Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sexta-feira, 8 de março de 2013

QUEIME DEPOIS DE LER

Não sei se é possível comentar Queime Depois de Ler, dos irmãos Coen, sem incidir em reducionismos: as aparências enganam, mas é a única coisa de que as personagens parecem se valer, a única coisa que elas têm para se orientar no caos dos acasos que vão modificando suas rotinas. Os mais astutos passam recibo de idiotas, otários, até mesmo ingênuos. E os aparentemente ingênuos, como a escritora de livros infantis, chegam a ser detestáveis, revelando-se tão vulgares quanto as personagens emaranhadas nas tramas fakes de espionagem e suspense. Ninguém se salva, e praticamente todos se dão mal. O antídoto parece ser o humor, a capacidade de fazer rir do que é ridículo, mas que só pode ser entrevisto com certo distanciamento.

espiritualidade

Minha casa está cheia de espíritos... dos poetas. Uma casa bem-assombrada. 

fantasmas

Um fantasma é um ser que você encontra quando menos espera, embora saiba de sua existência concreta, sendo o encontro a confirmação do que já se sabia. Como os fantasmas se criam em nós? Mistério. Os meus, agora sei, surgiram na medida em que eu tentava conciliar coisas muito conflitantes, díspares. Mas o grande fantasma, origem dos outros, é a ilusão da unidade do eu, como um centro onde as decisões são tomadas. O eu como uma usina altamente capaz de produzir a energia necessária à existência, contornando e resolvendo os conflitos. Quando o fantasma aparece, o que está aparecendo é o caráter fantasmático da ilusão subjetiva: o eu falhou, não porque é falível, mas porque é inconsistente.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Orides Fontela (para o dia de amanhã)

Nunca amar
o que não
vibra

nunca crer
no que não
canta.

FONTELA, Orides. Poesia reunida. São Paulo: Cosac Naify: Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.340.

ter a posse de si

Entrei numa papelaria para comprar papel de embrulho. Ao me dirigir à atendente, em vez de dizer “eu preciso...”, disse “eu prefiro...”, texto que tinha como destinatário evidentemente outra situação de interlocução, mas que me dava, naquele momento, a posse exata do que eu precisava de mim.

Paulo Leminski

arte do chá

     ainda ontem
convidei um amigo
    para ficar em silêncio
comigo

    ele veio
meio a esmo
    praticamente não disse nada
e ficou por isso mesmo

Paulo Leminski. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p.188.

Paulo Leminski

erra uma vez

    nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
    já cometo duas três
quatro cinco seis
    até esse erro aprender
que só o erro tem vez

Paulo Leminski. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p.265.

quarta-feira, 6 de março de 2013

desenredo (inspirada na obra de guimarães rosa)

canção de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro. CD Papo de Passarim.

enquanto caminhava sob o sol forte da tarde

Apesar de ter ciência do ridículo de me expor, enquanto este blog for importante para mim ele vai existir. No dia que não for mais, eu simplesmente vou saber o que fazer.

o melhor da música popular brasileira

Mário Quintana

Crime & castigo

O remorso é quando o filme (silencioso) da memória põe-se a repetir a mesma cena e fica o pobre ator a representá-la para sempre.
Um exemplo? Aí vai ele. É um simples faz de conta: não te assustes. Estás à cabeceira da tua velha tia Filomena e eis que resolves apressar-lhe a herança. Tinhas de dar-lhe cinco gotas de meia em meia hora e dá-lhes cinquenta de supetão. Ora, o que vês na tela implacável é a contagem das primeiras gotas inocentes... e agora não podes, não podes nunca mais parar!
Será isso o inferno? Esse inevitável mecanismo de repetição?
Em todo caso, todos já devem estar mais ou menos preparados para esses requintes infernais, graças àquele famoso disco em que o cantor repete umas 37 ou 38 vezes, sem ao menos variar de entonação: ― Eu te amo! Eu te amo! Eu te...
Neste ponto, um anjo segreda-me sonsamente ao ouvido:
― Mas quem sabe se a gravação não estará com defeito?

Mário Quintana. A vaca e o hipogrifo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p.225. 

terça-feira, 5 de março de 2013

Fernando Pessoa

Meus versos são meu sonho dado.
Quero viver, não sei viver,
Por isso, anónimo e encantado,
Canto para me pertencer.

O que salvamos, o perdemos.
O que pensamos, já o fomos.
Ah, e só guardamos o que demos,
E tudo é sermos quem não somos.

Fernando Pessoa. Poesia 1918-1930. São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p.376-377.

vidas passadas

Quando procurei a terapia de vidas passadas, movida entre outros por uma intensa curiosidade a respeito, as coisas não deram muito certo, a rigor nem chegaram a acontecer: nunca fiz uma sessão de regressão. Mas agora, já distanciada, percebo que não preciso voltar além-útero. Há muitas vidas passadas na própria vida, nesta existência, a única concreta de que tenho conhecimento. E nessas vidas passadas de minha vida eu talvez não tenha sido eu: cada uma dessas vidas encerrou um eu com um liame de continuidade com o presente dado pela memória, pelo esforço de se reconhecer uno, único, o mesmo sujeito de uma só história ao longo de uma única existência, cuja vida daria um romance. Mas se no presente eu não me sinto una, quem dirá nas muitas edições da vida, como quis Brás Cubas. Dito isso, sinto que se eu quisesse resgatar e me reconhecer numa dessas edições, seria a infância e juventude, em que os prazos eram mais dilatados, havia um repouso muito grande em viver, em vez dessa urgência, dada pela vertigem de um hoje caótico, de responder a (e resolver) todas as questões: estas iam e vinham, até que uma hora, quando as condições permitiam, iam de vez. Assim se foi, por exemplo, minha asma.

domingo, 3 de março de 2013

Léo (Milton Nascimento & Chico Buarque)

conversa

Enquanto caminhava, a sensação mais uma vez de estar conversando com o destino, acompanhada de outra: esse encontro só é possível porque certas condições são dadas. Depois de caminhar forte, veio a leveza, em parte porque a conversa foi boa.

modo de vida

Pode não ser possível, mas é preciso pelo menos tentar criar um modo de vida, entre outras coisas que se possam (tentar) criar.

Torquato Neto: poeta navegante

Um dia desses eu me caso com você

de tanto me perder, de andar sem sono
por essa noite sem nenhum destino
por essa noite escura em que abandono
uns sonhos do meu tempo de menino
de tanto não poder mais ter saudade
de tudo o que já tive e já perdi
dona menina, eu me resolvo agora
a ir-me embora pra longe daqui.

um dia desses eu me caso com você
você vai ver, você vai ver
um dia desses, de manhã, com padre e pompa
você vai ver como eu me caso com você

meu tempo de brincar já foi-se embora
e agora, o que é que eu vou fazer?
não tenho onde morar, vou caminhando
sem sono, sem mistérios, sem você;
pra terra onde nasci
não volto nunca mais
e esta cidade alheia tem segredos
que eu faço tudo pra não compreender

meu pobre coração não vale nada
anda perdido, não tem solução
mas se você quiser ser minha namorada
vamos tentar, não é?
não custa nada
até pode dar certo
e se não der
eu pego um avião, vou pra xangai
e nunca mais eu volto pra te ver.

NETO, Torquato. Torquatália {do lado de dentro}. Org. Paulo Roberto Pires. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p.181.

milton nascimento tem me feito muita e boa companhia

Clarice Lispector

OS RECURSOS DE UM SER PRIMITIVO

Li uma vez que os movimentos histéricos tendem a uma libertação por meio de um desses movimentos. A ignorância do movimento exato, que seria o libertador, torna o animal histérico, isto é, ele apela para o descontrole. E, durante o sábio descontrole, um dos movimentos sucede ser o libertador.
Isso me faz pensar nas vantagens libertadoras de uma vida apenas primitiva, apenas emocional. A pessoa primitiva apela, como que histericamente, para tantos sentimentos contraditórios que o sentimento libertador termina vindo à tona, apesar da ignorância da pessoa.

Clarice Lispector. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.254.

geografia

Os sonhos, pelo menos os meus, funcionam como uma tradução em imagens desconexas daquilo que estou vivendo, e muitas vezes ingenuamente tentando entender. O que ficou das imagens desta noite, que é aquilo de que consigo me lembrar, poderia ser significado com a palavra pertencimento, ou o verbo, pertencer. Tudo é ou não uma questão de linguagem? Não é, a linguagem está sempre defasada, no encalço. Eu consigo me lembrar apenas da última imagem (ia dizer final, mas percebi a tempo a armadilha): estou adentrando por uma estrada que percorri na minha infância, que ia dar num lugar chamado Grota Funda, que é onde meu pai trabalhava como agricultor. Essa estrada está diferente, pois dos dois lados erguem-se espécie de choupanas que são bares, estabelecimentos comerciais noturnos, e então já é a Lapa, mas com a geografia do bizarro, e eu então me pergunto, embora isso não faça qualquer sentido, como eu não previ essa mudança no bairro há vinte anos atrás.  A pergunta pode estar se dirigindo a outras geografias, por exemplo as que percorri nos últimos vinte anos, ou, mais provavelmente, às minhas paisagens, à geografia subjetiva ― afetada, sem dúvida, pela paisagem e suas transformações. Quando finalmente adentro aquela estrada e chego, imaginariamente na Grota Funda, geograficamente na Lapa, ocorre-me então o perigo de aglomerar-me com muitas outras pessoas naquele espaço fechado à noite, e sinto medo e vontade de sair dali, e isso é já uma decisão. Há ainda uma cena, resquício da viagem recente, estou agora também no mar, mas o espaço continua fechado, e uma pessoa de minhas relações que aparenta e diz gostar muito de mim trata-me com frieza e distanciamento. Será que ela me reconheceu? Eu podia prever a transformação?