Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 17 de março de 2012

uma imagem marcante desta semana

vida

Amar alguém, distinguir uma pessoa com afeto, carinho, amizade, presença  companhia enfim , é querer profundamente que ela viva, que ela continue existindo por muito tempo. O acolhimento é isso.

Ana Hatherly

A HISTÓRIA DO MUNDO

A história do mundo
é uma autobiografia inventada
é a história
dum Paraíso desencontrado
dum velho-novo-mundo
para sempre ultrajado
pela enorme cintilação do ouro

Ah
como é desigual
a viagem da descoberta!

Entre a cópia e a falta
ante o vexame do despenho
uma pergunta maléfica nos assalta:
que fazer?

A alma 
não tem que fazer nada
dizia um célebre quietista...


Ana Hatherly. A idade da escrita e outros poemas. São Paulo: Escrituras, 2005, p.101.

citação

Sou a citação mal ajambrada do que um dia imaginei ser. Não, imaginar é pouco. Eu tinha cá meus sonhos e planos. Aprendi a escrever, quero dizer, alinhar palavras e sinais em enunciados compreensíveis. Hoje isso é o respiradouro daqueles sonhos infantis. A não ser que eles, então, carecessem de melhor tradução.

quinta-feira, 15 de março de 2012

suave idade

É aquela idade em que a escrita torna mais suave o respirar.

Alexei Bueno: livro de haicais

Em todas as portas
Uma só certeza: Nosso
Lugar não é aqui.

BUENO, Alexei. Livro de haicais. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p.220.

Álvaro de Campos elevou a poesia a píncaros isolados

REGRESSO AO LAR

Há quanto tempo não escrevo um soneto
Mas não importa: escrevo este agora.
Sonetos são infância, e, nesta hora,
A minha infância é só um ponto preto,

Que num imóbil e fútil trajecto
Do comboio que sou me deita fora.
E o soneto é como alguém que mora
Há dois dias em tudo que projecto.

Graças a Deus, ainda sei que há
Catorze linhas a cumprir iguais
Para a gente saber onde é que está...

Mas onde a gente está, ou eu, não sei...
Não quero saber mais de nada mais
E berdamerda para o que saberei.

PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. Ed. Teresa Rita Lopes. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007, p.487.

quarta-feira, 14 de março de 2012

terça-feira, 13 de março de 2012

Luis Martins

A CONSULTA

― Sua aparência é saudável, mas as aparências às vezes enganam. Vamos lá ver: que é que o senhor sente?
― O que eu sinto, doutor? Não sei dizer direito. É uma espécie de  opressão, de angústia, de ansiedade...
― E o senhor pensa que eu também não sinto? Isto é normal. Normalíssimo. Que mais?
― Bem, doutor. Eu tenho insônias.
― E eu não tenho, por acaso? Pergunte ao seu vizinho se não tem também.
― Eu não me dou com meu vizinho.
― É isto: não se dá com o vizinho. Eu também não me dou com o meu. Ninguém se dá com ninguém. Mas não precisa perguntar: eu sei. Seu vizinho não consegue dormir. Ninguém consegue. Isto é normal.
― Mas, doutor...
― Eu sei: o senhor anda nervoso, excitado, angustiado... Diga-me: não sente medo? Um medo sem causa, sem nenhum motivo aparente, medo de qualquer coisa que o senhor não sabe o que é?
― Realmente... Eu estava com vergonha de dizer, mas, desde que o senhor falou, é verdade: sinto, sim.
― Ótimo! O senhor sente medo. Eu também sinto. Ótimo, torno a dizer. O senhor não tem nada, meu amigo. Está inteiramente são, uma vez que sente medo. Se não sentisse, aí sim, precisaríamos procurar as causas dessa anomalia. Talvez fosse grave.
― Sabe, doutor? Às vezes, tenho a impressão de que estou ficando neurótico.
― Claro que está! E eu não estou? E o seu vizinho não está? E todo o mundo não está? E o senhor pensa que vai ficar de fora? Por quê? Mas reflita um pouco, meu caro. O senhor vive, eu vivo, toda a gente vive num mundo anormal, sádico, doente, sanguinário, onde a regra é  a falta de regras, um mundo hediondo e tenebroso, onde o homem é cada vez mais ― e como nunca foi ― o lobo do próprio homem. Um mundo de guerras, de massacres, de hecatombes, alicerçado no ódio, na iniquidade e na violência. Acrescente a tudo isso a poluição atmosférica, a poluição sonora, a poluição moral, a degradação dos costumes, a falência dos serviços públicos, o colapso do trânsito, a morte da urbanidade, da cordialidade, da solidariedade humanas. O senhor sente angústia. É natural. O senhor tem medo. É normalíssimo. O senhor tem insônias. Como não tê-las? Meu caro cliente, vá tranquilo: o senhor não tem absolutamente nada. Passe bem. O próximo, por favor?
1973

Antologia da crônica brasileira: de Machado de Assis a Lourenço Diaféria. São Paulo: Moderna, 2005, p.103-104.

João Cabral de Melo Neto

CARTÃO DE NATAL

Pois que reinaugurando essa criança
pensam os homens
reinaugurar a sua vida
e começar novo caderno,
fresco como o pão do dia;
pois que nestes dias a aventura
parece em ponto de vôo, e parece
que vão enfim poder
explodir suas sementes:

que desta vez não perca esse caderno
sua atração núbil para o dente;
que o entusiasmo conserve vivas
suas molas,
e possa enfim o ferro
comer a ferrugem
o sim comer o não.

MELO NETO, João Cabral. Museu de tudo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p.138.

“Nesta casa se vendem ovos frescos”

O texto que segue é uma das melhores recordações de meu tempo de escola. Achei que nunca mais iria colocar os olhos nele novamente, pois que tomei contato com ele num manual didático, circunstância única de que me recordo. Mesmo a lembrança dos detalhes era vaga, e no Google, até então, o máximo que conseguia era encontrar pessoas como eu, procurando o texto. Agora encontrei-o digitalizado, e resolvi transcrever. A autoria foi uma grata surpresa: Millôr Fernandes.

A MENSAGEM

Num mundo em que a comunicação é tudo e o dinheiro sempre pouco, conta-se aqui uma história altamente moral sobre a inutilidade da primeira enquanto se economiza o segundo:
E chamou o pintor e lhe encomendou a placa para anunciar a especialidade do seu negócio: “Nesta casa se vendem ovos frescos”. Além dos dizeres recomendou ao pintor que bolasse uma figura, uma alegoria referente ao ramo. E perguntou quanto era. O pintor disse que ficaria em 50.000. Cinquenta mil o quê?, indagou o comerciante, pensando, inutilmente, numa moeda mais desvalorizada do que o cruzeiro. Cinquenta mil cruzeiros, disse o pintor. Ah, não vale, disse então o comerciante. Como não vale?, retrucou o pintor, ofendido em sua arte mais do que atingido em sua economia. O senhor não poderia reduzir um pouco?, arriscou o comerciante. Claro que posso, disse o pintor, posso reduzir a figura e os dizeres. Como assim?, disse o negociante? Olha, explicou o pintor, pra começo de conversa não precisamos usar figura nenhuma. Se se diz que o senhor vende ovos não há necessidade de colocar nenhuma galinha pintada, não é mesmo? Se o normal são ovos de galinha, o fato de não ter nenhuma outra ave faz com que os ovos sejam, presumivelmente, de galinha. É certo, concordou o negociante. Então, fez o pintor, vinte mil cruzeiros de menos. Agora também não é necessário dizer nesta casa. Se o freguês passa por aqui e vê: “Se vendem ovos frescos”, já sabe que é nesta casa. Ele não vai pensar que é na casa ao lado, não é mesmo? Certíssimo!, exclamou o comerciante. Então, continuou o pintor, por que colocar “Se vendem”? Se o freguês potencial lê “Ovos Frescos”, já sabe que se vende. Ninguém pensaria que o senhor vai abrir uma casa comercial para alugar ovos ou apenas para expô-los, right? É mesmo!, espantou-se ainda mais o comerciante. Quanto ao “Frescos”, continuou impávido o pintor, refletindo melhor não é de boa psicologia usar essa palavra. “Frescos” lembra sempre a hipótese contrária, a de ovos “velhos”. Não deve nem ter passado pela cabeça do comprador a ideia de que seus ovos podem ser outra coisa senão frescos. Portanto, tiremos também o “frescos”! Certíssimo!, berrou o negociante, agora profundamente entusiasmado com a dialética do pintor. Façamos, portanto, apenas OVOS. Por favor, desenhe aí só essa palavra, bem bonita, bem clara: OVOS! Só ovos, ovos tout court, ovos em si mesmos, que se vendam pela sua pura e simples aparência de ovos, pelo seu inimitável oval! Então vamos lá, concordou o pintor. Mas antes de começar a usar o pincel voltou-se para o negociante e perguntou, preocupado: Mas, me diga aqui, amigo ― pensando bem, por que vender ovos?
Veja, 1970.

Millôr Fernandes. 30 anos de mim mesmo. São Paulo: Desiderata, 2006, p.218. Texto digitalizado aqui.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Ana Hatherly

A MEMÓRIA DO NOME

A memória do nome
é o paradoxo da verdade moderna
em que o livro
é o monumento da letra.

Na alma secreta da palavra
cada momento é uma prisão
porque a história
de tudo faz monumento
e o livro é o monumento da letra.

Memorizar é obliterar
porque a memória é feita de objetos
reapropriações
instantes figurados.

A memória é invisível
por isso tentamos dar-lhe corpo
de cada momento fazendo uma prisão.

Lembrando esquecemos
a ficção do momento
a ficção do monumento.

O modelo é o contrário do único
e toda a memória é funerária.

Ana Hatherly. A idade da escrita e outros poemas. São Paulo: Escrituras, 2005, p.60

domingo, 11 de março de 2012

Millôr Fernandes

A VAGUIDÃO ESPECÍFICA

"As mulheres têm uma maneira de falar que eu chamo de vago-específica."
Richard Gehman

― Maria, ponha isso lá fora em qualquer parte.
― Junto com as outras?
― Não ponha junto com as outras, não. Senão pode vir alguém e querer fazer coisa com elas. Ponha no lugar do outro dia.
― Sim senhora. Olha, o homem está aí.
― Aquele de quando choveu?
― Não, o que a senhora foi lá e falou com ele no domingo.
― Que é que você disse a ele?
― Eu disse pra ele continuar.
― Ele já começou?
― Acho que já. Eu disse que podia principiar por onde quisesse.
― É bom?
― Mais ou menos. O outro parece mais capaz. 
― Você trouxe tudo pra cima?
― Não senhora, só trouxe as coisas. O resto não trouxe porque a senhora recomendou para deixar até a véspera.
― Mas traga, traga. Na ocasião nós descemos tudo de novo. É melhor, senão atravanca a entrada e ele reclama como na outra noite.
― Está bem, vou ver como.
O Pif-Paf / O Cruzeiro / 1956

sea of glass

incomunicável e intransferível

“Se algum dia tiver de me contar, farei talvez, se sobrar o tempo, um poema ― poema é só poema, não poesia. Poema se faz com papel, tinta e suor ― poesia é estado de graça, sonambulismo e transfiguração. O melhor, porém, é não escrever nada, nem versos nem memórias, nem epopeia nem biografia. O que há de mais secreto em nós é incomunicável e intransferível. O homem não é mais que sua vida ― porém muito menos que seus sonhos.”

Luis Martins. “Mundo submerso”. __. Antologia da crônica brasileira: de Machado de Assis a Lourenço Diaféria. São Paulo: Moderna, 2005, p.102. De e sobre Luis Martins, aqui e aqui