Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 21 de agosto de 2010

pseudo blues


Depois de uma experiência indescritível proporcionada pelo contato com essa cidade maravilhosa chamada Rio de Janeiro, percebi que era inevitável dar um tratamento diferenciado à música que coloquei no post anterior, o qual aliás teve seu destino selado por esta experiência - estava banal, comum demais, e a música ficou deslocada. Pois bem, me redimo e dou à canção o seu devido lugar, o lugar da poesia, do mistério, da experiência que produz comoção - "o certo é incerto, / o incerto é uma estrada reta / de vez em quando acerto / depois tropeço no meio da linha" [poema de Jorge Salomão musicado por Nico Rezende]. 

Fernando Pessoa

Tudo quanto de desagradável nos sucede na vida – figuras ridículas que fazemos, maus gestos que temos, lapsos em que caímos de qualquer das virtudes – deve ser considerado como meros acidentes externos, impotentes para atingir a nossa substância da alma. Tenhamo-los como dores de dentes, ou calos, da vida, coisas que nos incomodam mas são externas ainda que nossas, ou que só tem que supor a nossa existência orgânica ou que preocupar-se o que há de vital em nós.
Quando atingirmos tal atitude, que é, em outro modo, a dos místicos, estamos defendidos não só do mundo mas de nós mesmos, pois vencemos o que em nós é externo, é outrem, é o contrário de nós e por isso nosso inimigo.

PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Org. Richard Zenith. São Paulo: Companhia de Bolso, 2006, p.178.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Graciliano Ramos e a renovação modernista da linguagem

Trecho de entrevista concedida por Graciliano Ramos a Homero Senna, em 1944:


H S – Sabe que é apontado como um dos nossos escritores modernos que melhor manejam o idioma?
G R Conversa. Talvez, se houvesse alguma verdade nisso, eu devesse muito aos caboclos do Nordeste, que falam bem. É lá que a língua se conserva mais pura. Num caso de sintaxe de regência, por exemplo, entre a linguagem de um doutor e a de um caboclo, não tenha dúvida, vá pelo caboclo, e não erra. Note que me refiro ao caboclo do sertão. O do litoral vai-se estrangeirando...

H S – Mas não venha me dizer que seu aprendizado da língua se fez apenas com os caboclos de Buíque e Palmeira dos Índios?
G R – Claro que não... Muitas coisas não poderiam eles ensinar-me. Está visto que tive de chatear-me lendo gramáticas.

SENNA, Homero. República das letras. Entrevista com 20 grandes escritores brasileiros. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, p. 206.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O Céu de Suely


O Céu de Suely (Brasil, Karim Aïnouz, 2006) é uma viagem poética ao universo feminino. O diretor, que já havia demonstrado maestria com Madame Satã, capta com sensibilidade os conflitos de uma mulher, Hermila, em ótima interpretação de Hermila Guedes (o diretor adotou para os personagens os mesmos nomes dos atores, uma curiosidade a mais na trama), que busca um caminho próprio entre os descaminhos do amor e acaba adotando o nome de Suely. No trailer, o personagem interpretado pelo ótimo João Miguel interpela Suely em tom de cobrança: "cadê teu macho?". Sumiu, não veio de São Paulo para a pequena Iguatu, interior do Ceará, conforme havia prometido. Hermila, tentando encontrar um destino para si mesma, descobre um estratagema para conseguir dinheiro e ir embora, e esse estratagema justifica poeticamente o título do filme - o céu de suely - que dá azo a outras interpretações. O que há de feminino em O Céu de Suely? Muita coisa, mas principalmente o direito da mulher de fazer suas escolhas, algo abordado com extrema delicadeza e sensibilidade. A cena final, inesquecível, dá a medida dessas escolhas.

Viviane Mosé

P.S. (pré-escrito): todos os poemas do livro Pensamento chão são sem título. Fui fazendo uma seleção aleatória, privilegiando poemas curtos. Como são vários, não indiquei página, para não tirar o prazer da leitura.


O poema é o delírio do tempo rompido

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Cada um só sabe mesmo as coisas que suporta saber
Não sabe outras

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Acho que o ofício de ser gente me excessiva.
Pessoas são pessoas o tempo todo demais.
Ser gente me excessiva.
Gente me excessiva.
E me falta

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Eu parei de lutar contra o tempo.
Ando exercendo instante.

Acho que ganhei presença

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Medo é um sopro no peito em busca de definição.
Humano é o nome do ser que sabe dizer não

Viviane Mosé. Pensamento chão. Poemas em prosa e verso. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Marcelo Diniz

O Primeiro Leitor

Há aquele que atira
no escuro, ou se atira
no branco, ou melhor,
o que nada sabe e nada
no branco e mergulha
no escuro, leitura
em braile no absoluto  vozes
apenas em seus ouvidos,
mil braças e nenhuma
notícia de sereias  atrás
do que, rasgo, nada
além de luz, movimento
sem promessa que não
seja fuga acesa e risco
de afogar-se na indistinta
noite de todas as vésperas.

DINIZ, Marcelo. Cosmologia. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004, p. 51.

caderno de caligrafia

Uma coisa que me atrai nos blogs são aquelas palavrinhas que as pessoas escolhem para falar de si, de seus projetos de escrita. No meu caso, demorei quase um ano para colocar por aqui um textinho que falasse de mim enquanto escrita/enunciação. Antes, essa necessidade simplesmente não havia se colocado, ou não assomava como tal, e então era melhor não falar nada. Dentro deste espírito, me chamou a atenção tanto o novo nome - Caderno de Caligrafia - quanto o texto que meu amigo Luigi Lopes escolheu para caracterizar seu blog, talvez porque nenhum caderno de caligrafia (no interior onde nasci falavam "caderno de pauta dupla") tenha dado jeito na minha letra sofrível, embora legível, para o mal dos pecados dos meus alunos. Tomo a liberdade de reproduzir:

DAS BELAS LETRAS E DAS FEIAS TAMBÉM

Quando eu era pequeno, usava um Caderno de Caligrafia. Ao contrário do que se pode imaginar, nenhum caderno de caligrafia é o registro de uma bela letra. Apenas aqueles que sentem o peso de desenhar letras, precisam usar um caderno assim. Ainda que por meio dele se queira domesticar a letra de tal modo que ela se torne bela, todo caderno de caligrafia consiste no resíduo do torto, do feio e do selvagem. Este blog é um pouco disso, uma oportunidade de esboçar, inscrever os vestígios ou resíduos daquilo que de outra forma não seria escrito, ensaios de outras palavras que se preparam para vir à luz, espaço para o efêmero. 

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

"O que eu quero contar é tão delicado quanto a própria vida" - Clarice Lispector

Há mulheres - não importa com quantos véus de mistério se escondam (ou se revelem) - que mantêm algo intocável: o pudor. O pudor é aquilo que lentamente se constrói na relação com o próprio corpo, um modo muito particular de se relacionar com o que a Clarice Lispector narra na crônica "A descoberta do mundo": "Porque o mais surpreendente é que, mesmo depois de saber de tudo, o mistério continuou intacto. Embora eu saiba que de uma planta brota uma flor, continuo surpreendida com os caminhos secretos da natureza. E se continuo até hoje com pudor não é porque ache vergonhoso, é pudor apenas feminino. Pois juro que a vida é bonita." (A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.115). 

Ararat (Atom Egoyan, Canadá/França, 2002)

Ararat não é um filme fácil. É um filme político, no sentido forte da palavra, e o entrecruzamento dos planos político e existencial, na tessitura fina da fórmula filme dentro do filme, rende um enredo que prende a atenção do início ao fim ― acima de tudo, uma história profundamente humana. Cada personagem carrega consigo um conflito a ser elaborado ― e talvez a grande mensagem do filme seja um apelo à tolerância, ao convívio com a diferença. Reproduzo aqui o trecho inicial de um comentário que encontrei, que ajuda a situar a história: “Ararat não é um grande filme mas é certamente um filme que tinha de ser feito e um filme que merece ser visto. Ararat é também a maior montanha do atual território da Turquia, próxima das fronteiras com o Irã e com a Armênia, e o símbolo nacional deste último país, ainda que se encontre em território turco. Ararat assistiu a partir do dia 24 de Abril de 1915 ao extermínio maciço de cerca de um milhão de armênios pertencentes ao então decadente Império Otomano. Ainda hoje o governo turco nega que tal genocídio tenha acontecido. Antes da invasão da Polônia, Hitler teria dito aos seus oficiais: ‘Afinal quem se lembra do extermínio dos armênios?’” (Portal Cinema). Não há propriamente um eixo central, mas várias narrativas se cruzando, perpassadas pela questão: como lidar com, e resgatar, algo de que a memória coletiva não chega a tomar conhecimento, enquanto a memória pessoal (ou quem sabe de um grupo) não consegue olvidar? De que forma a arte pode resgatar essa memória? Talvez por aí se possa escolher um eixo, a vida do pintor Arshile Gorky, que tem sua história (não se sabe com que dose de ficção) filmada na técnica "filme dentro do filme". Então muito do filme gira em torno da arte ― há uma sofisticação intelectual tangenciando todas aquelas vidas, o que aguça a angústia em relação à luta pelo resgate de uma memória que tende a ser obscurecida. Mas a questão aqui é outra: nenhuma sinopse ou comentário dá conta de Ararat ― o único jeito é assistir, não importa se para gostar ou detestar.
Arshile Gorky, Good Hope Road (Hugging), 1945
oil on canvas, 64.7x82.8 cm (25-1/2 x 32-5/8 in.)
Thyssen-Bornemisza collection
fonte: 
http://www.martinries.com/article2007AG.htm

janelas abertas


Janelas abertas n° 2 
Caetano Veloso

Sim, eu poderia abrir as portas que dão pra dentro
Percorrer, correndo, corredores em silêncio
Perder as paredes aparentes do edifício
Penetrar no labirinto
O labirinto de labirintos
Dentro do apartamento

Sim, eu poderia procurar por dentro a casa
Cruzar uma por uma as sete portas, as sete moradas
Na sala receber o beijo frio em minha boca
Beijo de uma deusa morta
Deus morto fêmea, língua gelada
Língua gelada como nada

Sim, eu poderia em cada quarto rever a mobília
Em cada um matar um membro da família
Até que a plenitude e a morte coincidissem um dia
O que aconteceria de qualquer jeito

Mas eu prefiro abrir as janelas
Pra que entrem todos os insetos
 


Oscar Gama Filho

NUM POEMA, CURTO

Sou igual a todos
e a tudo sou diverso de mim.
Não sou igual mesmo assim.
Me perdi antes do filme ter fim.

O passado bate à porta.
O futuro também.
Sólido no momento presente,
Não estou para ninguém.

Real é o que existe.
Minha alma é uma lâmina cega
embutida no fio da navalha.

Ás de paus que se perde no que faz
e no fazer do sim que não se faz-se,
Em que máscara perdi minha face?

Minha pequena, tenha calma:
O corpo é apenas
o caminho para a alma.

O poeta semeia o impossível
e o seu coração.
O impossível cresce. Ele, não.

Se amas o que tu amas,
Não o tragas sempre junto assim.
Perde-o, de vez em quando,
E de novo o acharás  ̶  junto a ti.

Meu amor é meu remédio:
Cura tudo,
Menos o tédio.

Eis a arte da festa:
Chegar na hora exata.
Sair na hora certa.

Estes olhos não são meus:
Eu não era tão seu.
Tiraram, devagar, meus olhos
e derramaram petróleo no lugar.
A visão do negror enxerga mais fundo
a cegueira que alvorece o mundo.

Essas flores parecem mortas, senhora,
Mas não estão não,
A beleza é maior do que a vida
E as faz renascer no coração.

[A parte que nos toca: literatura brasileira feita no Espírito Santo.Org. Miguel Marvilla e Reinaldo Santos Neves. Vitória: Florecultura, 2000, p.183-184.]

Paulo Roberto Sodré

5. Embaraço

Cair sobre si mesmo
é belo como girassol olhando Hélio.

Mas é queda.

[A parte que nos toca: literatura brasileira feita no Espírito Santo. Org. Miguel Marvilla e Reinaldo Santos Neves. Vitória: Florecultura, 2000, p.192.]

Orlando Lopes

[...]
O fim do amor é labiríntico
Ainda
De pedra
É peça que sobre peça a palavra desarma
E vai fazendo pequenos alardes
Dando ao chão o floreio da morte que desabrocha
Em mosaico perfeito – mesmo que bruto –
Desenho do luto
Do amor desfeito

[A parte que nos toca: literatura brasileira feita no Espírito Santo. Org. Miguel Marvilla e Reinaldo Santos Neves. Vitória: Florecultura, 2000, p.173.]

domingo, 15 de agosto de 2010

o nome da rosa

“Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume.” (William Shakespeare). Não é gratuito o título do romance mais famoso de Umberto Eco, O nome da rosa, que rendeu uma adaptação cinematográfica razoável, em termos de trama, passando todavia ao largo da importante discussão semiótica que a obra levanta. E embora eu tenha lido o livro duas vezes, lamento que sua parte mais rica tenha ficado para trás, junto com a leitura. Lembro-me, todavia, de um pós-escrito que autor publicou, referindo Borges como uma de suas fontes. De fato, e no filme isso fica bem marcado, há um cego tirânico, com olhos azuis incrivelmente claros, que domina a biblioteca, o acesso às obras - quer dizer, decide os caminhos que o conhecimento poderá tomar. Não sei mais onde li isso, mas cego em biblioteca só pode dar Borges (acho que foi o próprio Umberto Eco que falou). O que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume? 

Pablo Antonio Quadra

A rosa

Quem se arrima à rosa
não tem sombra.

Eu busquei a beleza
e o sol me queimou.

BANDEIRA, Manuel. "Poemas traduzidos". In: Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 432.

Juan Ramón Jiménez

A noite

O dormir é como ponte
Que leva de hoje a amanhã:
Por debaixo, como um sonho
A água passa, e passa a alma.

BANDEIRA, Manuel. Poemas traduzidos. In:___. Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 419.

Rodrigo Santoro em "Bicho de Sete Cabeças" (Brasil, 2001)