Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Dora Ferreira da Silva

ANO NOVO

Prepara-se o jardim.
Há um movimento do botão à flor
em câmara lenta.
O rosto pequeno das violetas
esconde seu perfume nas folhas
sussurrando segredos
                    salta o sabiá na aragem
e suplica à rosa de ontem
que não desfolhe seu rubor.

Promete a nova noite
a estrela que quisermos.
O CISNE ― constelação que amamos ―
cintila noutro céu.
                    Entre ar e folhagem
o pedido calado alcança
um pássaro estelar.

Dora Ferreira da Silva. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p.291.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

como não?

Ouvi hoje de uma colega de profissão que era imprescindível uma roupa nova para a virada do ano. E então, tomando de empréstimo o Verissimo, me ocorreu que sempre me espanto um pouco mais com a variedade humana. Somos todos da mesma espécie, mas o que encanta uns horroriza outros. Atenuando esses extremos, o que encanta uns espanta outros. Nunca essa coisa de roupa nova havia se colocado antes para mim, mesmo como uma possibilidade. A ideia, à parte a suscetibilidade à nuvem dos discursos, era-me até então indiferente. Este ano pensei mesmo em fazer algo totalmente diferente, uma viagem para um lugar sossegado, reservado e aprazível. Para o próximo ano não está descartada a ideia. Mas por que me lembrei agora da sugestão da roupa nova? Porque estou buscando uma nova roupagem com que vestir meu ser ― o mesmo que sentir em si algum sopro de renovação. Queria poder trocar de roupa por dentro, dar-me de presente novos trajes. Agora talvez esteja entendendo a simbologia da roupa nova na passagem do ano. E porque, via de regra, são roupas brancas. 

duplo, dobro, duplicado...

Súbito interesse em assistir A Dupla Vida de Véronique.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Dora Ferreira da Silva

AION

Flor sideral
docemente arremessada ao éter
guiou-me ao centro da linguagem
ensinou-me a ler como arúspice
entranhas de eventos e pássaros
gerando-me na árvore
do espírito em flor.

Dora Ferreira da Silva. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p.176.

últimos dias do ano

São dias diferentes, estes. Passado o grande entusiasmo que envolve o Natal, resta menos que uma semana para o ano novo. É como se o ano inteiro convergisse para o Natal, e nesses pouquíssimos dias que faltam para o ano terminar fosse possível sentir uma densidade diferente no ar. Uma necessidade forte de recolhimento, de tocar o próprio tempo, afinal um detalhe insignificante no grande concerto cósmico. Nós ocidentais vivemos o tempo de duas formas: o tempo linear e o tempo cíclico. A passagem do ano projeta uma linearidade sobre um fenômeno que é, em essência, cíclico.

Millôr Fernandes sobre Rubem Braga

OUTSIDERS ― Eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis.  [aqui]

Dora Ferreira da Silva

OS POETAS ESTÃO COM MEDO...

Os poetas estão com medo das palavras:
é o sinal evidente que devem detoná-las.
A vida implora: quer ser refeita
sob os escombros. Tantas avenidas
trânsito parado rios enfermiços pássaros
em debandada: encontrarão talvez seu pouso
num disco voador receptivo ao voo e ao canto.
Desencanto do presente. Economia economia
economia e a casa em desordem.
Um pouco de filosofia não fará mal nenhum.
Os jovens poetas leem Giordano Bruno
Nietzsche e sabem que eles mais perto estiveram
do noumeno do que esses fenômenos de efeito
especial ― barulho e repetição. O mal
é o alienígena, bárbaro à vista como sempre
e outrora. Detonem a palavra ― poetas ―
poetas é outro nome de guerreiros e amorosos
do ser. Venham com seus amores transfigurados
com sua energia nuclear. A destruição pela
palavra é redemoinho no ar
para novas configurações do imaginário,
de um novo fabulário que liberte Andrômeda
de seus grilhões e torne o monstro
digestível. Tirem a palavra de sua bainha,
o coração, sem hesitar. A palavra
― sopro cosmogônico― nossa arma de predileção,
nossa bomba amorosa de efeito retardado
mas seguro. O mundo que se desmunda aí está
à espera de aragem sagrada de vossas bocas
dizei um novo Atharva-Veda poetas oficiantes
buscai o ponto de união de tantos cacos
dispersos; dizei o verso que vem aos trancos
e barrancos dependendo de vossa ousadia
e alegria, pois é sempre alegre
o gesto criador, a palavra inicial.

Dora Ferreira da Silva. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p.401-402.

28 de dezembro

Perco o sono no meio da noite, e apesar de ainda ser noite ― madrugada ― já é dia 28 de dezembro. De uns tempos para cá, quando esses rituais de passagem ganharam dimensão para mim, sempre sei o que estou deixando para trás com o ano que finda. 

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

um acaso

O acaso, esse misterioso senhor, ajuda a tecer enredos ou está inscrito neles? Quando Machado de Assis, nas Memórias póstumas, referiu-se ironicamente ao pobre destino como grande procurador dos negócios humanos, pilheriava, com seu ceticismo, qualquer esforço de transcendência que alguém pudesse fazer, afinal nosso único legado seria a miséria ― naturalmente tinha em mira a miséria espiritual. Acontece que hoje o acaso me foi bastante generoso, sem eu precisar imaginar uma mão oculta do destino. O que preciso, mesmo, é escrever sobre isso, sobre qualquer coisa que me soe com um sentido diferente do previsível, que possa inclusive contrariá-lo. 

tema dos deuses: milton nascimento e som imaginário

paz profunda

Uma das mensagens de Natal que recebi este ano finalizava com a expressão “Paz Profunda”. Havia tal expressão de verdade nas palavras de quem enviou que, não sendo eu muito adepta de mensagens nesta época do ano, resolvi encaminhá-la a algumas pessoas que se fizeram presentes em minha vida ao longo do ano, seja concretamente, seja através das palavras, acrescentando: concretamente ou por meio de palavras são coisas intercambiáveis na vida de quem vive no meio delas, as palavras, e sabe de sua força. Uma amiga respondeu: Paz profunda é um desejo muito bonito e só quem precisa dela sabe como é valorosa. Agradeço esse desejo e redireciono-o a você. E só então percebi como aquela expressão havia ressoado, e continua ressoando, em mim. 

artichoke hearts (animação)

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

inusitado

Ontem à tarde reinava um silêncio diferente de um domingo habitual, uma espécie de ressaca coletiva da noite de Natal. Uma placidez muito grande tomava conta do ar. Foi quando distingui um som meio distante, mas perfeitamente reconhecível, pérola daquele silêncio todo: owner of a lonely heart... 

nova imagem

Olhei-me hoje no espelho e achei meu cabelo bonito ― aquele cabelo da manhã, trabalhado pelo travesseiro. Olhei com mais vagar e achei meu rosto simplesmente leve, e considerei que valeria a pena tentar umas imagens amadoras, caseiras, para atualizar o perfil do blog. Feito. Fazia um tempinho que eu não encarava as lentes de uma máquina, a não ser por obrigação (3x4). Os problemas de saúde, no segundo semestre, desnortearam-me um pouco, e conheci uma espécie nova de tristeza. Agora parece que as coisas estão encontrando alguma calmaria, ou pelo menos resposta. De todo modo, gosto muito de meus cabelos ― e dos meus olhos também.

Emily Dickinson

A Manhã é de todos -
A Noite - de alguns -
De poucos escolhidos -
A Auroreal luz.


Morning is due to all -
To some - the Night -
To an imperial few -
The Auroral light.


DICKINSON, Emily. A branca voz da solidão. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2011, p.78-79.

possibilidades

As coisas continuam muito misturadas ― o que tira a convicção para agir. Por outro lado, é espantosa a frequência com que o assunto 'dinheiro' comparece em meus sonhos, indicando tratar-se de fonte recorrente de preocupação. Nisso, aliás, tenho a companhia da maioria dos brasileiros. Mas não era a preocupação o mote das imagens desta noite, era a culpa. Agora me ocorre um trecho que li ontem de O homem sem qualidades, certamente a matriz do que sonhei (o que mostra, mais uma vez, que escrevendo as coisas ganham uma dimensão mais palpável): "Se quisermos distinguir entre si as pessoas com senso de realidade e senso de possibilidade, basta pensar em determinada quantidade de dinheiro. Tudo o que mil marcos contêm em possibilidades está ali contido, sem dúvida, não importa se possuímos os mil marcos ou não; o fato de o sr. Eu ou o sr. Você os possuírem acrescenta tão pouco aos mil marcos quanto acrescentaria a uma rosa ou uma mulher. Mas um louco os enfiará na meia, dizem as pessoas realistas, e um empreendedor há de realizar alguma coisa com eles; até a beleza de uma mulher sofrerá indubitavelmente acréscimo ou perda segundo quem a possua. É a realidade que traz as possibilidades, e nada mais errado do que negar isso. Mesmo assim, no total ou na média serão sempre as mesmas possibilidades repetidas, até chegar uma pessoa para a qual uma coisa real não signifique mais que o imaginado. Será ela quem dará sentido e destinação às novas possibilidades, que há de provocar." [MUSIL, Robert. O homem sem qualidades. Trad. Lya Luft e Carlos Abbenseth. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p.35]

pink floyd - marooned

domingo, 25 de dezembro de 2011

papeis rasgados

A homeopatia e a psicanálise marcaram encontro em meu sonho, nas imagens de papeis rasgados. Desde a primeira consulta meu homeopata pediu que eu preenchesse um questionário, algo que sempre deixo para depois: responder perguntas é sempre invasivo. Ocorre que na última consulta o tal questionário voltou à baila, mas no sonho ele aparecia associado à minha analista, como se ele o tivesse solicitado. Ela não me apresentou nenhum formulário para preenchimento, mas faz perguntas de que me esquivo ― um direito que me assiste vivendo numa democracia. Parêntese: solicitado a se manifestar numa prova acerca da noção de hierarquia no texto de Millôr Fernandes, um aluno do 6º ano disse que era o contrário de democracia. Faz sentido, segundo a democrática noção de democracia que nos é vendida cotidianamente. Então uma pessoa com pendores democráticos teria facilidade de fazer análise ― desde que não visse naquela relação qualquer forma de hierarquia. Acontece que o rompante de rasgar os papéis (o dito questionário) e discutir com a analista, abandonando a sessão, é uma reação enérgica o suficiente para mostrar o direito à privacidade numa sociedade democrática. Logicamente que por de trás dos papéis rasgados em sonho há outros, e isso tem profundas implicações com a continuidade ou não do processo de análise, e do que (ou de quem...) poderá sair de lá. Por outro lado, há outros papéis sendo preenchidos, tentando quebrar a rigidez dos papeis rasgados em sonho. Há papéis com que se busca fazer a catarse. 

cinema, natal e chuva

Resolvi conferir um filme americano no DVD. Fiquei surpresa ― ao perceber-me sentindo falta do plim-plim ― para bom entendedor, sintoma de tédio. Mas não posso reclamar: fui eu quem buscou este passatempo, em vez de algo que fizesse pensar. Felizmente chove, uma chuva ótima aplacando o calor, o dia 25 correu perfeitamente calmo, e amanhã, como é pré-férias, não terei de trabalhar. 

veja (margarida) - vital farias

Emily Dickinson: "There is no Frigate like a Book"

Não há Fragata como um Livro
Para ver outras Terras
Nem bom Corcel como uma Página
Aos pés da Poesia -
O pobre vai por essas Rotas
Sem custos de Pedágio -
Como é singelo esse Veículo
Que o Espírito guia -


There is no Frigate like a Book 
To take us Lands away, 
Nor any Coursers like a Page 
Of prancing Poetry -  
This Travel may the poorest take        
Without oppress of Toll -  
How frugal is the Chariot 
That bears a Human Soul -


DICKINSON, Emily. A branca voz da solidão. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2011, p.78-79.

fleet foxes: mykonos (animação)