Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Herberto helder

POEMACTO
(III)

O actor acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor pôe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.

O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.

Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus, e
dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus
.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.
Como a unidade do actor.

O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.

Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas —
o actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.

Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomina.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.

O actor em estado geral de graça.

Herberto Helder. Ou o poema contínuo. São Paulo: A Girafa, 2006, p.112-115.

vinto tinto seco

Driblando essa e aquela recomendação médica — aliás, as especialidades sabem bem sê-lo quando o assunto é divergir nas restrições alimentares —, retornei ao vinho (quase) cotidiano e ao café (quase) diário, mas não ordinário. Também o cacau em pó foi reabilitado, em porções parcimoniosas. E dizer “parcimônia” é menos vulgar que “beba com moderação”. Pelo menos até a próxima crise de labirintite. 

grande canção de chico buarque

terça-feira, 29 de outubro de 2013

restos da noite

Sonhos... o que fazer deles? Não os sonhos de outrora, metamorfoseados em “hoje”, mas os originais, que comparecem noite após noite trazendo ecos de um mundo pouco habitável. A sustentabilidade dos sonhos — quase um clichê —, fantasmas noturnos dos quais restam borboletas, não por comportarem beleza, mas pelo efeito da imagem saltitante e fugidia no terreno da memória. De intrincados enredos emergem lepidópteros fugidios, que aos poucos se dispersam com as primeiras luzes do dia. Camadas e camadas de inconsciente removidas enquanto se dorme. Por que sonhamos? Uma explicação biológica dirá que são um traço evolutivo, uma espécie de compensação noturna para as tensões diurnas, uma forma do organismo colocar-se em equilíbrio. Mas se permanecem com o dia, estão pedindo algo do corpo que lhes serviu de palco, ainda que seja essa parca escrita, circular e evasiva, forma de continuarem batendo asas para além do efêmero do imago. 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Rio pós-moderno

O trânsito dessa cidade está muito ruim — péssimo é o termo adequado. E sua propalada beleza, fonte de divisas na exploração do turista, anda sofrendo reveses. Há seis anos, quando vinha fazer pesquisas para a tese na Biblioteca Nacional, sem imaginar que em breve iria transferir minha vida para cá, apaixonei-me pelo centro da cidade, a arquitetura preservada do tempo do Império, a elegância da Rio Branco. Mas a geografia do centro do Rio mudou bastante após o fenômeno das manifestações. Agora os tapumes dominam a fachada das agências bancárias, bem como de alguns órgãos públicos, e não há redenção para tamanho mau gosto. Quem te viu, quem te vê, diria talvez Chico Buarque, se estivesse pontificando na cena política. O centro do Rio está feioso, perdeu o charme, a elegância da arquitetura combinada ao traço moderno. No Rio pós-moderno a política tem deixado dois rastros de destruição: um oficial, configurado no bota-abaixo do furor obreiro da prefeitura, em conluio com as esferas estadual e federal; um não oficial, fruto da violência das manifestações, inclusive contra os mandatários das obras.

suíte do pescador

Paulo Henriques Brito

DE VULGARI ELOQUENTIA

A realidade é coisa delicada,
de se pegar com as pontas dos dedos.

Um gesto mais brutal, e pronto: o nada.
A qualquer hora pode advir o fim.
O mais terrível de todos os medos.

Mas, felizmente, não é bem assim.
Há uma saída — falar, falar muito.
São as palavras que suportam o mundo,
não os ombros. Sem o "porquê", o "sim",

todos os ombros afundavam juntos.
Basta uma boca aberta (ou um rabisco
num papel) para salvar o universo.
Portanto, meus amigos, eu insisto:
falem sem parar. Mesmo sem assunto.

Paulo Henriques Brito. Macau. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.18.

Enem propõe tema chapa-branca para redação

No ano em que protestos e manifestações — deflagrados por reivindicações por melhorias nos transportes públicos — sacudiram o país, mudando a imagem que o poder tinha dos brasileiros, o governo propõe como tema supostamente relevante para discussão entre jovens que estão terminando o ensino médio a chamada lei seca. Nas ruas, nas manifestações, os jovens propuseram várias pautas de discussão e negociação, levantaram debates até então engavetados e considerados pouco importantes pelo poder. Debates que ninguém imaginaria viessem à tona. Na redação do Enem, todavia, os jovens, os mesmos das manifestações, foram convidados a falar de um tema fora de foco, digamos assim. Não é que a lei seca não seja importante. Como outras leis, merece toda a atenção da sociedade. Mas ela já foi debatida e implementada, não é mais a bola da vez. Sabe-se, ademais, que as redes sociais são usadas para evitar flagrantes do bafômetro. Em adição, está pressuposto no tema, ao contrário das reivindicações por melhorias nos transportes públicos, que esses jovens serão futuros proprietários de automóveis, e que deverão beber com moderação, evitando fazê-lo quando forem dirigir seus carros. Perfeito. Mas trata-se de um horizonte burguês, portanto prevendo um jovem enquadrado em um lugar social e profissional, dobrado às imposições (ou necessidade, talvez) de ter um automóvel e usá-lo de forma responsável. Mais um pouco e o Enem se transforma em um manual de instruções para a vida adulta regrada. Por esse prisma, não é de espantar que, no exame de 2012, um candidato tenha inserido uma receita de macarrão instantâneo no texto. E o protagonismo juvenil? E a luta por educação, saúde e serviços públicos de qualidade? E as tantas outras leis importantes, que vêm passando ao largo do debate social?

tudo em casa