Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 5 de fevereiro de 2011

Bob Dylan - Tonight I'll Be Staying Here With You

Esta música do Dylan, uma canção de amor, é das coisas mais bonitas e agradáveis de se ouvir. Neste álbum, ao vivo, a interpretação é inspirada (é possível escutar aqui). A beleza de uma música está muito no poder dela de nos envolver e transportar para algum outro lugar. No youtube, só cover. Não gosto dos covers que aderem muito ao estilo do Dylan, mesmo porque aquela voz rouca e esganiçada me parece única. Gosto dos que o recriam. Jimmy Hendrix praticamente reinventou  All Along the Watchower, tornando-se uma espécie de co-autor. Aqui uma versão interessante  para Tonight I'll Be Staying Here With You

Bob Dylan: Positively 4th Street (by Bryan Ferry)


A quarta rua terá esquinas? Ou será a quarta pessoa do singular, se, trocados hipoteticamente os papéis  entre o "eu" e o "tu", fosse possível ver que a terceira pessoa não existe? E trocados esses papeis, o "eu" e o "tu" talvez estranhassem tanto o que vissem, que nunca mais tivessem certeza de sua identidade, embora continuassem refugando o tu, ao se referirem a ele (ao tu) quando estivessem com um outro eu, que, quando o eu e tu estão juntos, é ele/ela. "Yes, I wish that for just one time / You could stand inside my shoes / You'd know what a drag it is / To see you". Não precisa ser tão brutal, sertão brutal. Se, como quer a Clarice Lispector em “Ovo e a galinha”, "eu é apenas uma das palavras que se desenham enquanto se atende o telefone, mera tentativa de buscar forma mais adequada”, então o tu, do outro lado, é pura ficção, e o ele/ela de que eventualmente este eu e tu se ocupem não passa de uma projeção. Então está perdida a chance de separar o bem e o mal? Não, porque, mal ou bem, ainda se reconhece a barbárie. Se isso falhar, há sempre um modo de recorrer à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, onde a terceira pessoa está bem caracterizada e defendida. Mas eu (de novo a odiosa palavrinha) prefiro minha privacidade, minha intuição, que às vezes, por força de me fazer entender, chamo de meu anjo da guarda. Quantas vezes o eu apareceu neste breve enunciado? Cinco vezes. É difícil sair do eu, mas há em toda parte, na arte, ocasião de relativizá-lo. 

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Led Zeppelin - Kashmir



Voltei a sentir alegria. Mas só me dei conta disso quando voltava para casa, à noite. Entrei na Travessa de bobeira, e de repente havia um rosto conhecido me olhando do outro lado da estante de DVDs, um amigo que acabou de se empregar lá e que não via há algum tempo, fazendo uma espécie de jogo de reconhecimento comigo. Depois da análise, passei num shopping nas proximidades, e já que estava lá, resolvi que ia aproveitar a liquidação e comprar um vestido. Quase não os uso, mas o da defesa já está providenciado. Rodei várias lojas, nada que eu experimentava me agradava, e quando já tinha desistido e estava indo embora resolvi voltar, e tentar outros pavimentos do shopping. E aí encontrei um vestido bacana, e em outra loja, próxima, duas blusas bonitas. Então era hora de voltar. O que o Led Zeppelin tem a ver com isso tudo? É que passei numa banca e folheei uma Rolling Stone edição especial, com as 500, se não em engano, melhores canções de rock. Não comprei, ainda. Na passada de olho, vi essa música, Kashmir (aqui, em excelente áudio e vídeo), e aí lembrei dela, e lembrei que a escutava e a apreciava bastante na época da Universidade. Poderia ter postado Stairway to Heaven, mas é uma música que pede paciência, meio arrastada, ao passo que esse som tem uma potência legal. Se a alegria vai ser efêmera ou vai me dar o prazer de sua companhia por mais tempo, só mesmo o tempo...

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

sessão nostalgia - Legião Urbana: Tempo Perdido


No ônibus, um ringtone de celular me fez lembrar que já gostei bastante da Legião Urbana e de Renato Russo, trilha sonora inseparável da adolescência. 

Sous le Sable (François Ozon, França, 2000)

Sob a Areia é um suspense focalizando os desdobramentos, sobre o psiquismo de uma mulher, do incógnito desaparecimento de seu marido numa praia, então acompanhado dela. A cena inicial, na praia, é muito límpida: o marido sai e não retorna. A cena final, também na praia, é um atordoamento. Os comentários sobre o filme, como este, inspirado no universo de Virgina Woolf, apostam na morte como motivo do desaparecimento e na questão da dificuldade de elaborar o luto por parte da mulher. Mas não há evidências definitivas de que ele tenha morrido afogado. É incrível o prestígio do mito do amor eterno e seu correlato civil, o casamento. O marido simplesmente pode ter se levantado e ido embora para nunca mais, e talvez essa desconfiança seja a fonte maior da confusão mental em que a mulher mergulha, pondo em dúvida a própria relação vivida até então. É uma hipótese a ser trilhada, em vez de simplesmente apostar no happily never after de um casamento bruscamente interrompido por uma morte por afogamento, com o inconveniente do corpo não ser encontrado. As cenas ambíguas que a mulher vive, após o desaparecimento, com o marido, sugerem que esse corpo pode não ter se tornado fantasmático de uma hora para outra.

Eglantine Gouzy: Boa

[ou: várias perspectivas não perfazem um olhar]

ilusão, acaso, coincidência, engano

De tanto falar no Escher, eis que a livraria da Travessa mandou-me, no lugar de outro livro que encomendei, o catálago ilustrado da mostra que se encontra no CCBB Rio (catálogo que, na própria Travessa do CCBB, encontra-se exposto). Cheguei a tocar o livro/catálogo quando fui lá, mas o preço desanimou. Ele me chega agora em casa sem eu mover uma palha, exceto o misto de interesse e dúvida com que olhei o livro então. A quem se enganou na hora de escolher e embalar o livro, eu ternamente agradeço. Esse engano está em consonância com a obra em questão.

Life Is Hard - Bob Dylan (cover by Michael Dallas)


The evening winds are still
I've lost the way and will
Can't tell you where they went
I just know what they meant
I'm always on my guard
Admitting life is hard
Without you near me

The friend you used to be
So near and dear to me
You slipped so far away
Where did we go a-stray
I pass the old schoolyard
Admitting life is hard
Without you near me

Ever since the day
The day you went away
I felt that emptiness so wide
I don't know what's wrong or right
I just know I need strength to fight
Strength to fight that world outside

Since we've been out of touch
I haven't felt that much
From day to barren day
My heart stays locked away
I walk the boulevard
Admitting life is hard
Without you near me

The sun is sinking low
I guess it's time to go
I feel a chilly breeze
In place of memories
My dreams are locked and barred
Admitting life is hard
Without you near me

Fonte: site oficial de Bob Dylan. Para ouvir com o próprio Dylan: Rádio Uol.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

uma criança muda

Hoje, na sessão de análise, houve algo diferente. Havia uma criança chorando. A criança chorava porque havia sido traída, enganada. Eu perguntei à analista se ela via o susto em meus olhos. Foi quando a criança começou a chorar. Habitando um corpo que deveria ser, com todas as letras, de mulher, a criança não entendeu muito bem o que lhe aconteceu na infância, e o corpo da mulher, num paradoxo, guardou em seus recessos algo dessa criança. Teme perdê-la, como se fosse perder para sempre a chave de um segredo. O paradoxo é este: o corpo é de mulher, mas as questões remetem à infância. Algo falhou. E então é como se o fardo fosse pesado demais para o corpo que foi sempre magro. Não é uma criança chorando porque foi contrariada. É uma criança, pulsando no corpo de uma mulher adulta, dando um brado de socorro por não suportar o nível e o grau de questões que, repentinamente, no emergir da vida adulta, se depositaram sobre seus ombros. 

Não sei se algum dia conseguirei ser a mulher que meu corpo sugere. Tudo o que eu sempre quis foi entender minha vida. Está lá, na Carta ao pai, de Kafka, a frase decisiva da minha existência: a preocupação com a afirmação espiritual da existência tornando tudo o mais indiferente. Assim como a afirmação espiritual da existência está no centro das preocupações do filho angustiado, essa frase, mais do que o próprio livro, está no centro da minha angústia, por ter me caído no colo naquele momento em que a vida se decide, se define. Eu sou cheia de desvãos, de esquinas, de passos incertos. Quando comecei a sonhar este mundo que hoje habito, eu era toda esperança, sonho, confiança, sobretudo em mim mesma. Hoje eu sou uma interrogação que olha com insistência para trás, porque lá, no passado, na infância, está alguma coisa muito importante, meu enigma. 

trecho de conversa: "geografia"

F: E você, já é carioca?

M: Talvez você, sua vinda para cá, me ajude a me situar melhor na cidade: ainda não encontrei, geograficamente, um canto que queira chamar de meu. E assim já vou te respondendo: estou tentando, com a diferença que não tem nenhum lugar para onde eu queira voltar: sou mesmo uma emigrada.

F: Tomara que eu possa ajudar, mas pode ser que o seu terreno não seja tão geográfico, o que afinal é uma liberdade. Esse lance de substância, os filósofos já deram por encerrado há muito tempo, né?  Em lacanês, acho que é uma coisa do imaginário isso de terra natal. Você batizou superbem o próprio blog, e não foi à toa... 

literatura e ficção

“A literatura desvencilha o eu da sobrecarga e do trauma hiperssensorial, produzindo, mediante a novidade da ficção, um laboratório de mundos de sensações possíveis, sem o engate ―o hook  do ego submetido à compulsão regressiva e narcisista do uso ou consumo de drogas ou objetos.”

RAMOS, Júlio. Ficções do sujeito moderno: um diálogo improvável entre Walter Benjamin e Fernando Pessoa. Trad. Rômulo Monte Alto. In: SOUZA, Eneida Maria; MARQUES, Reinaldo (Orgs.). Modernidades alternativas na América Latina. Belo Horizonte: UFMG, 2009, p.32-55. [Agradeço ao Luiz o envio desse texto tão instigante, de que só guardava a pálida lembrança da brilhante exposição de Julio Ramos]. 



“Alterando um conceito de Otto Ranke sobre o mito, podemos dizer que a literatura é o sonho acordado das civilizações.”

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. __. Vários escritos. 4. ed. São Paulo: Duas Cidades; Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004, p.175.

Clarice Lispector: fragmentos


Antes era perfeito
Ter nascido me estragou a saúde.

As negociatas
Depois que descobri em mim mesma como é que se pensa, fazendo comigo mesma negociatas, nunca mais pude acreditar no pensamento dos outros.

Por discrição
Deus lhe deu inúmeros pequenos dons que ele não usou nem desenvolveu por receio de ser um homem completo e sem pudor.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.408.

domingo, 30 de janeiro de 2011

The Windmill Farmer (um intervalo de lirismo e inocência)

Alphamorphosis (animação)

Franz Kafka (narrativas do espólio)

PROMETEU

Sobre Prometeu dão notícia quatro lendas:
Segundo a primeira, ele foi acorrentado no Cáucaso porque havia traído os deuses aos homens, e os deuses remeteram águias que devoraram seu fígado que crescia sem parar.
De acordo com a segunda, Prometeu, por causa da dor causada pelos bicos que o picavam, comprimiu-se cada vez mais fundo nas rochas até se confundir com elas.
Segundo a terceira, no decorrer dos milênios sua traição foi esquecida, os deuses se esqueceram, as águias se esqueceram, ele próprio se esqueceu.
Segundo a quarta, todos se cansaram do que havia se tornado sem fundamento. Os deuses se cansaram, as águias se cansaram, a ferida, cansada, fechou-se.
Restou a cadeia inexplicável de rochas. A lenda tenta explicar o inexplicável. Uma vez que emerge de um fundo de verdade, ela precisa terminar de novo no que não tem explicação.

KAFKA, Franz. Narrativas do espólio. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.107.

M. C. Escher (exposição CCBB RJ)

Répteis, 1943, litografia (ilustração de uma das páginas do folder)
Fonte: site oficial de Escher

Fui conferir a mostra de Escher, mas foi apenas a primeira impressão da proposta do artista holandês, rica, sem dúvida, como um livro que pede para ser relido. De forma que terei que retornar (era fim do dia, eu estava já um pouco cansada). Estava acompanhada, bem acompanhada, por um casal amigo particularmente conhecedor e bem informado sobre a obra de Escher (ela formada em artes plásticas, ele em arquitetura), e a massa de informações era bem grande, o que julguei um privilégio. Tudo é muito rico e desafiador dos parâmetros usuais de apreensão da realidade. Fiquei sabendo muita coisa, sobre a técnica, a proposta, os modos de criação, as obras em si, de fato fantásticas. Logicamente, fiz algumas escolhas, que são o modo com que cada um reage à obra de arte. Diante de um conjunto como aquele, não retornar é quase uma heresia. Assim, esse post é apenas o registro de uma primeira incursão, acompanhado de uma ilustração do universo de Escher, a cena de um filme seu tanto adolescente (Labyrinth), de que jamais tinha ouvido falar, com performance de ninguém menos que Mr. David Bowie.