Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 19 de junho de 2010

Saramago

Morreu ontem, aos 87 anos de idade, o escritor português José Saramago. Recebi a notícia na escola, e foi inevitável que os colegas comentassem - sobre a perda e sobre a obra que ele deixou. Então uma colega falou uma coisa muito interessante, sobre o livro "Ensaio sobre a cegueira", que deu origem ao filme do Meirelles (Blindness, 2008 - trailer aqui). A cegueira branca - que vai progressivamente acometendo todos - não se dá pela falta, mas pelo excesso - excesso de luz, de informação, de conhecimento, de forma que aquilo que é próprio do ser humano está escapando, não consegue mais ser discernido, alcançado. O excesso fazendo-nos perder a nossa própria especificidade, perdermo-nos de nós mesmos. Então um escritor que conseguiu, com sua obra, deixar o mundo menos cego é memorável. Mais memorável para nós é o fato de que ele pertence à Língua Portuguesa. 

terça-feira, 15 de junho de 2010

texto do corpo / corpo do texto

Escrever um texto no corpo, no corpo do texto, inscrever o corpo no texto - o corpo como um texto, que se escreve e reescreve - suas histórias, marcas e cicatrizes (seu contexto), nem sempre visíveis ou facilmente delineáveis - as externas nem por isso mais óbvias. O corpo é um texto, que não se escreve sozinho. 

Iberê Camargo, Figura, 1965

"Negro Amor" (versão para "It's All Over Now, Baby Blue")

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Simon & Garfunkel

Através do post de um amigo, sobre um curta belíssimo de Walter Salles, "Socorro Nobre" (link do post aqui), reencontrei-me com Simon & Garfunkel, cujas músicas ouvia já nem sei mais em que estação de rádio - ou da vida -, perdidas que estavam em alguma estação da memória. Mas a cena em que toca a música "The Boxer" no filme é mais do que linda - tem um impacto terrível sobre quem está assistindo (seguem as duas partes do curta, disponíveis no youtube: Primeira Parte, Segunda Parte). E de repente uma música esquecida invade  o domingo, no mesmo movimento que transporta para um tempo vago e indefinido - mas quando foi mesmo...? A vida vai passando, as estações se sucedendo, mas ao contrário do cruento narrador machadiano que nos reduz a simples "erratas pensantes", cada edição da vida corrigindo a anterior, até a definitiva, que o editor dá de graça aos vermes, há uma espécie de redenção em viver e tentar trilhar passos justos. A súbita emoção trazida por uma música conhecida (mas esquecida) sendo cantarolada por uma presidiária que tem entre suas poucas distrações ouvir rádio. Meu Deus, que porrada! Aí a gente se dá conta que de alguma maneira é livre. Pelo menos para fazer algumas escolhas. As escolhas - são sempre elas: aquela encruzilhada, naquela curva da vida, em que se tinha aquela cabeça, quando... enfim. Em nenhum momento o olhar de Walter Salles julga - ele fala do sonho, do desejo humano de liberdade e da plenitude. As estações se sucedem, infelizmente mais implacáveis, duras e difíceis para uns que para outros. Por que se fez certas escolhas? Nem sempre é possível responder a isso. Mas é possível trabalhar a partir das escolhas feitas, e muitas vezes a sorte está soprando a nosso favor. A contrapelo, mas está. As escolhas, a sucessão da vida, o momento seguinte modificando o anterior, por sua vez lido de outra forma, deflagrando novas possibilidades de escolhas... 

domingo, 13 de junho de 2010

Um poema de Paulo Henriques Britto

De manhã

O hábito de estar aqui agora
aos poucos substitui a compulsão
de ser o tempo todo alguém ou algo.

Um belo dia – por algum motivo
é sempre dia claro nesses casos –
você abre a janela, ou abre um pote

de pêssegos em calda, ou mesmo um livro
que nunca há de ser lido até o fim
e então a ideia irrompe, clara e nítida:

É necessário? Não. Será possível?
De modo algum. Ao menos dá prazer?
Será prazer essa exigência cega

a latejar na mente o tempo todo?
Então por quê?
E neste exato instante
você por fim entende, e refestela-se
a valer nessa poltrona, a mais cômoda
da casa, e pensa sem rancor:
Perdi o dia, mas ganhei o mundo.

(Mesmo que seja por trinta segundos.)

BRITTO, Paulo Henriques. Macau. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 72-73.

Paulo Leminski


Bem no fundo

no fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela – silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas

LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.