Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 31 de julho de 2012

intensidade

Um poema, um verso, uma palavra qualquer traço que, na ponta extrema dos dedos, possa (aqui falha o verbo...), possa dar conta da intensidade do dia que ora finda. Coisas que não se dizem impunemente, mas que pedem para ser ditas, nem que seja através do ruído.  É preciso fazer respirar profundamente o verbo, para que ele possa reverberar para além dos circuitos da razão.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

lendo clarice lispector antes de dormir

“Aceito esta minha cabeça à chuva tremeluzente da primavera, aceito que eu existo, aceito que os outros existam porque é direito deles e porque sem eles eu morreria, aceito a possibilidade do grande Outro existir apesar de eu ter rezado pelo mínimo e não me ter sido dado.”

Clarice Lispector. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.141. Da crônica “Eu sei o que é primavera”.

domingo, 29 de julho de 2012

Fallen Art (Tomek Baginski): bizarro, desconcertante, assustador...

Fallen Art from Mata Leao on VimeoTambém no youtube.

clarice lispector, macacos, rio de janeiro

Vou ao dicionário saber mais sobre os saguis (agora sem trema) antes de começar, para não correr o risco de falar do primata errado. Descubro-os, entre outras coisas, pertencentes à família dos calitriquídeos: pequenos primatas, florestais, da família dos calitriquídeos, com cerca de 20 espécies, encontradas nas Américas Central e do Sul; com até 37 cm de comprimento do corpo, cauda longa e não preênsil, pelagem macia e densa, de colorido variável, unhas em forma de garra e polegar não oponível; vivem em pequenos grupos e se alimentam principalmente de insetos e frutas. Então, são mesmo saguis os pequenos primatas que ouço e vejo (mais ouço que vejo) todo dia nas imediações de onde moro. Pequenos, delicados, reúnem-se nas árvores do outro lado da rua. Já me acostumei a ouvi-los, principalmente pela manhã. A memória imediata despertada foi o sítio de minha irmã em Domingos Martins. É como se pudesse ter um torrão de lá aqui, no andar alto de um prédio localizado em via bastante movimentada. E foi talvez pela súbita familiaridade com os saguis, com sua companhia benfazeja, que a notícia da morte por envenenamento de seis macacos no bairro Jardim Botânico, zona sul do Rio de Janeiro, ancorou mais que outras notícias, afinal sequer moro no bairro. Mas moro na mesma cidade, e se já havia lido outras vezes a crônica “Macacos” de Clarice Lispector, agora a cidade enveredou-se ao texto: “Meus sentimentos desviavam o olhar. A inconsciência feliz e imunda do macacão-pequeno tornava-me responsável pelo seu destino, já que ele próprio não aceitava culpas. Uma amiga entendeu de que amargura era feita a minha aceitação, de que crimes se alimentava meu ar sonhador, e rudemente me salvou: meninos do morro apareceram numa zoada feliz, levaram o homem que ria, e no desvitalizado Ano Novo eu pelo menos ganhei uma casa sem macaco.” (Os melhores contos de Clarice Lispector. 3.ed. São Paulo: Global, 2001, p.99).

Orides Fontela

A CHUVA
lavou-me
toda
sem deixar vestígios
de ontem.

FONTELA, Orides. Poesia reunida. São Paulo: Cosac Naify: Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.234.

ATIRE SE PUDER - NELSON LEIRNER

A  coleção de Gilberto Chateubriand exposta no MAM-Rio é bastante diversificada, indo de nomes representativos do  modernismo ao contemporâneo. Neste último, uma instalação, situada num local de passagem, obriga parada: “Atire se Puder”, de Nelson Leirner (2001). A disposição dos revólveres lembra, estranhamente,  as prateleiras de um supermercado, com os produtos apontados ameaçando o consumidor (dentro de um supermercado, todo mundo torna-se um pode ser um dos recados). Mas a agressividade da instalação ultrapassa a metáfora, qualquer que seja ela, pois as armas (de plástico) estão apontadas para quem vê a instalação de frente (a não ser que se evite fazê-lo, o que, pela própria agressividade de tudo, é mais do que desejável). Ao perceber, lateralmente,  do que se trata, ou seja, ao perceber as armas apontadas, há um movimento irrefletido de recuo, de tentar passar sem se sentir mirado por aquilo, pelas armas (apontadas). O verbo no imperativo (“atire”)  vem seguido de dois termos semanticamente dubitativos: a conjunção “se” e o verbo “poder” conjugado no modo da possibilidade, o subjuntivo (“puder”). Não é “atire se quiser”, o que daria a sensação de poder: é “atire se puder”, ou seja, se conseguir, se alcançar fazê-lo, se estiver ao (seu) alcance... colocando, desse modo, o espectador na posição de mirado, de alvo, já que o enunciado-título lança o desafio de ter cacife para a concretização do dito, da transformação da potência em ato ― mas quem quer fazê-lo? Atirar em quem? Por quê? Qual seria o alvo daquelas armas, assaz bélicas, já que se pressupõe o rechaço da violência em qualquer tentativa mínima de humanização? Violência que insiste em se presentificar, em incomodar, em voltar sempre, em deixar sua marca indelével nas vítimas, nas suas mais diferentes formas e manifestações. É como se a instalação pudesse dizer: não se pode evitar a violência, resta saber de qual lado se consegue estar, o que certamente traz o incômodo de perceber a onipresença de alguma forma de poder em qualquer lugar discursivo e social que  se ocupe. A arte, então, surge como uma suspensão desses lugares-discursos, porque nela pode-se encontrar alguma remissão, uma tentativa de saída, de esvaziar a belicosidade do poder. A potência (de que tipo, aliás?) ― “ATIRE” ― apresenta-se circunscrita ao campo do poder, um poder agressivo, armado, letal. Então as coisas podem, também, voltar para a prateleira do supermercado e ganhar o desconforto de uma metáfora: o capitalismo.