Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 19 de janeiro de 2013

as minhas janelas

Ao percorrer um livro de crônicas, que adquiri com o fito de escolher a leitura dos alunos para o próximo ano letivo, encontrei um texto de memória antiga, de Cecília Meireles. Achava inclusive que o título era “As minhas janelas”, e de forma alguma ligava-o ao nome de Cecília. Atribuía-o vagamente à Lygia Fagundes Teles. No horizonte, de todo modo, o feminino.
A crônica é singela, e se ficou guardada esses anos todos é porque alguma coisa da escola está muito viva dentro de mim. Esse texto ficou. Ontem, quase três décadas depois, eu reencontrei-o, com o espantoso título de “A arte de ser feliz”.
E então, à medida que ia lendo, e reconhecendo, senti a comoção do reencontro com quem fui. Quem fui acreditou nesse texto, acreditou que era assim, simples, bastava trazer em si um pouco de pureza e honestidade. Bastava. Inclusive para acreditar. Tudo contribuía para que o texto, em sua delicada singeleza, afastasse qualquer possibilidade de ironia.
Sobretudo, descobri ao reencontrá-lo que o que se inseriu entre o hoje e esse texto, entre quem sou e quem fui, foi a violência. Não sei se esse texto resiste a ela. Mas é bom poder tê-lo lido num tempo de inocência, que possibilitou acreditar nele. É bom ter vivido esse tempo de inocência.

A arte de ser feliz
Cecília Meireles

Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e sentia-me completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprava? Em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém a minha alma ficava completamente feliz.
Houve um tempo em que minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não podia ouvir da altura da janela; e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto,  às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.  Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta.  Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz. 
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

Boa companhia: crônica. Org. Humberto Werneck. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p.175-176. 

Mário Quintana

S.O.S.

O poema é uma garrafa de náufrago jogada ao mar.
Quem a encontra
Salva-se a si mesmo...

Mário Quintana. A cor do invisível. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p.119.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

caicó (cantiga popular recolhida por teca calazans e heitor villa-lobos)

sentinela

Há qualquer coisa de endurecimento ― defesa antecipada ― em mim que vem atravancando minha usual generosidade. Qualquer passo em direção ao outro, quando esse outro não parece representar terreno seguro, comporta um elemento de cálculo que torna tudo cansativo. Aí eu acabo preferindo o que denominaria de descanso subjetivo. Uma forma de preguiça existencial? Como, depois de tanto tempo cultivando música própria, fazer dueto com a música alheia? Por sorte há a poesia, companheira inestimável de viagem e do que é intervalo. E não vivo mais sem os rabiscos que faço aqui  que me descansam de mim mesma  e sem as aulas de natação.

Mário Quintana

TRÁGICO ACIDENTE DE LEITURA

Tão comodamente que eu estava lendo, como quem viaja num raio de lua, num tapete mágico, num trenó, num sonho. Nem lia: deslizava. Quando de súbito a terrível palavra apareceu, apareceu e ficou, plantada ali diante de mim, focando-me: ABSCÔNDITO. Que momento passei!… O momento de imobilidade e apreensão de quando o fotógrafo se posta atrás da máquina, envolvidos os dois no mesmo pano preto, como um duplo monstro misterioso e corcunda… O terrível silêncio do condenado ante o pelotão de fuzilamento, quando os soldados dormem na pontaria e o capitão vai gritar: Fogo!

Mário Quintana. Nova antologia poética. São Paulo: Globo, 2007, p.97.

um conto primoroso de Ivan Angelo

MENINA

 “Oh, ela sabia cada vez mais.”
(Clarice Lispector)

Sentar-se, concentrada, contar até um número, por exemplo dez, ou doze, e esperar agudamente um acontecimento importante, era seu exercício mais impreciso, mais despido de maldade, porque ela não escolhia o que ia acontecer, só fazia acontecer.
Havia outros, menos intensos: gritar “aaaa” de olhos fechados e, abrindo-os, esperar que tudo houvesse desaparecido; colocar a mão molhada na testa e acompanhar aquele sangue mais frio passeando no seu corpo; imóvel e muda, obrigar a fruteira de cristal brilhante a estilhaçar-se no chão com a força do pensamento; passar sem comer um dia inteiro para preocupar a mãe e ouvir deliciada: “Ana Lúcia, você me mata!”
Entretanto, era o esperar que algo importante acontecesse quando contasse até doze ou dez que lhe dava aquele segundo de vida intenso do qual ela saía sempre um pouco mais velha, e apressava a sua respiração, como um cansaço ou um beijo de Guilherme em Nilsa. Horas depois, ou nos dias seguintes, quando ouvia as pessoas grandes conversarem segredos ou comentarem graves um fato recente, dizia-se, plena de poder, ela mesma perplexa ante suas possibilidades: “Fui eu. Fui eu que fiz.”
Achava péssimo ir à escola, a professora era horrível. As coisas de que mais gostava: pensar sem ninguém perto porque aí podia ir avançando até se perder, brincar de santa, dormir, comer doce. Bom mesmo era fazer nada, nem pensar, mas isso só às vezes conseguia, e era impossível gozar o momento, sempre passado. Pois quando o sentia, ele já acabara: ela começara a pensar. Ter aquilo na mesma hora seria morrer? ― perturbava-se ela com o pensamento, cada vez sabendo mais.
Sim, cada vez sabendo mais. Sempre sentira esse mistério: não ter pai. Ela, que podia tanta coisa, afinava-se embaraçada de não conseguir dizer “papai” do modo de Tita ou Nina. Era a única coisa que faziam melhor do que ela, dizer “papai”. A diferença talvez só ela percebesse, sutil. Sentia que pai era uma coisa que se tem sempre, como mãe, ou roupas. Tita e Nina sabiam que aquela era uma vantagem:
― Quede seu pai, Ana Lúcia?
― Está viajando.
Disseram-lhe isso, já tinha escutado ou inventara? Ah, cada vez sabia mais, sempre mais.
Guilherme e Nilsa não se beijavam perto da mãe. Se ela chegava, as mãos ficavam quietas nas mãos, a respiração ficava mansinha e não havia mais nada interessante para olhar da janela do quarto. Beijar devia ser proibido. Ou pecado. (Sabia mais, sempre mais).
― Ana Lúcia, seu pai ainda está viajando?
― Está.
― Mentirosa! Sua mãe é desquitada.
Ficou impotente diante da palavra desconhecida. Uma coisa nova, ainda não se podia saber de que lado olhar para possuí-la toda. Desquitada. Desquitada. Jamais perguntaria a Tita, era uma alegria que não lhe daria. Ficou uns instantes sem saber como sair ilesa dessa armadilha. Tita corada e brilhante de prazer na sua frente.
― E o que é que tem isso?
Tita desmontou como um quebra-cabeça, Ana Lúcia balançara o tabuleiro. Jamais teria medo de Tita, ela sempre dependia demais das coisas fora dela, de um gesto, de uma palavra como desquitada ou parto.
Desquitada. Passou dias tentando solucionar sozinha. Seria uma coisa como burra, feia? Não, não parecia. Flor? Flor parecia, mas não explicava nada: orquídeas, rosas, sempre-vivas, desquitadas… Parecia. “Mentirosa! Sua mãe é desquitada.” Tita dissera como quem diz o quê? o quê? o quê? ― sem-vergonha. Sim!, como quem diz sem-vergonha: olhando de frente e esperando um tapa.
Nesses dias amou a mãe com muita força, amou-a até sentir lágrimas, defendendo-a contra a palavra que poderia feri-la: desquitada, sem-vergonha. Pensava a palavra de leve, com receio de ferir a mãe. Experimentava baixinho torná-la mais suave, molhando-a de lágrimas e amor: desquitadinha, sem-vergonhinha. Mas a palavra sempre agredia, sempre feria.
Sentada no chão, picando retalhinhos de pano com a tesoura, amava a mãe intensamente, enquanto ela costurava rápida, bonita mesmo, com aqueles alfinetes na boca. Chegava alguém para provar vestidos, a mãe mandava-a sair. Era feio ver gente grande mudar de roupa, a mãe dizia. Saía contrariada por deixá-la exposta à palavra, em perigo. Abria-se a porta, ela entrava de novo, amando, amando.
Estava cansada dessa obrigação e só por isso duvidou de si, subitamente um dia ao tomar leite para dormir: desquitada podia não ser como sem-vergonha! Podia até ser pior, e quem sabe podia ser melhor. Respirando fundo e observando-se, ela seguia pronta para novas descobertas. Refugiou-se no sono.
No dia seguinte recomeçou. Mais uma vez preocupava-se com a palavra, agora não nova, mas mistério, sombra. Não se arriscava a dar um palpite, havia o perigo de outro engano.
A professora feia! pergunta no fim da manhã, recolhendo os cadernos, se alguém tem alguma dúvida. Ana Lúcia acende-se emocionada. Por que não a professora? Talvez ela fosse boa, talvez dissesse logo o que é desquitada, talvez dissesse na mesma hora, sem muitas perguntas como por que você quer saber uma coisa dessas. Levanta-se tímida, insegura. Já de pé, desiste, e não sabe se senta ou chora.
― O que é, Ana Lúcia?
A voz da professora, mansa, mas não ajudando. Não pergunto, não pergunto ― teima Ana Lúcia, ganhando tempo.
― O que é? ― a voz insiste.
As meninas riem, insuportáveis. Helenice e seus dentes enormes impossibilitando tudo. Ana Lúcia sente que vai chorar. Estar perto da mãe é o que mais deseja.
― Sente-se ― ordena a professora irritada.

A máquina de costura avançava decidida sobre o pano. Que bonita que a mãe era, com os alfinetes na boca. Gostava de olhá-la calada, estudando seus gestos, enquanto recortava retalhos de pano com a tesoura.
Interrompia às vezes seu trabalho, era quando a mãe precisava da tesoura. Admirava o jeito decidido da mãe ao cortar pano, não hesitava nunca, nem errava. A mãe sabia tanto! Tita chamava-a de (   ) como quem diz (   ). Tentava não pensar as palavras, mas sabia que na mesma hora da tentativa tinha-as pensado. Oh, tudo era tão difícil. A mãe saberia o que ela queria perguntar-lhe intensamente agora quase com fome, depressa, depressa antes de morrer, tanto que não se conteve e
― Mamãe, o que é desquitada? ― atirou rápida com uma voz sem timbre.
Tudo ficou suspenso, se alguém gritasse o mundo acabava ou Deus aparecia ― sentia Ana Lúcia. Era muito forte aquele instante, forte demais para uma menina, a mãe parada com a tesoura no ar, tudo sem solução podendo desabar a qualquer pensamento, a máquina avançando desgovernada sobre o vestido de seda brilhante espalhando luz luz luz.
A mãe reconstruiu o mundo com uma voz maravilhosa e um riso:
― Eu precisava mesmo explicar para você a situação. Mas você é tão pequena!
Olhou a filha com carinho, procurando o jeito mais hábil. Pouco mais de sete anos, o que poderia entrar naquela cabecinha?
― Desquitada é quando o marido vai embora e a mãe fica cuidando dos filhos.
Pronto, estou livre ― sentiu Ana Lúcia. Desquitada, desquitada, desquitada ― repetia sem medo. Sentia-se completa e nova. Alegrou-se por não precisar amar a mãe com aquela força de antes. Sendo apenas uma menina poderia cansar-se e então o que seria da mãe? Bom, que desquitada não fosse um insulto. Bom mesmo. Deixava-a livre para pensar e não pensar, coisa tão difícil que
― Marido é o pai? ― ela quis confirmar, conquistando áreas que as outras crianças tinham naturalmente. A mãe sorriu e confirmou.
Tita sabia dizer “papai” porque a mãe não era desquitada ― ia Ana Lúcia aprendendo, descobrindo. Havia muita coisa em que pensar naquela conversa. Por exemplo: o que ela chama de marido é o que eu chamo de pai. Essa é uma diferença entre mãe e filha.
Ela sabia cada vez mais.

Para gostar de ler, vol.10 (contos brasileiros 3). 18.ed. São Paulo: Ática, 2010, p.41-45.

José Paulo Paes

TEORIA DA RELATIVIDADE

devagar se vai longe

mais perto de deus o ateu
do que o monge

José Paulo Paes. Poesia completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.297.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

força

Caminhar, se possível em contato com a natureza, é uma coisa muito simples, cujo bem-estar eu descobri inestimável. Antes de começar a fazê-lo cotidianamente, não podia suspeitar que tanto estava ao alcance do que reconheço em mim como força.

pequeno milagre

Perceber os olhos levemente molhados, depois de expressivo tempo secos, diante da cena final de um drama americano já visto, casualmente encontrado no zapeamento dos canais ― e por que, afinal, deter-se ante um título que fala de vidas (e da vida) no limite? Mas foi assim, e o pequeno milagre do começo da água. Haveria talvez algo mais a dizer aqui, mas essa água não quer ser corrompida.

trecho de conversa: lacunas (ou o desinvestimento virtual)

“Concordo com você. É  muito melhor a gente tentar se comunicar ao vivo. Muito sempre fica por dizer, mas o encontro face a face parece que preenche de alguma outra forma as lacunas das palavras.”

Cacaso ("sem deixar resíduo de meu ser, peixe")

MARINHA IRREVERSÍVEL

Agora te persigo, peixe morto.
Não como esfinge oblíqua
mas como prolongamento de meu corpo.

As palavras não valem,
o tempo não conta.
Debruço-me sobre os continentes, o mais árido,
e cavo a medida exata de minha angústia.
Sobre as retinas cai a longa noite.
O sono é numeroso e horizontal.
Como o sono permanece, tento romper-te
em litúrgicas escamas, como se buscasse
a só reintegração na superfície.

A cidade pulverizada te reflete,
a ti que fazes vigília em meus olhos.
Não há saída, as portas se recusam.
Mas a vida lateja e propõe
outro costume.
Sem mais escolha e sem
deixar resíduo de meu ser,
                             peixe,
mergulho para todo o sempre
em teu condado submerso.

CACASO. Lero-lero. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.203.

política (e políticos)

No Rio, qualquer chuva mais forte deixa nas ruas um rastro de lama. Nem tudo eles conseguem esconder, e a natureza acaba por expor as vísceras do poder.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

"e não posso aceitar sossegado qualquer sacanagem ser coisa normal"

Cacaso

ELOGIO DA LOUCURA

Certo rapaz de longos braços e barbas
viu qualquer coisa que nenhum mortal jamais
nem pressentiu ou saberá
pois o certo rapaz – que pena! – jamais
voltou para contar.

CACASO. Lero-lero. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.17.

José Paulo Paes

AUTO-EPITÁFIO Nº 2

para quem pediu sempre tão pouco
o nada é positivamente um exagero

Os melhores poemas de José Paulo Paes. 3. ed. São Paulo: Global, 2000, p. 225.

nadar, do pronome nada

“Vou entrar na piscina sem nada*, só eu e minha força.”

* Este nada remete, em termos estritos, aos apetrechos que auxiliam os maus nadadores. É preciso muita coragem para fazer valer este nada para além dos apetrechos, ou seja, despojar-se, estar (saber-se) de fato sem nada. E deixar de ser, quem sabe, um mau nadador.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Eduardo Alves da Costa

NO CAMINHO, COM MAIAKÓVSKI

Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz:
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas no tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares,
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.
E por temor eu me calo.
Por temor, aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita – MENTIRA!
Extraído daqui.

domingo, 13 de janeiro de 2013

música para o domingo à tarde

rebaixamento

Nunca no Brasil houve tanta mulher disposta a estampar capa de jornal barato ― e publicações congêneres.  Está surgindo uma nova profissão: subcelebridades, seres que vivem à custa da duvidosa imagem que alimentam através do corpo. Mulheres que estão fazendo do corpo objeto de uma posse coletiva e virtual, multiplicada pelas possibilidades exponenciais da internet. Seria interessante pensar quem está financiando essa superexposição do corpo feminino, quem está efetivamente lucrando (e obtendo satisfação) com isso e por que as mulheres (naturalmente as que estão se submetendo a essa distorção grotesca de sua sexualidade) estão permitindo esse avanço sem escrúpulos sobre seu corpo. 

álvaro de campos e o cansaço (moderno) de existir

O único jeito por vezes é fugir, como diz o poema do Álvaro de Campos, fugir da porrada, porque senão o nocaute é certo. 

paladar aguçado

A contingência lança-me na cara imagens violentas, grotescas, cruéis, por vezes gratuitamente cruéis, o que assusta mais. Tomo um pouco de vinho para acompanhar o almoço, que de outra forma seria inviável, e descubro que o vinho age sobre a acidez da vida. Percebo que o anagrama das letras da última oração, age sobre a acidez da vida, é quase agridoce.

Emily Dickinson

Banir a Mim ― de Mim ―
Fosse eu Capaz ―
Fortim inacessível
Ao Eu Audaz ―

Mas se meu Eu ― Me assalta ―
Como ter paz
Salvo se a Consciência
Submissa jaz?

E se ambos somos Rei
Que outro Fim
Salvo abdicar-
Me de Mim?


Me from Myself — to banish —
Had I Art —
Impregnable my Fortress
Unto All Heart —

But since Myself — assault Me —
How have I peace
Except by subjugating
Consciousness?

And since We're mutual Monarch
How this be
Except by Abdication —
Me — of Me? 

DICKINSON, Emily. Não sou ninguém: poemas. Trad. Augusto de Campos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008, p.56-57.