Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 5 de novembro de 2011

formas breves

“E, para começar, emendemos Sêneca. Cada dia, ao parecer daquele moralista, é, em si mesmo, uma vida singular; por outros termos, uma vida dentro da vida. Não digo que não; mas por que não acrescentou ele, que muitas vezes uma hora é a representação de uma vida inteira? Vede este rapaz: entra no mundo com uma grande ambição, uma pasta de ministro, um banco, uma coroa de visconde, um báculo pastoral. Aos cinquenta anos, vamos achá-lo simples apontador de alfândega, ou sacristão da roça. Tudo isso que se passou em trinta anos, pode algum Balzac metê-lo em trezentas páginas; por que não há de a vida, que foi a mestra de Balzac, apertá-lo em trinta ou sessenta minutos?”

Machado de Assis. O empréstimo. 50 contos de Machado de Assis. Org. John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.138-139. 

Ovolution (evolution of evil and violence)

Solitude (curta)

Andréi Biéli: "Deposita-se a crosta / Dos mundos que nos portam"

A PALAVRA

Na febre do som
Do sopro
A treva é flama-fala.

Lá fugindo da laringe,
A terra exala.

Expiram
As palmas
Das palavras não-compostas.

Deposita-se a crosta
Dos mundos que nos portam.

Sobre o mundo formado
Paira a profundidade
Das palavras proferíveis.

Profundamente ora
A palavra das palavras, Sarça viva.

E do futuro
Paraíso
Alça-se a serra adunca

Por onde em chamas, consumido,
Não passarei: nunca.


Poesia russa moderna. Trad. Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 2001, p.84.

Victor Brauner

Consciousness of Shock, 1951

“A symbolic struggle is expressed between the human and bird halves of the hybrid form in Consciousness of Shock, in which Victor Brauner portrays a complex boat-shaped figure in the course of battling for control of itself. Drawn in the schematic profile style of Egyptian hieroglyphs, a large androgynous head unites with the raised prow of a boat elaborated with breasts. The body of the vessel, directed by rudderlike legs and feet, merges at the stern with the upright body of a bird. Two powerful hands, at the ends of crossed arms, suppress the internal battle by restraining the limbs of the bird, while a third hand doggedly forges progress along the river by paddling. Thus, in keeping with the nature of much psychic conflict, a difficult internal struggle is self-contained, while the vessel-self continues along a predetermined route.” (aqui)

...

No sonho era inicialmente uma casa, a casa em que primeiro morei aqui no Rio de Janeiro. Recebia uma colega de trabalho, que identifico como alguém de face iluminada, que transpira leveza. Ia-lhe mostrando os aposentos, falando das restrições que tinha ao imóvel, e então há uma zona nebulosa, que não consigo delinear, e já estou ― estamos ― na minha nova casa no Rio de Janeiro, e estou explicando a ela que na mudança a sala ficou por uma semana tomada pelas caixas de livros. Mas, em essência, é como se não tivesse havido mudança e se tratasse da mesma casa, como se eu descobrisse, a posteriori, que gostava da casa que então morava. Então, depois de mais uma zona nebulosa ― e há uma criança no sonho que suponho ser filho de minha colega, ou quem sabe os resquícios da inocência ― eu presencio uma cena constrangedora: ela está fazendo algo, mediante um telefonema, reprovável, com o rosto encoberto, mas há alguém saído de uma novela registrando tudo. No meu ponto de vista do sonho o que ela faz é bem reprovável, mas consigo vagamente identificar uma analogia concreta para a reprovação, num senso ético que não tem me servido para quase nada, exceto para eventuais dores de cabeça. Voltando ao confuso enredo, o registro falha novamente, a criança continua à deriva, como se não tivesse mãe: o filho da Maga em O jogo da amarelinha? Faz sentido, pois a colega em questão é professora de espanhol, e ontem mesmo conversávamos sobre o filme Biutiful, entre outros aspectos o caráter ambíguo do protagonista, seu cenho sombrio, sua bondade misturada às injunções da sobrevivência, a tristeza que perpassa a narrativa. Então, no sonho, já numa outra cena, frustrado o flagrante ético, eu convido minha colega para irmos até a janela, e então é uma outra e terceira casa, a casa em que morei na adolescência em Cachoeiro, e mostro-lhe um fenômeno bonito, o mar batendo forte nos costados da casa (desnecessário dizer que Cachoeiro não tem mar), tão forte que causa-lhe uma expressão de espanto e alegria, e já então pouco importa o que se passou, o que vale é a janela voltada para fora, e mostro-lhe inclusive que o mar anteriormente já subiu mais, chegando bem perto, deixando uma marca na parede da casa. O mar batendo nos costados do meu blog. 

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

sensibilidade

Uma história paleontológica antiga ― e há alguma que não seja? ― me sensibilizou: era na verdade a história que entrevi através da notícia de um crânio de criança encontrado com um ferimento na cabeça, suposta causa da morte. Fiquei imaginando essa antiga criança que sobreviveu ao tempo, a muitas camadas de tempo, e que paradoxalmente pisou durante tão pouco tempo na face da terra. De que violência terá perecido? 

ainda a palavra

Eu amo tanto a palavra que diante dela sinto-me como se pudesse voltar ao silêncio primordial, quando foi inaugurado o corte em relação à natureza. A escrita é minha maior liberdade, e nela consigo entrever o esforço humano em direção à linguagem. 

a palavra

Uma garatuja prosaica: acerca de y, x afirmou: Ela não mede o impacto de suas ações na vida das pessoas. Agora o que interessa: a poesia me deu, mais que qualquer outra experiência, um senso agudíssimo do estranho e fascinante poder da palavra. E é tão difícil explicar isso quanto perceber o impacto que uma palavra pronunciada tem ― sobre quem fala e o outro:

Uma palavra se abre
Como um sabre ―
Pode ferir homens armados
Com sílabas de farpa
Depois se cala ―
Mas onde ela caiu
Quem se salvou dirá
No dia do desfile
Que algum Irmão de armas
Parou de respirar.

Aonde vá o sol sem ar ―
Por onde vague o dia ―
Lá está esse assalto mudo ―
Lá, a sua vitória!
Observa o atirador arguto!
O tiro mais perfeito!
O alvo do Tempo
O mais sublime
É um ser “ignoto!”


There is a word
Which bears a sword
Can pierce an armed man ―
It hurls its barbed syllables,
At once is mute again ―
But where it fell
The saved will tell
On patriotic day,
Some epauletted brother
Gave his breath away.

Wherever runs the breathless sun ―
Wherever roams the day ―
There is its noiseless onset ―
There is its victory!
Behold the keenest marksman!
Time's sublimest target
Is a soul "forgot"! 

DICKINSON, Emily. Não sou ninguém: poemas. Trad. Augusto de Campos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008, p.20-21.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Gertrude Stein

Uma vez que não há gente existente em parte alguma exceto aqui na terra ser gente não é tão fácil de ocorrer.

Since there are no men in existence anywhere except here on this earth being men is not an easy thing to happen.

CAMPOS, Augusto de. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006, p.240-241.

cura

Não sei se escrever cura de alguma coisa. De todo modo, vale a intenção, que ao contrário de ornar o caminho do inferno permite retroceder dele. 

a sereia e o desconfiado

O crítico Thomas Higginson, com quem Emily Dickinson se correspondeu, desencorajou-a a publicar seus poemas. Emily Dickinson respondeu-lhe: “Sorrio quando sugere que eu protele a ‘publicação’. Se eu conhecesse a fama, eu não poderia fugir a ela, se não a conhecesse, ela me perseguiria o dia inteiro e eu perderia a aprovação de meu cachorro”. Quem conta a história é Augusto de Campos, no prefácio da coletânea Emily Dickinson: não sou ninguém

Dora Ferreira da Silva

ULISSES E O INSETO

Quando li o Ulisses de Joyce
o verão era pungente
e as questões.
Nem a rede embalava
nem o mar aplacava
nossos dédalos.
O vento soprou as areias e então

um inseto pousou no livro
aberto ao meio:
olhitos fechados fitaram-me e foi quando
a leitura findou
na página duzentos e tanto...

Dora Ferreira da Silva. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p.151.

Dora Ferreira da Silva

O QUE PASSA, O QUE NÃO PASSA

São flores, os sentimentos. Secam.
Quem eram aqueles, na noite,
que o frio trazia?

A mendiga apoia-se à porta,
por hábito. Desconfiada,
avalia a mulher
e sua mão quase vazia ―

A mesma que apanhava
as eternas amoras
da primeira estação.

Dora Ferreira da Silva. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p.262.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

sea change (turin brakes)

Emily Dickinson

A Natureza dá o Sol a todos -
Isso - é Astronomia -
A Natureza falta a um Amigo -
Isso - é Astrologia.

Nature assigns the Sun -
That - is Astronomy -
Nature cannot enact a Friend -
That - is Astrology.

DICKINSON, Emily. A branca voz da solidão. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2011, p.212-213.

_______________________
P.S. José Lira considera o sinal gráfico que Emily Dickinson emprega separando as palavras não necessariamente travessão, mas antes “disjunções”: “Emily Dickinson criou um tipo de sinal gráfico até então inexistente em língua inglesa: a disjunção, um traço curto que alguns veem como simples hábito de escrita e outros como sintoma de distaxia (e que em geral é confundido com o travessão). A disjunção é, na verdade, um dos principais recursos estilísticos de sua escrita: destaca uma palavra ou expressão, marca pausas de leitura ou dicção, modifica o ritmo de alguns versos, separa segmentos frasais, expressa continuidade (ou descontinuidade) de uma ideia, explica algo que veio antes ou virá em seguida ― substitui, enfim, todo um conjunto de sinais usais de pontuação e dá a um poema de Emily Dickinson o aspecto próprio de um poema de Emily Dickinson ― abstraindo-se, é claro, o fato de que mais de um quinto dos manuscritos da autora não subsistiram e que as transcrições de terceiros ‘regularizaram’ a pontuação e outros aspectos gráficos e prosódicos de sua escrita.” (p.22) Em outro texto dedicado à poesia de Emily Dickinson, questiona: “se é que ela usava o travessão”. Já Augusto de Campos, também tradutor de Emily Dickinson,  emprega o travessão sem entrar em discussões textuais. Apenas assinala: “Emily criou um idioma poético próprio e antecipatório em termos de densidade léxica, economia de expressão e liberdade sintática. [...] Utiliza, muitas vezes em combinatórias novas, versos tradicionais, nos quais os seus estranhos tracejamentos gráficos introduzem recortes e pausas inusitados, dando-lhes feição singular.” (p.10). Em atenção a este recorte de José Lira, e que pressupõe um modo próprio de ler a poesia de Emily Dickinson, suas traduções aqui postadas respeitarão o traço curto, em vez do travessão, embora seja difícil controlá-lo no automatismo do editor de textos, que aliás oferece toda uma gama de sinais gráficos diferenciados.

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008.

DICKINSON, Emily. Não sou ninguém: poemas. Trad. Augusto de Campos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008.

há pelos menos duas cidades chamadas rio de janeiro

Desconfiar é confiar em alguma coisa diferente, intuída ou vislumbrada, das que facultam, engendram, tornam possíveis e factíveis (os verbos aqui seriam inúmeros) os diferentes tipos de acordo que fazem a teia da sociedade, esgarçada, é bom notar, das conversas de comadres aos acordos políticos ― e é justo perguntar se existe alguma diferença entre uma coisa e outra. É o oposto da ingenuidade. Quem desconfia não necessariamente deixou de confiar, apenas está se fiando em algo diferente do previsto, inclusive por si próprio. "É uma máfia estabelecida", diz Marcelo Freixo sobre as milícias no estado do Rio de Janeiro, e deixando temporariamente o país por ter recebido, só em outubro, sete ameaças de morte, que o governo do estado estaria, conforme o deputado, negligenciandoNada é feito e há um cinismo no Rio de Janeiro, em que se finge que o problema das milícias está resolvido. Eu não posso continuar convivendo com essas ameaças como se a milícia fosse um problema só meu. Não é. Esse é um problema do Rio de Janeiro.” Há uma insuficiência nas ações do Estado. Estamos assistindo (tomando de empréstimo o título e a sugestão do conhecido filme de Victor Erice) à hegemonia do espírito da milícia. 

hope is a thing with feathers - emily dickinson

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

chuva

E então chove e faz frio ― o que percebo deveras. Costuma ser assim nas proximidades do feriado de finados. Não à toa o finado Brás Cubas fez chover no seu enterro. Há exato um ano atrás tanta coisa se deu, tanto mudou de repente, inesperadamente. Um aluno hoje me perguntou a pertinência de um dia dedicado aos mortos. Disse-lhe que valia mais para nós, para nos lembrar de nossa condição. A conjunção da chuva com Brás Cubas e a véspera do feriado avivou a lembrança de coisas já distantes, insignificantes ― e é um alívio percebê-las assim, despidas de importância, como naquele conto de Drummond cujo título agora me escapa. Aliás, hoje é Dia D, dia dele, de Drummond. Lembrar é apenas um acidente da memória, um modo de perceber que, como o avião que corta agora o céu acima das nuvens, passou o tempo, e junto o que ele engendrou. O tempo pairando acima das nuvens, lenitivo da alma que mandou uma chuva para eu me lembrar de tanta coisa, lembrar que as coisas mudam de lugar, como a água da chuva que cai. 

limpando os óculos

CAPÍTULO XXXIV 
A UMA ALMA SENSÍVEL

HÁ aí, entre as cinco ou dez pessoas que me leem, há aí uma alma sensível, que está decerto um tanto agastada com o capítulo anterior, começa a tremer pela sorte de Eugênia, e talvez... sim, talvez, lá no fundo de si mesma, me chame cínico. Eu cínico, alma sensível? Pela coxa de Diana! Esta injúria merecia ser lavada com sangue, se o sangue lavasse alguma coisa nesse mundo. Não, alma sensível, eu não sou cínico, eu fui homem; meu cérebro foi um tablado em que se deram peças de todo gênero, o drama sacro, o austero, o piegas, a comédia louçã, a desgrenhada farsa, os autos, as bufonerias, um pandemônio, alma sensível, uma barafunda de coisas e pessoas, em que podias ver tudo, desde a rosa de Smirna até a arruda do teu quintal, desde o magnífico leito de Cleópatra até o recanto da praia em que o mendigo tirita o seu sono. Cruzavam-se nele pensamentos de vária casta e feição. Não havia ali a atmosfera somente da águia e do beija-flor; havia também a da lesma e do sapo. Retira, pois, a expressão, alma sensível, castiga os nervos, limpa os óculos ― que isso às vezes é dos óculos ―, e acabemos de uma vez com esta flor da moita.

Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Globo, 2008, p.113-114.

domingo, 30 de outubro de 2011

Óssip Mandelstam

A CONCHA

Talvez te seja inútil minha vida,
Noite; fora do golfo universal,
Como concha sem pérola, perdida,
Me arremessaste no teu areal.

Move as ondas, como indiferente,
E cantas sem cessar sua melodia.
Mas hás de amar um dia, finalmente,
A mentira da concha sem valia.

Jazerás a seu lado pela areia
E pouco faltará para que a escondas
Nessa casula onde ela se encadeia
À sonora campânula das ondas,

E as paredes da frágil concha, pouco
A pouco, se encherão do eco da espuma,
Tal como a casa de um coração oco,
Cheio de vento, de chuva e de bruma...

CAMPOS, Augusto de. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006, p.115.

o mal-estar na civilização

Toca um funk aborrecido no vizinho em frente, que muito frequentemente tem reunido os amigos no terraço para comemorar os bons índices sociais do país. Naturalmente vou desmaiar de cansaço antes da reunião se dissipar. O que escuto é desagradável ao extremo, vulgar a toda prova, rumo ao grunhido. Ao passo que a realidade virtual leva para outras aragens, paragens mais arejadas, onde descubro isso

perto

Perto, muito perto. É preciso evoluir, acompanhar as mudanças, o tempo, as transformações ― ouve-se amiúde. Ser moderno. Nada de posturas démodé. É preciso ser absolutamente moderno, uivou Rimbaud. Rimou Rimbaud. Perto, muito perto. Perto demais para enxergar qualquer coisa que não seja o presente. Este é o nosso tempo, um tempo míope.

blogues

Há blogues cuja sofisticação me dá, por contraste, uma incrível sensação de amadorismo. 

Alexei Bueno: a força da poesia arrancada à palavra

ESPÓLIO

Que guardaremos disso tudo? A gema
Inconcebível entre o horror e o encanto,
Ou o ancestral silêncio, ou o ágil canto
     Que o tem por tema?

A úmida muralha morna e turva
Com que a dor nos estreita, o fim cinzento
Do dia, a rosa, o raio, ou, numa curva
     De um sonho, o vento?

BUENO, Alexei. Em sonho. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p.406.

cinema público

Numa troca de comentários sobre cinema, acabei descobrindo, nos arredores, um canal do youtube com filmes antigos completos: cinema público. Entre os títulos, Metrópolis e O Encouraçado Potemkin.