Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Romance XXIV ou Da Bandeira da Inconfidência — Cecília Meireles

Através de grossas portas,
sentem-se luzes acesas,
— e há indagações minuciosas
dentro das casas fronteiras:
olhos colados aos vidros,
mulheres e homens à espreita,
caras disformes de insônia,
vigiando as ações alheias.
Pelas gretas das janelas,
pelas frestas das esteiras,
agudas setas atiram
a inveja e a maledicência.
Palavras conjeturadas
oscilam no ar de surpresas,
como peludas aranhas
na gosma das teias densas,
rápidas e envenenadas,
engenhosas, sorrateiras.

Atrás de portas fechadas,
à luz de velas acesas,
brilham fardas e casacas,
junto com batinas pretas.
E há finas mãos pensativas,
entre galões, sedas, rendas,
e há grossas mãos vigorosas,
de unhas fortes, duras veias,
e há mãos de púlpito e altares,
de Evangelhos, cruzes, bênçãos.
Uns são reinóis, uns, mazombos;
e pensam de mil maneiras;
mas citam Vergílio e Horácio,
e refletem, e argumentam,
falam de minas e impostos,
de lavras e de fazendas,
de ministros e rainhas
e das colônias inglesas.

Atrás de portas fechadas,
à luz de velas acesas,
uns sugerem, uns recusam,
uns ouvem, uns aconselham.
Se a derrama for lançada,
há levante, com certeza.
Corre-se por essas ruas?
Corta-se alguma cabeça?
Do cimo de alguma escada,
profere-se alguma arenga?
Que bandeira se desdobra?
Com que figura ou legenda?
Coisas da Maçonaria,
do Paganismo ou da Igreja?
A Santíssima Trindade?
Um gênio a quebrar algemas?

Atrás de portas fechadas,
à luz de velas acesas,
entre sigilo e espionagem,
acontece a Inconfidência.
E diz o Vigário ao Poeta:
"Escreva-me aquela letra
do versinho de Vergílio..."
E dá-lhe o papel e a pena.
E diz o Poeta ao Vigário,
com dramática prudência:
"Tenha meus dedos cortados
antes que tal verso escrevam..."
LIBERDADE, AINDA QUE TARDE,
ouve-se em redor da mesa.
E a bandeira já está viva,
e sobe, na noite imensa.
E os seus tristes inventores
já são réus — pois se atreveram
a falar em Liberdade
(que ninguém sabe o que seja).

Através de grossas portas,
sentem-se luzes acesas,
— e há indagações minuciosas
dentro das casas fronteiras.
 "Que estão fazendo, tão tarde?
Que escrevem, conversam, pensam?
Mostram livros proibidos?
Leem notícias nas Gazetas?
Terão recebido cartas
de potências estrangeiras?"
(Antiguidades de Nimes
em Vila Rica suspensas!
Cavalo de La Fayette
saltando vastas fronteiras!
Ó vitórias, festas, flores
das lutas da Independência!
Liberdade — essa palavra,
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!)

E a vizinhança não dorme:
murmura, imagina, inventa.
Não fica bandeira escrita,
mas fica escrita a sentença.

Cecília Meireles. Romanceiro da Inconfidência. 9.ed. São Paulo: Global, 2012, p.81-83.

Prime Of Life

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

os enganos do verbo enganar

Há vários dias venho querendo escrever sobre isso, os enganos do verbo enganar. Tudo porque um pensamento me ocorreu recentemente: não querer se enganar traz pressuposto um ego centralizador, que se toma como baliza e referência dos acontecimentos. Pensei isso de mim mesma, acerca de uma de minhas angústias circulares e recorrentes. É ridículo não querer se enganar, percebi então. O engano é inevitável, ainda que as cautelas e a aplicação da inteligência sejam intensas. A favor disso consta uma matéria superficial que li recentemente, que diz ser mito a ideia do uso de apenas dez por cento da capacidade do cérebro. Segundo a reportagem, nosso cérebro, ao contrário, vem sendo usado em sua potência máxima — daí as panes, os apagões, os surtos, os transtornos disso e daquilo. Fiquei tentada a conferir as várias acepções do verbo enganar no Houaiss. Emendei pelo atalho da forma pronominal, enganar-se, talvez na origem dos outros sentidos: ”ter impressão sensorial, percepção, julgamento, avaliação etc. que não corresponde à realidade; iludir(-se)”. Mas o que é a realidade, afinal, senão aquilo que nos dá os sentidos e a percepção? “Meus ouvidos enganaram-se” (ou enganaram-me?), “Minha percepção me enganou”, etc. Não obstante toda a luta para não enganar-se, persiste um fundo de incerteza que, pelo menos no âmbito das decisões pequenas e pessoais, faz da vida uma areia movediça. 

Liberdades – Luis Fernando Veríssimo

É livre quem pode fazer o que quiser — dentro das suas limitações de espaço, tempo, energia e recursos. Só se é livre dentro de certos limites. Portanto, toda liberdade é condicional.
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Só é totalmente livre quem pode exercer a sua vontade sem qualquer limitação moral ou material. Isto é: o tirano. Assim, a liberdade suprema só existe nas tiranias.
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Dizer que a minha liberdade termina onde começa a liberdade do outro é muito bonito. Mas e se a liberdade foi mal distribuída e o meu vizinho tem um latifúndio de liberdade enquanto a minha é um quintal de liberdade, liberdade mesmo que tadinha? Não é feio sugerir um reestudo da divisão.
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Cuidado com quem dá aos outros toda a liberdade. Geralmente é quem pode tirá-la.
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Há os que passam o dia inteiro livres e chegam em casa se queixando disso. São os motoristas de táxi. Toda liberdade é relativa.
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Toda liberdade é relativa. Verdade exemplarmente ilustrada por este diálogo entre o preso e o carcereiro.
— Nunca mais vou sair daqui.
— Calma. Não desanime.
— Não tem jeito. Estou aqui para sempre.
— Vou ver o que posso fazer por você.
— Não adianta. Estou condenado. Desta prisão eu não saio. Se esqueceram de mim.
— Eu não esquecerei. Voltarei para visitá-lo.
— Promete? — diz o carcereiro.
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Quem é livre às vezes não sabe. Quem não é livre sempre sabe. Ou será o contrário? A gente vê tanta gente inexplicavelmente feliz.
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Alguns são obcecados pela liberdade e prisioneiros da sua obsessão.
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Os loucos são livres e vivem presos por isso.
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Poderia se dizer que livre, livre mesmo, é quem decide de uma hora para outra que naquela noite quer jantar em Paris e pega um avião. Mas mesmo este depende de estar com o passaporte em dia e encontrar lugar na primeira classe. E nunca escapará da dura realidade de que só chegará em Paris para o almoço do dia seguinte. O planeta tem seus protocolos.
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Fala-se em liberdade como se ela fosse um absoluto. Mas dizer “eu quero ser livre” é o mesmo que dizer “eu quero” e não dizer o quê. Existe a Liberdade De e a Liberdade Para. Não é uma questão apenas de preposições e semântica. É a questão do mundo. O liberalismo clássico iconizou a Liberdade Para. Você é livre se tem liberdade para dizer o que pensa e fazer o que quer, para ir e vir e exercer o seu individualismo até o fim, ou até o limite da liberdade do outro. A ideia de que a verdadeira liberdade é a Liberdade De é recente. Livre de verdade é quem é livre da fome, da miséria, da injustiça, da liberdade predatória dos outros. A ideia é recente porque antes era inconcebível.
Ser livre do despotismo era automaticamente ser livre para o que se quisesse, para a vida e a procura individual do paraíso. Foi preciso uma virada no pensamento humano para concluir que Liberdade Para e Liberdade De não eram necessariamente a mesma liberdade e outra virada para concluir que eram antagônicas. A última virada é a decisão de que uma liberdade precisa morrer para que a outra viva. Não concorde com ela muito rapidamente.
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Enfim, de todos os crimes que se cometem em nome da liberdade, o pior é a retórica.
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Mas eu desconfio que a única pessoa livre, realmente livre, completamente livre, é a que não tem medo do ridículo.

VERISSIMO, Luis Fernando. Em algum lugar do paraíso. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p.181-185.