Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 19 de março de 2013

contida

O que mais me desagrada em mim, quando olho para trás, é o excesso das emoções.

náusea

Desci para comprar uns complementos para o almoço, cheia de disposição para preparar meu alimento (em vez de sair e comer fora). Mas, já na saída, deparo-me com o amor contrariado, negado, interditado. Ao chegar ao mercado, a fila estava grande, e deduzi que pelo horário todos haviam ido lá no mesmo intento. Foi então que a náusea foi vindo, fazendo-se perceptível aos poucos, náusea da própria humanidade em suas entranhas e de fazer parte delas, dessas entranhas, e a imagem do amor interditado acentuando tudo, a náusea, o sentimento de asco, de nojo, de recusa. Impossível almoçar depois disso. As palavras que poderiam me salvar também estão interditadas, e então eu entro batendo o portão com alarde, impotente diante da vida.

Orides Fontela

MIGRAÇÃO

Do leste vieram pássaros
rápidos leves
nem sombra nem rastro
deixam:
apenas passam. Não pousam.

FONTELA, Orides. Poesia reunida. São Paulo: Cosac Naify: Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.187.

lawrence

da cena final de O Céu de Suely

segunda-feira, 18 de março de 2013

teatro dos vampiros

Sonhos, sonhos, sonhos... Imagens noturnas que, à moda de teatro, encenam conflitos ― melhor seria dizer contradições ― que a epiderme da consciência mal suporta. Se os conflitos se deixam elaborar pelos sonhos é incógnita. Conseguir externá-los em imagens que sobrevivem ao esquecimento do sono é, no entanto, saber que as contradições não são meros fantasmas: elas agitam o corpo enquanto fazem de cenário a alma.

Fernando Pessoa

As formigas do ardor
Mato-as sem regas nem pós,
E não sei o que é pior ―
Se ter por alguém amor
Ou alguém tê-lo por nós.

Fernando Pessoa. Poesia 1918-1930. São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p.403-404.