Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 14 de janeiro de 2012

"Você passa, eu acho graça" (Cássia Eller e Noite Ilustrada)

Dora Ferreira da Silva (após uma reunião de amigos: garça ― graça)

GARÇAS

Flores aparentes
que no azul deslizam
poemas de plumas intocáveis.

De que matéria ― ó dúcteis ―
esse perfil pousado em forma
subitamente imóvel?

Uno alvo graça e vida
nos alagados que vos refletem.
Brilham olhos contemplativos.

Oscila o campo verde
e as pálpebras se fecham para o voo
da brancura que a ninguém pertence.

Dora Ferreira da Silva. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p.351-352.

monotonia

O que em mim soa como previsível reconhece facilmente a previsibilidade humana. Como seria bom conseguir me surpreender ― algum gesto inesperado, uma vontade mais firme que a minha, enfim, alguma coisa que contrariasse junto aos meus olhos aquilo que todo dia eles tediosamente confirmam.

mas... a bolha de hubble

“Nosso universo é, provavelmente, muito maior que a parte que podemos observar, a nossa ‘bolha de Hubble’. Se ele é infinito em tamanho, então muitas bolhas de Hubble infinitamente separadas (centradas em observadores em galáxias remotas) devem existir. Algumas podem ser idênticas à nossa, com outro ‘você’ lendo este mesmo artigo.”

“A busca pela vida na estranheza do multiverso.” Scientific American Brasil, n.41, p.47. Edição especial cosmologia.

o homem não perde a mania do antropocentrismo

“Parece plausível que vida inteligente (se não for muito diferente de nós) requer alguma forma de química orgânica que é, por definição, a química que envolve o carbono.”

“A busca pela vida na estranheza do multiverso.” Scientific American Brasil, n.41, p.48. Edição especial cosmologia.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Álvaro de Campos: "Vem-nos tudo de fora, como a chuva"

Meu pobre amigo, não tenho compaixão para te dar.
A compaixão custa, sobretudo sincera, e em dias de chuva.
Quero dizer: custa sentir em dias de chuva.
Sintamos a chuva e deixemos a psicologia para outra espécie de céu.

Com que então problema sexual?
Mas isso depois dos quinze anos é uma indecência.
Preocupação com o sexo oposto (suponhamos) e a sua psicologia ―
Mas isso é estúpido, filho.
O sexo oposto existe para ser procurado e não para ser compreendido.
O problema existe para estar resolvido e não para preocupar.
Compreender é ser impotente.
E você devia revelar-se menos.
“La Colère de Sanson”, conhece?
“La femme, enfant malade et douze fois impure!”
Mas não é nada disso.
Não me mace, nem me obrigue a ter pena!
Olhe: tudo é literatura.
Vem-nos tudo de fora, como a chuva.
A maneira? Se nós somos páginas aplicadas de romances?
Traduções, meu filho.
Você sabe porque está tão triste? É por causa de Platão,
Que você nunca leu.
E um soneto de Petrarca, que você desconhece, sobrou-lhe errado,
E assim é a vida.
Arregace as mangas da camisa civilizada
E cave terras exactas!
Mais vale isso que ter a alma dos outros.
Não somos senão fantasmas de fantasmas,
E a paisagem hoje ajuda muito pouco.
Tudo é geograficamente exterior.
A chuva cai por uma lei natural
E a humanidade ama porque ama falar no amor.


PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. Ed. Teresa Rita Lopes. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007, p.375-376.

de um poema de Álvaro de Campos

Dá-me rosas, lírios / E vinho também.

canções antigas



quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

transcending bullets (animação)

um pequeno milagre

Hoje, já praticamente de férias, e sem nada marcado que me obrigasse a sair de casa, voltei para a cama pela manhã e, para minha surpresa, simplesmente dormi até quase meio dia, ainda que a rua estivesse ruidosa. Surpresa porque eu nunca consigo dormir pela manhã ― acordo cedo, como quem tem um galo interior que obriga a despertar sempre no mesmo horário, e dificilmente consigo voltar a dormir. Costume antigo, herdado da roça e da criação rígida. Hoje o dia estava diferente, e eu dormi um sono merecido, um descanso que é, sobretudo, do corpo. No final da tarde, a velha e boa sessão de análise. Relatei o ocorrido, e o inusitado sonho que tive durante o sono extemporâneo. Um pouco entendi do sonho. Muito do que disse na sessão girou em torno de outras questões, questões difíceis, para concluir que uma parte expressiva da vida me(nos) escapa. Meu corpo está pedindo trégua ― qualquer excesso me cansa, e o que chamo de excesso teve seu limiar reduzido nos últimos tempos. O corpo é o campo de batalhas onde os embates da vida acontecem. Felizmente posso escrever isso ― ajuda a descansar.

milk and honey

Mui bela esta canção. Aqui numa versão exibida no cinema.

canção do exílio

Minha terra tem poemas
onde canta o infortúnio.
Os dados do progresso
aqui fazem solo soturno.

le cinquième jour (animação)

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

após ler um texto de cosmologia

(A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A verdade é irreconhecível. Portanto não existe? Não, para os homens não existe.)

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela, Rio de Janeiro, Rocco, 1998, p.80.

mas

Eu queria poder escrever (se é que posso) prescindindo do mas (e correlatos). Há muito penso nisso, como uma ideia que borboleteia e vai embora. Quer se trate da coordenada adversativa, quer se trate da subordinada concessiva, é sempre o mesmo esteio, em que se toma pela mão o argumento secundário para em seguida dá-la ao que de fato interessa.  O argumento é colocado num patamar de certa relevância para em seguida ser abandonado. Ocorre que todas as vezes que tentei dizer alguma coisa sem o mas não consegui. É como se fosse um mecanismo de pensar longamente assimilado. Por exemplo, tenho vontade de dizer que a chuva que agora cai me passa uma sensação de profunda paz, mas não posso dizer isso sem pensar no que a chuva representa todos os anos, em especial nesta época do ano, nos lugares em que ela faz estragos, causa danos, pelos motivos que todos já conhecem. Não posso apreciar a chuva que cai inocentemente (o advérbio aqui modificando potencialmente dois verbos deste enunciado), e este é o mas que atravanca a beleza desta chuva que afinal só está fazendo seu papel de água em movimento na natureza. Que o homem tenha distorcido os ciclos naturais, de nada disso a água sabe. A água, que agora cai com força, não tem contradição.

teoria

a língua universal

imagem daqui

“Nesse imenso, desconjuntado, sonoro, truncado, melodioso e desafinado, infinito diálogo da humanidade com a humanidade, saltando séculos e milênios, voltando, se esquecendo, ziguezagueando, se interpolando nessa gigantesca malha universal, a língua é uma só: a tradução. É ela a língua, o pluribus unum integrando tempo e espaço. E antes dela o próprio verbo, ao se fazer, já se fez traduzido e se traduzindo.

Denise Bottmann em não gosto de plágio.

o dilema ético

Dogville não pode ser a solução do problema. Se a fragilidade, irrevogavelmente, sempre vai escravizar um ser a outro, então seria melhor ter permanecido nas savanas. O frágil não existiria, seria apenas o mais fraco, como sói acontecer na natureza:

"Por que escolhi a delicadeza como parte essencial da condição humana? Por não ser uma qualidade intrínseca do humano. Isso é justamente o que a faz necessária. A delicadeza não é causa de nossa humanidade, é efeito dela. Não é meio, é finalidade. O homem não é necessariamente delicado ― daí a urgência de se preservar, na vida social, as condições para a vigência de alguma delicadeza. Erramos ao chamar os atos que nos repugnam de desumanos. O homem, não o animal, usa de violência contra seu semelhante. O homem inventou o prazer da crueldade: o animal só mata para sobreviver. O homem destrói o que ama ― pessoas, coisas, lugares, lembranças. Se perguntarem a um homem por que razão ele se permitiu abusar de seu semelhante indefeso, ele dirá: eu fiz porque nada me impediu de fazer. O abuso da força  é um gozo ao qual poucos renunciam. Além disso, o homem é capaz de indiferença, essa forma silenciosa e obscena de brutalidade. O homem atropela o que é mais frágil que ele ― por pressa, avidez, sofreguidão, rivalidade ―, sem perceber que com isso atropela também a si mesmo.”

KEHL, Maria Rita. Delicadeza. In: NOVAES, Adauto (Org.). A condição humana: as aventuras do homem em tempos de mutações. Rio de Janeiro: Agir; São Paulo: Edições SESC, 2009, p. 453.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

ingenuidade

A ingenuidade é a experiência da cegueira existencial. Há sempre um momento-lobo espreitando a distração do cordeiro. Ocorre que não é possível viver em atenção constante, viver imaginando todas as variáveis possíveis de uma situação, até porque as situações costumam sobrepor-se, e as variáveis imbricar-se, sofrendo imprevistas deformações. Alguém atulhado de informações sobre o mundo será menos ingênuo?

Jorge de Lima: Invenção de Orfeu

[Canto Primeiro, Fundação da Ilha, XXXIII]

Tu queres ilha: despe-te das coisas,
das excrescências, tira de teus olhos
as vidraças e os véus, sapatos de
teus pés, e roupas, calos, botões e

também as faces que se colam à
tua, e os braços alheios que te abraçam
e os pés que querem ir por ti, e as moças
que querem te esposar, e os ais (não ouças!)

que querem te carpir, e os cantos que
querem te consolar, e tantos guias
que querem te perder, e as ventanias

que não dormem, que batem alta noite,
tristes, em tua porta, se ressonas
pois nem o vento, nada te abandona.

LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. São Paulo: Ediouro, s/d, p.43.

little fable (animação): baseado em conto homônimo de franz kafka

undone (animação)

domingo, 8 de janeiro de 2012

amor à vida

Tanto por dizer ― e fica-se no mesmo filme da conveniência, das convenções. O que uma pessoa diz à outra? Fora “como vai?” ― perguntou em uma de suas crônicas Clarice Lispector. Mas é necessário dizer, não se escapa das palavras, palavras que atendam o chamado do lado desperto da alma, e que se oculta sob camadas de convenções. Revolver esse entulho e daí extrair as palavras que interessam (a quem possa interessar), as palavras que fazem o ar circular melhor pelas células do organismo. Na escrita distingo o que só poderia chamar de sagrado. Mas as palavras não são inocentes. 

feminino?

Como em todos os processos cujo cerne se desenrola no momento presente, é difícil às mulheres perceber o grau potencial da transformação que estão vivendo. Se é que elas querem efetivamente essa transformação, já que tudo pode não ter passado de um mal-entendido forjado por novas configurações do capitalismo, que subjazem a outros processos históricos de mesma monta, como a substituição do trabalho escravo pelo assalariado. Nada mais misógino que a publicidade atual, mola propulsora de tudo o mais.

eu sempre soube

Quando li Infância, de Graciliano Ramos, detive-me no primeiro capítulo, as mais remotas lembranças de uma criança. Essa tentativa de lembrar encerra em si a busca pelo próprio despertar para o universo simbólico. O que de mais antigo uma criança guarda em suas lembranças? Como ingressa na representação? Hoje, enquanto me dirigia para o aniversário de minha sobrinha, lembrei-me de leituras recentes acerca da imensa, praticamente inconcebível, vastidão do universo, nas dimensões de tempo e espaço, e mais uma vez tive ciência de minha absoluta insignificância. Mas é como insignificância que existo, não há outro modo. 

Jorge de Lima: Invenção de Orfeu

[Canto Primeiro, Fundação da Ilha, XXVI]

Qualquer que seja a chuva desses campos
devemos esperar pelos estios;
e ao chegar os serões e os fiéis enganos
amar os sonhos que restarem frios.

Porém se não surgir o que sonhamos
e os ninhos imortais forem vazios,
há de haver pelo menos por ali
os pássaros que nós idealizamos.

Feliz de quem com cânticos se esconde
e julga tê-los em seus próprios bicos,
e ao bico alheio em cânticos responde.

E vendo em torno as mais terríveis cenas,
possa mirar-se as asas depenadas
e contentar-se com as secretas penas.

LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. São Paulo: Ediouro, s/d, p.30-31.

multiverso (curta)

Jorge de Lima: Invenção de Orfeu

[Canto Primeiro, Fundação da Ilha, XXI]

Decide-se a fazer os cactos,
quer dizer: simetria. Urgência
em colocar espinhos onde
estariam as folhas gordas
dos facetados mastros verdes
de gomos estandardizados,
duros, fortes, blindados como
arma de destruição e fúria,
sem desejar sequer um ramo
para dar pouso ou sombra ou fruto
ou segregar resina; mas
advinha-se o sangue às pontas
estripando vaqueiros, e uivos
de ventos trespassados quando
distraídos perpassam. Vê-se
a provisão constante dágua
contra a seca: sem ter raízes
profundas, para não fixar-se
demais, e ser nos ares um
mirante, contemplando os céus de
fogo, e embaixo a terra morta,
e lá longe ― pedrouços, ossos,
luas vermelhas, céus de fogo.
Mandacarus, mandacarus,
Que técnicas voz fez tão torres
nesse verde marfim de caule
que não dá lenho para quem
deseje um poema, um navio
manso, mas encarnais ossuários
com tutanos de seiva oculta
manancialmente para bois.

LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. São Paulo: Ediouro, s/d, p.24-25.