Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Manuel Bandeira

O MARTELO

As rodas rangem na curva dos trilhos
Inexoravelmente.
Mas eu salvei do meu naufrágio
Os elementos mais cotidianos.
O meu quarto resume o passado em todas as casas que habitei.
Dentro da noite
No cerne duro da cidade
Me sinto protegido.
Do jardim do convento
Vem o pio da coruja.
Doce como arrulho de pomba.
Sei que amanhã quando acordar
Ouvirei o martelo do ferreiro
Bater corajoso o seu cântico de certezas.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.168.

amizade

Não consigo escrever “abs” para abreviar “abraço” na despedida de e-mails. Não sei, mas é como se estivesse abreviando o afeto.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

entre a potência e a vertigem

Há um limiar da potência da vida, uma fronteira que causa vertigem. Ninguém é o que é gratuitamente. Entre a potência e a vertigem, negocia-se a paz possível, e muitas vezes o recuo cauteloso. Quando se tem o controle...
texto inspirado nesta imagem:

de fato

domingo, 18 de agosto de 2013

João Cabral de Melo Neto

O OVO PODRE

Por que a expressão do que não houve
não chega à força do ovo podre?

Há muitos podres pelo mundo,
muitos decerto mais imundos.

O podre do ovo está contido
para a maioria dos sentidos

e à vista não há diferença
entre sua saúde e sua doença.

Por que é que o ovo podre, então,
parece pesar mais na mão?

Será que pesa mais o real
quando em defunto, em pantanal?

MELO NETO, João Cabral. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.271.

música de fundo para o cotidiano (enquanto se está distraído fazendo outras coisas)