunfo sobre essas línguas pré-românicas, o latim sofreu, sobretudo na fonética e no léxico, influências que representam vestígios das línguas anteriormente faladas nas regiões latinizadas. Ao conjunto dos falares diversos dos povos vencidos e conquistados, cuja língua se infiltrou na do povo vencedor, dá-se o nome de substrato linguístico. Eis alguns povos cuja língua representou o substrato linguístico do latim: lígures, ilírios, etruscos, vênetos (na Península Itálica); celtas (na Bretanha); iberos, gregos, fenícios, cartagineses, celtas e bascos (na Península Ibérica); cartagineses (ou púnicos) (no Norte da África).
Na Lusitânia pré-romana foram os celtas o elemento de maior valor linguístico para a estruturação do português.
Vestígios dos celtas no léxico temos, por exemplo, os substantivos comuns: cavalo (< caballus), carro (< carrus), bico (< beccus), berço (< bertium), camisa (< camisia), saio, saia (< sagum), cabana (< cappana), cerveja (< cerevisia), légua (< leuca), vassalo (< vassalus), manteiga (< mantica), caminho (< caminum), gato (< cattus), lança (< lancea); os topônimos da Lusitânia: Coimbra (< Conimbriga), Bragança (< Brigantium), Évora (< Ebora), Lisboa (< Lisbona).
Metaplasmos provocados por influência celta foram: a sonorização de p-t-c: lupu- > lobo, aqua- > água, datu- > dado; a apócope da vogal, principalmente a vogal e depois de l, n e r nos substantivos: male > mal, bene > bem, mare > mar, fenômeno muito frequente na Idade Média, do qual há numerosos exemplos nas poesias trovadorescas; a palatização de l (> lh) e n (> nh) que precediam i, e ou a em hiato: vinea > vinha, filia > filha e a assibilação das consoantes d e t na mesma posição: audio > ouço, gratia > graça, pigritia > preguiça, hodie > hoje, invidia > inveja etc.
Assim, da fusão entre romanos e povos conquistados foram, então, surgindo pouco a pouco novos dialetos, diferenciando-se no tempo e no espaço por força do substrato e, posteriormente, do superestrato.
No estudo das influências linguísticas sofridas pelo latim, no processo da dialetação, considera-se o substrato como o elemento mais importante, especialmente pelo processo de adaptação imperfeita da base física da fonação materna ao novo idioma a ser aprendido.
Os superestratos exercem influência menos significativa, limitando-se, na generalidade dos casos, ao vocabulário.
Como fator de diferenciação linguística, o superestrato está ligado ao desmembramento do Império Romano e é representado pela língua dos invasores germânicos e árabes.
Invasões sucessivas fragmentaram o território e provocaram a ebulição linguística que vai determinar, a partir do século IX, a formação de diversos romanços. No século V, o Império foi invadido pelos povos germânicos (bárbaros), tribos nômades que ocupavam o Norte, o Centro e algumas partes do Sudeste da Europa; a partir dos séculos VI e VII, pelos eslavos, e no século VIII pelos árabes.
A penetração germânica já havia se iniciado antes do século V, mas tratava-se de uma penetração pacífica. Ao passarem a fronteira, a administração romana lhes dava terras, e eles se estabeleciam como colonos, ou incorporavam-se aos exércitos romanos. Muitos altos oficiais romanos do último período do Império eram de origem germânica.
Os visigodos, por exemplo, que inicialmente haviam invadido a Itália várias vezes, na Espanha combateram, como soldados romanos, outros bárbaros. Na Grécia estabeleceram-se como “federados” e em 425 adquiriram independência. Ao serem expulsos pelos francos em 507, os visigodos retiraram-se para a Espanha onde se mesclaram inteiramente com a população romana.
O motivo principal da penetração agressiva dos bárbaros na Europa foi a pressão dos hunos, povos orientais, originários da Mongólia, que chegaram à Europa em 375, desencadeando a migração dos povos germânicos para o sul e para o oeste.
Assim, no século V, o Império do Ocidente, abalado pelas invasões dos bárbaros germânicos e já enfraquecido, desde o século III, por uma grave crise no seu sistema político, social e econômico, sucumbe catastroficamente.
As migrações mais importantes das tribos germânicas foram as dos vândalos, alanos, visigodos, burgundos, alamanos, francos, longobardos, normandos ou viquingues, suevos e saxões.
Alguns desses povos foram rapidamente aniquilados, como os alanos e os brugundos; outros, como os vândalos, os francos, os suevos e os visigodos, estabeleceram-se e formaram reinos romanizados; e outros ainda, como os alamanos, não se romanizaram, mas, ao contrário, germanizaram, na Suíça do Norte, a província da Récia, que antes da conquista romana era céltica.
Piratas germânicos da tribo dos saxões investiram contra as costas da Gália e da província da Bretanha, hoje Grã-Bretanha.
Os longobardos, acossados pelo povo mongol, entraram na Itália, então bizantina, em 568. Durante dois séculos, fortemente romanizados, dominaram grande parte da Itália e deixaram traços muito importantes na língua e na civilização italianas.
Os vândalos, na África do Norte, formaram o Reino dos Vândalos, com capital em Cartago,  e em 455 saquearam Roma.
Os francos, que constituíram o reino mais poderoso da Europa Ocidental, tornaram-se, a partir do século VI, senhores do país que lhes tomou o nome – a França, que os romanos chamavam de Gália.
Os suevos fixaram-se na Galiza e em parte da Lusitânia e fundaram um reino mais tarde absorvido pelos visigodos. Foi nesse território ocupado pelos suevos que se procedeu a gestação do romanço galego-português.
Os visigodos submeteram todo o território da atual Espanha e fundaram um reino duradouro, cuja capital era Toledo. Caldeados inteiramente com a população romana, seu reino hispano-gótico e cristão já alimentava algo parecido com sentimento nacional. Após dois séculos, em 711, esse reino foi destruído pelos árabes; todavia, do nacionalismo cultivado pelos exércitos hispano-visigóticos nas montanhas das Astúrias eclodiu o movimento da Reconquista.
Quando a violência das invasões germânicas foi aos poucos decrescendo, os bárbaros passaram a romanizar-se: adotaram a cultura dos povos vencidos que lhes era superior, cristianizaram-se e assimilaram o latim vulgar. Contribuíram, porém, para acelerar a evolução da língua. Assim, encontram-se, no vocabulário português, vários termos de origem germânica: guerra, trégua, roubar, bando, banda, bandeira, baluarte, escaramuça, dardo, brandir, galopar, arauto, feudo, orgulho, rico, branco, franco, tacanho. O vocabulário germânico inundou o latim vulgar da Gália; o número de empréstimos do germânico para o francês é considerável: maréchal, robe, écharpe, guichet, bord, banc, bacon, danser, sauter, harpe, jardin, groseille, Nord, Sud, Est, Ouest, blanc, bleu, récompense, orgueil, gagner etc.
Com a invasão dos árabes, no século VIII, acentua-se a influência do superestrato no processo de dialetação românica. Mais de duas mil palavras de origem árabe estão no léxico do português; dentre elas: alface, algodão, arroz, açúcar, laranja, azeitona, azeite, cenoura, espinafre, girafa, javali, jarra, almofada, alfanje, arroba, quintal, quilate, alqueire, alfaiate, alcaide.
Os árabes, povo de origem semítica, cuja religião, o Islamismo, agredia os princípios da religião cristã, penetraram na Europa, apoderando-se do reino visigótico. [...] Foi rápida a conquista muçulmana, mas penosa e apaixonada a Reconquista. Refugiados nas montanhas das Astúrias (Montes Cantabros), os restos dos exércitos hispano-visigóticos e os cristãos rebeldes à invasão muçulmana fundaram ali, no Noroeste do país, o Reino das Astúrias e iniciaram, sob o comando de Pelágio, o movimento de Reconquista. Era uma guerra militar, santa, abençoada pelos papas. Avançando para o Sul, foram recuperando os territórios perdidos; assim se formaram os reinos cristãos de Leão, Aragão, Navarra e Castela.
Sete séculos durou a dominação dos muçulmanos na Península Ibérica (711-1492); Granada, o último reduto da resistência moura, foi recuperada em 1492, no reinado dos reis católicos da Espanha, Fernando e Isabel.
Da interpenetração da língua árabe e da língua popular de estrutura românica resultou o moçárabe, falado pela população cristã que viveu sob o jugo islamítico.
Além de representar um elemento significativo do superestrato linguístico, a invasão dos árabes desencadeou o fato histórico da formação de Portugal como Estado monárquico.
Vários nobres de diversas regiões participaram das lutas para expulsão dos invasores. Pelo sucesso das armas de D. Raimundo e de seu primo D. Henrique, conde de Borgonha, no movimento da Reconquista, D. Afonso VI, rei de Leão e Castela, deu em casamento, como prêmio, a D. Raimundo a filha legítima, Urraca, e a região da Galiza, e a D. Henrique a filha bastarda, Tareja, e um feudo, o Condado Portucalense, território desmembrado da Galiza, compreendido, a princípio, entre o Minho e o Douro e, a partir de 1095, entre o Minho e o Tejo.
Não só a língua desse território era a mesma da Galiza, com também foi imposto a D. Henrique administrar o Condado Portucalense sob a tutela de D. Raimundo, senhor da Galiza.
Com a morte de D. Henrique, a viúva assume o poder, mas seus amores com o conde de Trava, da Galiza, desencadearam o descontentamento do povo e de seu filho D. Afonso Henriques, que na Batalha de São Mamede (1128) tomou o poder e se fez proclamar rei. Em 1143, na Convenção de Zamora, Afonso VII, rei de Leão, lhe reconhece a realeza, solenemente ratificada em 1179 pelo papa Alexandre III.
Portugal tornou-se, assim, reino independente da Galiza. Ao mesmo tempo que se separava da Galiza, estendia-se para o Sul, anexando as regiões reconquistadas. D. Afonso Henriques e seus sucessores prosseguiram na luta contra os mouros, até que em 1250 D. Afonso III concluiu a conquista do Algarve, fixando, então, os limites de Portugal de hoje.
Delineado Portugal politicamente, a língua falada naquela faixa de terra continuou sendo o galego-português até o século XIV, quando fatores políticos, sociais e linguísticos determinaram a quebra da relativa unidade linguística galego-portuguesa [...].
A partir do século XIV, já com feição própria, distinta dos outros falares da região e com características que a distinguiam do galego, a língua portuguesa, levada pelas conquistas das epopeias marítimas a outras partes do mundo, continuou evoluindo, transformando-se sob a ação de inúmeros fatores e repetindo, através dos séculos, a sua história.
Assim é que, atravessando “mares nunca dantes navegados”, “penetraram tudo o que o Mar Oceano cerca e consigo levaram sua língua”.