Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 6 de março de 2010

Cacaso

E com vocês a modernidade

Meu verso é profundamente romântico.
Choram cavaquinhos luares se derramam e vai
por aí a longa sombra de rumores ciganos.

Ai que saudade que tenho de meus negros verdes
anos!

HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). 26 poetas hoje.  Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007, p.42.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Picasso, arte, política e polícia

Prosseguindo no relato, Nicolau Sevcenko brinda o leitor com a seguinte pérola:

"A afinidade de Picasso com as esculturas ibéricas do período anterior ao romano vinha desde suas ligações com o movimento autonomista da Catalunha, também sediado em Barcelona. Escavações recentes haviam descoberto esse material, que foi rapidamente incorporado como evidência de uma cultura catalã autônoma e antiga nos meios irredentistas, ao mesmo tempo que era exibido publicamente em Paris como curiosidade exótica. Picasso possuía algumas dessas estatuetas, compradas de um amigo, um traficante de arte belga, que dividia o aposento com Apollinaire, e que as roubava assiduamente à coleção do Museu do Louvre." (SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 195.) Neste ponto do relato, Sevcenko insere uma nota e remete o leitor às páginas finais do livro: "Esse traficante belga de arte era um típico exemplar da boemia parisiense. Seu nome era Gery Pieret, e trabalhava como uma espécie de secretário para Apollinaire como pagamento por compartilhar o alojamento com o poeta. Ao que parece, ele tinha obscuras origens anarquistas e veleidades artísticas, que o levaram a contínuas visitas ao Louvre. Ali ele se apercebeu da precariedade geral do sistema de vigilância, passando a roubar pequenos objetos. Que ele roubasse precisamente o que interessava a Picasso, em cujas mãos os objetos iam sempre acabar, parece ser indicativo de que suas atividades clandestinas eram orientadas a partir do Bateau-Lavoir. Um belo dia, precisamente no dia 22 de agosto de 1911, Gery Pieret decidiu mudar o curso de sua vida e partiu para um golpe mais ousado: ele roubou a Monalisa. Roubou e sumiu-se de Paris. Logo que iniciadas, as investigações levaram a Apollinaire e Picasso. Os dois tentaram jogar as estatuetas roubadas no Sena durante a madrugada, mas acabaram depositando as obras numa caixa de correio, endereçadas ao diário Paris Journal. Na sequência, Apollinaire seria detido na prisão de Santé, onde ficaria cerca de um mês até ser libertado, enquanto Picasso se refugiava no interior do país, para evitar ser deportado e entregue ao Exército espanhol, em cujas mãos muito provavelmente teria sido executado como anarquista e desertor." (Idem, p. 336, nota 103)

O surgimento do Cubismo em Picasso, narrado por Nicolau Sevcenko

O episódio narra o contexto de criação do quadro Les demoiselles d' Avignon (1907), que instaura o Cubismo. Segue o relato de Sevcenko: 

"Picasso viera de Barcelona entusiasmado com o realismo de denúncia da miséria e desagregação social, que tinha ali um dos seus principais núcleos de difusão. Essa fora a linguagem de seus primeiros anos em Paris, durante as chamadas fases azul e rosa, voltada para a representação dos párias dos arrebaldes a primeira e as personagens das artes populares mambembes a segunda. Foram a boemia parisiense e Jarry [idealizador do balé multiartístico "Parade"] que fundaram a revolução Picasso. // Essa revolução ocorreu em 1907 e se chamou Les demoiselles d' Avignon. Picasso a criou em sua casa-estúdio, chamada Bateau-Lavoir por sua semelhança com as embarcações-residências de madeira das lavadeiras do Sena. O Bateau-Lavoir era um foco da elite boêmia e anarquista, sendo alvo de vigilância e batidas policiais, com a grossa maioria de seus frequentadores, inclusive Picasso, fichados na polícia. Depois de um amplo período de ensaios e experiências, Picasso partiu para criar as "demoiselles", com o objetivo propício de compor uma obra de impacto. (...) As fontes de que Picasso hauriu para compor o quadro foram várias e díspares e a todas ele proviu uma reformulação e um contexto originais. A amplitude de alcance do seu empenho catalítico ia desde um acadêmico festejado, como Jean-Auguste Dominique Ingres, de quem ele absorveu a modelagem anticonvencional dos nus, até as ousadias cromáticas, o chapamento bidimensional das formas assinaladas pelo contorno desenhado e a decomposição do espaço em campos de cores justapostas sem profundidade ou perspectiva dos fauves, sobretudo Matisse. Cézanne, homenageado após sua morte com uma grande exposição retrospectiva em 1906, forneceu principalmente a geometrização elementar das formas, a volumetria do espaço, o adensamento, homogenia e autonomia plástica da composição. A pantomima, o teatro popular, mas acima de tudo o cinema cômico-experimental de Méliès, a coqueluche da população suburbana de Montmartre, sugeriram a mobilidade do foco, a múltipla perspectiva, o desdobramento das imagens, a simultaneidade cronológica e a livre intercambialidade de todos os elementos da composição entre si e com elementos externos. Foi o que propiciou a abertura para a introdução desses dois elementos heteróclitos que implodiriam o gênero pintura tal como se conhecia até então: a arte ibérica arcaica e arte negra africana." (SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 194-195.)

quinta-feira, 4 de março de 2010

Raízes do Brasil: o homem cordial

"Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade - daremos ao mundo o 'homem cordial'. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter do brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados pelo meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar 'boas maneiras', civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilização há qualquer coisa de coercitivo - ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças. Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinários do convívio social, chega a ponto de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa. (...) // Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência - e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no 'homem cordial': é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso a polidez é, de alguma forma, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas sua sensibilidade e suas emoções. // (...) No 'homem cordial', a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, periférica, que no brasileiro - como bom americano - tende a ser a que mais importa. Ela é antes um viver nos outros. Foi a esse tipo humano que se dirigiu Nietzsche, quando disse: 'Vosso mau amor de vós mesmos vos faz do isolamento um cativeiro'. " (HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 146-147.)

quarta-feira, 3 de março de 2010

Uma fala histórica de Caetano Veloso - III Festival Internacional da Canção

MAS É ISSO QUE É A JUVENTUDE QUE DIZ QUE QUER TOMAR O PODER... Vocês têm coragem de aplaudir este ano uma música, um tipo de música, que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado. São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem. VOCÊS NÃO ESTÃO ENTENDENDO NADA, NADA, NADA, ABSOLUTAMENTE NADA! Hoje não tem Fernando Pessoa [Caetano refere-se ao poema que fazia parte da apresentação da música “É proibido proibir”] Hoje eu vim dizer aqui que quem teve a coragem de assumir a estrutura do Festival, não com medo do Sr. Chico de Assis pediu [trecho confuso], mas com a coragem, quem teve essa coragem, de assumir essa estrutura, e fazê-la explodir, foi Gilberto Gil e fui eu, não foi ninguém, foi Gilberto Gil e fui eu! VOCÊS ESTÃO POR FORA! [segue trecho inaudível] MAS QUE JUVENTUDE É ESSA?! QUE JUVENTUDE É ESSA?... VOCÊS JAMAIS VENCERÃO NINGUÉM! Vocês são iguais sabe a quem? Vocês são iguais sabe a quem? Àqueles que foram na [peça] “Roda-viva” e espancaram os atores. Vocês não diferem em nada deles. Vocês não diferem em nada. E por falar nisso, viva Cacilda Becker!!! Estou comprometido a dar a este [trecho inaudível] aqui. Não tem nada a ver com vocês. O problema é o seguinte: VOCÊS ESTÃO QUERENDO POLICIAR A MÚSICA BRASILEIRA [trecho inaudível] americana... Mas eu e Gil já abrimos o caminho. O que que vocês querem? Eu vim aqui pra acabar com isso. Eu quero dizer uma coisa ao júri: me desclassifiquem, eu não tenho nada  a ver com isso, nada a ver com isso. Gilberto Gil está aqui comigo para nós acabarmos com o Festival, COM TODA A IMBECILIDADE QUE REINA NO BRASIL, acabar com isso tudo de uma vez. Nós só entramos no Festival pra isso [trecho confuso]. Não fingimos aqui que desconhecemos o que seja o Festival, não. NINGUÉM NUNCA ME OUVIU FALAR ASSIM... Entendeu? Eu só queria dizer isso, baby, sabe como é? Nós, eu e ele, tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas. E vocês? E vocês? SE VOCÊS FOREM EM POLÍTICA COMO SÃO EM ESTÉTICA, ESTAMOS FEITOS!

uma historieta do millôr, cheia de humor

O SOCORRO
Millôr Fernandes

Ele foi cavando, cavando, cavando, pois sua profissão – coveiro – era cavar. Mas, de repente, na distração do ofício que amava, percebeu que cavara demais. Tentou sair da cova e não conseguiu. Levantou o olhar para cima e viu que, sozinho, não conseguiria sair. Gritou. Ninguém atendeu. Gritou mais forte. Ninguém veio. Enrouqueceu de gritar, cansou de esbravejar, desistiu com a noite. Sentou-se no fundo da cova, desesperado. A noite chegou, subiu, fez-se o silêncio das horas tardias. Bateu o frio da madrugada e, na noite escura, não se ouvia um som humano, embora o cemitério estivesse cheio de pipilos e coaxares naturais dos matos. Só pouco depois da meia noite é que lá vieram uns passos. Deitado no fundo da cova o coveiro gritou. Os passos se aproximaram. Uma cabeça ébria apareceu lá em cima, perguntou o que havia: “O que é que há”?
O coveiro então gritou, desesperado: “Tire-me daqui, por favor. Estou com um frio terrível!” “Mas, coitado!” – condoeu-se o bêbado – “Tem toda razão de estar com frio. Alguém tirou a terra de cima de você, meu pobre mortinho!” E, pegando a pá, encheu-a de terra e pôs-se a cobri-lo cuidadosamente.

MORAL: nos momentos de necessidade é preciso olhar muito bem pra quem se pede ajuda.

Fábulas fabulosas. São Paulo: Círculo do Livro, s/d, p. 13.

Décio Pignatari: "terra"

(http://www.poesiaconcreta.com.br/poetas.php?poeta=dp#)

segunda-feira, 1 de março de 2010

Clarice Lispector

A quinta história

Esta história poderia chamar-se “As Estátuas”. Outro nome possível é “O Assassinato”. E também “Como Matar Baratas”. Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.
A primeira, “Como Matar Baratas”, começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que misturasse em partes iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de-dentro delas. Assim fiz. Morreram.
A outra história é a primeira mesmo e chama-se “O Assassinato”. Começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra o assassinato. A verdade é que só em abstrato me havia queixado de baratas, que nem minhas eram: pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício até o nosso lar. Só na hora de preparar a mistura é que elas se tornaram minhas também. Em nosso nome, então, comecei a medir e pesar ingredientes numa concentração um pouco mais intensa. Um vago rancor me tomara, um senso de ultraje. De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranqüila. Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me guiavam. Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a gente, cansada, sonha. E eis que a receita estava pronta, tão branca. Como para baratas espertas como eu, espalhei habilmente o pó até que este mais parecia fazer parte da natureza. De minha cama, no silêncio do apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma até a área de serviço onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no varal. Acordei horas depois em sobressalto de atraso. Já era de madrugada. Atravessei a cozinha. No chão da área lá estavam elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em nosso nome, amanhecia. No morro um galo cantou.
A terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. Começa dizendo que eu me queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora. Vai indo até o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda sonolenta atravesso a cozinha. Mais sonolenta que eu está a área na sua perspectiva de ladrilhos. E na escuridão da aurora, um arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca. Sou a primeira testemunha do alvorecer em Pompéia. Sei como foi esta última noite, sei da orgia no escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras — subitamente assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava! — essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te... Elas que, usando o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja de branco, terá adivinhado tarde demais que se mumificara exatamente por não ter sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: “é que olhei demais para dentro de mim! é que olhei demais para dentro de...” — de minha fria altura de gente olho a derrocada de um mundo. Amanhece. Uma ou outra antena de barata morta freme seca à brisa. Da história anterior canta o galo.
A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Vai até o momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho para os canos, por onde esta mesma noite renovar-se-á uma população lenta e viva em fila indiana. Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal? como quem já não dorme sem a avidez de um rito. E todas as madrugadas me conduziria sonâmbula até o pavilhão? no vício de ir ao encontro das estátuas que minha noite suada erguia. Estremeci de mau prazer à visão daquela vida dupla de feiticeira. E estremeci também ao aviso do gesso que seca: o vício de viver que rebentaria meu molde interno. Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem “adeus”, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou minha alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de virtude: “Esta casa foi dedetizada”.
A quinta história chama-se “Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia”. Começa assim: queixei-me de baratas.

Melhores contos de Clarice Lispector. Org. Walnice Nogueira Galvão. Rio de Janeiro: Global, 2001, p. 18-20. 

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Chapeuzinho Vermelho e Dom Quixote num conto de Guimarães Rosa

FITA VERDE NO CABELO
(Nova velha estória)

Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam. Todos com juízo, suficientemente, menos uma meninazinha, a que por enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá, com uma fita verde inventada no cabelo.
Sua mãe mandara-a, com um cesto e um pote, à avó, que a amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia. Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era uma vez. O pote continha um doce em calda, e o cesto estava vazio, que para buscar framboesas.
Daí, que, indo, no atravessar o bosque, viu só os lenhadores, que por lá lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham exterminado o lobo. Então, ela, mesma, era quem se dizia: – “Vou à vovó, com cesto e pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a mamãe me mandou”.  A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele moinho, que a gente pensa que vê, e das horas, que a gente não vê que não são.
E ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e longo, e não o outro, encurtoso. Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra também vindo-lhe correndo, em pós. Divertia-se com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em buquê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeiinhas flores, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por elas passa. Vinha sobejadamente.
Demorou, para dar com a avó em casa, que assim lhe respondeu, quando ela, toque, toque, bateu:
“Quem é?”
“Sou eu...” – e Fita-Verde descansou a voz. – “Sou sua linda netinha, com cesto e pote, com a fita verde no cabelo, que a mamãe me mandou.”
Vai, a avó, difícil, disse: – “Puxa o ferrolho de pau da porta, entra e abre. Deus te abençoe.”
Fita-Verde assim fez, e entrou e olhou.
A avó estava na cama, rebuçada e só. Devia, para falar agagado e fraco e rouco, assim, de ter apanhado um ruim defluxo. Dizendo: – “Depõe o pote e o cesto na arca, e vem para perto de mim, enquanto é tempo.”
Mas agora Fita-Verde se espantava, além de entristecer-se de ver que perdera em caminho sua grande fita verde no cabelo atada; e estava suada, com enorme fome de almoço. Ela perguntou:
“Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão trementes!”
“É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta...” – a avó murmurou.
“Vovozinha, mas que lábios, aí, tão arroxeados!”
“É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta...” – a avó suspirou.
“Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encovado, pálido?”
“É porque já não te estou vendo, nunca mais, minha netinha...” – a avó ainda gemeu.
Fita-Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez.
Gritou: – “Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!...”
Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo.

ROSA, João Guimarães. Ave palavra. In: Ficção completa, v. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 981-982.