Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Manuel António Pina

A FERIDA

Real, real, porque me abandonaste?
E, no entanto, às vezes bem preciso
de entregar nas tuas mãos o meu espírito
e que, por um momento, baste

que seja feita a tua vontade
para tudo de novo ter sentido,
não digo a vida, mas ao menos o vivido,
nomes e coisas, livre arbítrio, causalidade.

Oh, juntar os pedaços de todos os livros
e desimaginar o mundo, descriá-lo,
amarrado ao mastro mais altivo
do passado. Mas onde encontrar um passado?

Manuel António Pina. Poesia, saudade da prosa: uma antologia pessoal. Lisboa, Assírio & Alvim, 2011, p.38. 

um som ondeante

quase

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Herberto Helder

O olhar é um pensamento.
Tudo assalta tudo, e eu sou a imagem de tudo.
O dia roda o dorso e mostra as queimaduras,
a luz cambaleia,
a beleza é ameaçadora.
― Não posso escrever mais alto.
Transmitem-se, interiores, as formas.

Herberto Helder. Ou o poema contínuo. São Paulo: A Girafa, 2006, p.520.

nos fios tensos... da pauta de metal... as andorinhas gritam... por falta de uma clave de sol... (cassiano ricardo)

poema original aqui

sangue latino

a força do vento: canção lindíssima na voz de lô borges

[canção de Rogério Freitas]

palco

Os sonhos são sempre uma mistura de coisas para as quais faltam adjetivos. Então estariam eles tocando nos substantivos, na própria coisa, colocando-a em sua nudez de essência, ou quem sabe mesmo de aparência? A nudez aparente das coisas. A aparência nua das.
Em sua aparência nua, as coisas desfilam misturadas nos sonhos, e alguns substantivos saltam do enredo confuso: por exemplo, plateia, porque havia um palco e eu estava nele. Desempenhando um papel ordinário, talvez. Mas porque distingui uma criatura igualmente ordinária na plateia? Por que aquela criatura na plateia, quem sabe até numa posição passiva diante de mim?
Parece impossível escapar ao adjetivo, quer dizer, ao julgamento. Mesmo a oposição palco x plateia encerra um juízo de valor. Quem julga, normalmente, é quem está na plateia, agora me ocorre. Mas o olhar era meu, já que era eu quem sonhava. Ou era sonhada e aquelas coisas e pessoas todas já chegavam traduzidas até mim? Pois havia mais gente comigo, no palco. Enquanto hierarquicamente o palco parece estar acima da plateia, essa hierarquia bem pode ser uma conclusão (ou confusão) minha, afinal o ponto de vista era o do palco, portanto meu. O palco de cada vida? Cada vida se supondo palco?
Eu vi passividade no ser que distingui na plateia. Mais do que passividade: certa nulidade. Um ser destituído de palco próprio? Existirá isso? Ou esta foi a forma retórica que encontrei para anular aquele ser? Sonhos são já uma tradução. Escrever sobre eles pressupõe uma outra camada de pátina, desviando-se daquela nudez que as imagens cruas dos sonhos permitem. Ou aquele ser era a ironia da plateia, o lado coadjuvante e barato do “grande” palco que projetei, desde cedo, para minha vida? Eu fiz isso, imaginei uma grande performance vida a fora? Pior para mim.
Este sonho está me perseguindo há dois dias, e a única forma de me livrar dele foi falando, quer dizer, escrevendo. Porque nas palavras encontro outra espécie de palco, cuja plateia é-me mais enigmática, e portanto mais interessante.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

...

poesia ―
busco-a nos livros
não a encontro na vida.
alcanço poucas camadas de meu ser
outras revolvem-se em sonho.
todas, porém, repousariam naquela
súbita
palavra 
que salva
e que só poderá ser encontrada num verso.

e. e. cummings em tradução de mário faustino

― Piedade para esse monstro atarefado, inumanidade

― não. O Progresso é doença confortável:
a vítima (morte e vida mantidas a uma distância conveniente)

brinca com a grandeza de sua pequeneza
― elétrons deificam uma lâmina de barbear
transformando-a em cadeiademontanha; lentes estendem
nãodesejo através de coleante ondequando
até que nãodesejo
se volta sobre si nãomesmo.
                                      Mundo de feito
não é mundo de nascido ― piedade para a pobre carne

e para as árvores, pobres estrelas e pedras, nunca para este
ótimo espécime de hipermágica

ultraonipotência. Nós médicos sabemos

que um doente está desenganado quando... escuta aqui:
tem um universo bom como o diabo aí do lado; vambora

FAUSTINO, Mário. Poesia completa e traduzida. Org. Benedito Nunes. São Paulo: Max Limonard, 1985, p.289. Poema original e versão de Augusto de Campos AQUI.

vento de maio (elis regina com participação especial de lô borges)

Murilo Mendes

FUTURA VISÃO

Apresentaram-me o livro da tua vida
Escrito por dentro e por fora:
Sou digno de romper os sete selos.
Logo na primeira página
Paro três anos em êxtase
Diante da tua fotografia.
A lua e o mar adormecem a meus pés.
Tudo o que evoco vai nascendo ao gritar teu nome
Berenice! Berenice!
E choro muito
Porque não existe ninguém digno de te olhar.

Alguém me segura à beira do abismo,
Contém minha impaciência e me desarma o braço:
Deverei assistir ao que se descreve no livro.
Terás que parir fisicamente e espiritualmente na desgraça,
Beberás o cálice da injúria e das abominações,
Vestida de púrpura serás sentada no trono da solidão.

Eu devoro o livro, que amarga minhas entranhas.
Glorificai-a! Glorificai-a!
Esta é a minha súplica de sempre.

O Princípio vem sobre as nuvens em fogo
E clama para mim e para todo o universo:
Tudo será perdoado aos que amaram muito.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.308. De “A poesia em pânico”.

o sol em ouro dourando mar e areia

barra da tijuca, 20/02/2012

cinzas

Hoje, no calendário cristão, é dia de cinzas, quarta-feira de cinzas. Da infância remota, a lembrança do ritual de colocar um pequeno sinal de cinzas na testa, retiradas diretamente do fogão a lenha. E ao me recordar disso simbolicamente o ritual se repete ― basta conhecer uma história para obter seu efeito, disse Walter Benjamin. O que tenho aqui comigo não se confunde com as cinzas da infância, ou do tempo ― tenho a chama viva que me dá as cinzas de que preciso hoje.

PS. Em seu estudo sobre Walter Benjamin, Susana Lages transcreve a seguinte história, narrada por Gershom Scholem, como ele a teria ouvido de um outro escritor:

“Quando o Baal Schem tinha uma tarefa difícil à sua frente, ia a um certo lugar no bosque, fazia um fogo e meditava uma prece ― e o que decidia realizar era feito. Quando, uma geração depois, o Maguid de Mesritsch se deparava com a mesma tarefa, ia ao mesmo lugar no bosque e dizia: ‘Não sabemos mais acender o fogo, mas sabemos ainda proferir as preces’ ― e aquilo tudo se tornava realidade. Passada mais uma geração, o Rabi Moshé Leid de Sassov precisou executar a tarefa. Também foi ao bosque e disse: ‘Não sabemos mais acender o fogo, nem sabemos mais as meditações secretas pertencentes à prece, mas conhecemos o local no bosque a que tudo isso diz respeito – e deve ser suficiente’; e era suficiente. Mas passada outra geração, quando Rabi Israel de Rijin foi chamada a executar a tarefa, sentou-se em sua poltrona dourada, no palácio, e disse: ‘Não sabemos acender o fogo, não sabemos dizer as preces, não conhecemos o local, mas podemos contar a estória de como isto foi feito’. E o narrador acrescenta: ‘A estória que ele contou teve o mesmo efeito das ações dos outros três’. [LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002, p. 129]

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

amor

Escreve o poeta: “Tudo será perdoado aos que amaram muito.” De que qualidade de amor ele fala?

Murilo Mendes

COMEÇO

Uma vasta mão me sacudirá na manhã pura.
Talvez eu nasça naquele momento,
Eu que venho morrendo desde a criação do mundo,
Eu que trago fortíssimo comigo
O pecado de nossos primeiros pais.

O espaço e o tempo
Hão de se desfazer no vestido da Grande noiva branca.
Serei finalmente decifrado, o estrangeiro da vida
Descansará pela primeira vez no universo familiar.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.309-310.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

e. e. cummings

piedade desse monstro em ação,humanimaldade?  

não. O progresso é uma doença confortável:
tua vítima(morte e vida a salvo à pane)

brinca com a grandeza de sua pequeneza
— elétrons deificam uma gilete
em macroescala;lentes estendem

nãodesejo por ondeante ondequando até que ele
retorne ao seu nãoeu.
                               Mundo de haver
não é mundo de ser—piedade desta pobre

carne e árvores, pobres pedras e estrelas, mas nunca
desse ótimo espécime de hipermágica

ultraonipotência. Nós médicos sabemos

que um caso é sem remédio quando—olhe:tem uma puta
de uma vida boa paca aí do lado;vamos lá


pity this busy monster,manunkind,

not. Progress is a comfortable disease:
your victim(death and life safely beyond)

plays with the bigness of his littleness
— electrons deify one razorblade
into a mountainrange;lenses extend

unwish through curving wherewhen till unwish
returns on its unself.
                             A world of made
is not a world of born—pity poor flesh

and trees,poor stars and stones,but never this
fine specimen of hypermagical

ultraomnipotence.  We doctors know
a hopeless case if—listen:there's a hell
of a good universe next door;let's go

e. e. cummings. Poem(a)s. 2.ed. Trad. Augusto de Campos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.