Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 13 de outubro de 2019

Poema da Inútil Busca - João Carlos Teixeira Gomes

Onde estou, que já me esqueço,
mais evadido que achado,
por sob a máscara de gesso
com que oculto o meu fado?

Porque tenho que esconder-me
pondo nos cantos da boca
um tal sorriso que, ao ver-me,
deplore essa glória oca?

Eu, que me chamo João,
aonde irei, se não fui chamado,
perdendo os passos no chão
sem que chegue a qualquer lado?

Que mulher de porte egrégio
há-de servir-me de porto
jungida ao meu sortilégio
com um olho aceso e outro morto?

Onde estará meu destino
de rei sem manto ou coroa
rendido ao seu desatino
de pedir à dor que não doa?

E o cão que outrora tive
de magoado focinho
acaso é morto ou ainda vive
perdido do meu carinho?

Onde os amigos fiéis
que morreram, de tão poucos?
Ao meu olhar de revés
onde vê-los, sãos ou loucos?

Onde estou, que já me esqueço,
mais evadido que achado,
por sob a máscara de gesso
com que oculto o meu fado?


BRAGA, Rubem. A poesia é necessária. Org. André Seffrin. São Paulo: Global, 2015, p.146-147.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

lido por aí

"O Brasil nunca foi um país sério, mas não precisava ter virado um país triste."

domingo, 7 de julho de 2019

Drummond: "A grande dor das cousas que passaram" - Farewell


Herberto Helder: a paixão grega

Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega

Herberto Helder, A Faca Não Corta o Fogo. Assírio & Alvim, Lisboa: 2008. (daqui)

sábado, 6 de julho de 2019

de vez

Professor de português
perde a cabeça de vez.
Nada há a fazer
a não ser um poema
sobre frutos ainda
de vez.

Ana Cristina César: "Psicografia"

Também eu saio à revelia
e procuro uma síntese nas demoras
cato obsessões com fria têmpera e digo
do coração: não soube e digo
da palavra: não digo (não posso ainda acreditar
na vida) e demito o verso como quem acena
e vivo como quem despede a raiva de ter visto

CÉSAR, Ana Cristina. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p.193.